Na detenção ou na liberdade: onde eu encontro minha saúde?*

In Detention or Freedom: Where do I Find my Health?

En detención o libertad: ¿dónde encuentro mi salud?

Investigación en Enfermería: Imagen y Desarrollo, vol. 21, núm. 2, 2019

Pontificia Universidad Javeriana

Ana Cláudia Pereira Terças a

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Vagner Ferreira do Nascimento

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Maria Aparecida de Jesus Xavier Gusmão

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Bianca Carvalho da Graça

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Josué Souza Gleriano

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Michele de Melo Mariano

Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil


Recepção: 11 Agosto 2017

Aprovação: 20 Junho 2019

Publicado: 30 Novembro 2019

Resumo: Introdução: a vida no encarceramento é permeada por desafios de diferentes áreas, a percepção sobre como as mulheres percebem saúde e o seu processo de adoecimento no ambiente prisional é fundamental para ampliar as discussões que possam reduzir as iniquidades a que estão expostas. Objetivo: conhecer e refletir sobre a percepção do processo saúde-doença a partir do ponto de vista de reeducandas. Método: trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa desenvolvida em uma Cadeia Pública Feminina de um município da região médio norte de Mato Grosso junto a 57 mulheres condenadas ou em regime provisório. A coleta de dados foi realizada no mês de outubro de 2016, através de entrevista individual guiada por roteiro semiestruturado elaborado pelos próprios pesquisadores, contendo questões abertas que abordavam aspectos relacionados à percepção das reeducandas sobre o conceito de saúde e seus condicionantes e determinantes. Resultados: os relatos expressaram significados diversificados de saúde para essa população, desde conceitos reduzidos à outros mais amplos, correspondendo à ausência de doenças, acesso aos profissionais de saúde e medicamentos, autocuidado, possibilidade de exercerem atividades laborais e liberdade. Conclusões: ressalta-se a necessidade da criação e efetivação de políticas públicas e projetos sociais, oferta de educação continuada aos profissionais penitenciários, parceria com atores sociais e participação ativa dos profissionais de saúde para garantia de melhor qualidade de vida para as reeducandas e manutenção do sistema prisional.

Palavras-chave: mulheres, prisões, determinantes sociais da saúde, doença.

Abstract: Introduction: Life in incarceration is permeated by challenges from different areas, perceptions about how women perceive health and their process of illness in the prison environment are fundamental to broaden the discussions that can reduce the iniquities to which they are exposed. Objective: To know and reflect on the perception of the health-disease process from the point of view of re-education. Method: This is a descriptive and exploratory research, with a qualitative approach developed in a Female Public Chain of a municipality in the northern region of Mato Grosso along with 57 convicted or provisional women. The data collection was carried out in October 2016, through an individual interview guided by a semistructured script prepared by the researchers themselves, containing open questions that addressed aspects related to the perception of reeducation on the concept of health and its determinants and determinants. Results: The reports expressed diverse meanings of health for this population, from reduced concepts to broader ones, corresponding to the absence of diseases, access to health professionals and medicines, self-care, possibility of exercising work activities and freedom. Conclusions: It is necessary to create and implement public policies and social projects, offer continuing education to prison professionals, partnership with social actors and active participation of health professionals to guarantee better quality of life for re-education and maintenance of the Prison system.

Keywords: women, prisons, social determinants of health, disease.

Resumen: Introducción: La vida en encarcelamiento es permeada por desafíos de diferentes áreas, la percepción sobre cómo las mujeres perciben la salud y su proceso de morbilidad en el ambiente carcelario es fundamental para ampliar las discusiones que puedan reducir las inequidades a que están expuestas. Objetivo: Conocer y reflexionar sobre la percepción del proceso salud-enfermedad a partir del punto de vista de las reescolarizadas. Método: Se trata de una investigación descriptiva y exploratoria, con enfoque cualitativo desarrollada en una Cárcel Pública Femenina de un municipio de la región medio-norte de Mato Grosso junto a 57 mujeres condenadas o en régimen provisional. La recolección de datos fue realizada en el mes de octubre de 2016, a través de entrevista individual semiestructurada con guión elaborado por los propios investigadores, que contenían preguntas abiertas que abordaban aspectos relacionados a la percepción de las reescolarizadas sobre el concepto de salud y sus condicionantes y determinantes. Resultados: las historias expresaron significados diversificados de salud para esa población, desde conceptos reducidos a otros más amplios, correspondiendo la ausencia de enfermedades, acceso a los profesionales de salud y medicamentos, autocuidado, posibilidad de ejercer actividades laborales y libertad. Conclusiones: Se resalta la necesidad de la creación y activación de políticas públicas y proyectos sociales, oferta de educación continuada a los profesionales penitenciarios, alianza con actores sociales y participación activa de los profesionales de salud para garantía de mejor calidad de vida para las reescolarizadas y manutención del sistema carcelario.

Palabras clave: mujeres, prisiones, determinantes sociales de la salud, enfermedad.

Introdução

A definição de saúde para os sujeitos depende da cultura que vivenciam, estando intrinsecamente ligada à construção histórico social de cada um (1,2). Deste modo, o entendimento sobre saúde depende da compreensão do indivíduo e de sua relação com o meio em que está inserido (3).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde o termo saúde é definido pelo estado de “completo bem-estar físico, mental e social”, e não meramente pelo fato da doença não existir (4). Este conceito ampliado promove maior análise do indivíduo em questão, uma vez que o mesmo é observado integralmente, envolvendo fatores que estão diretamente ligados a ele e que podem influenciar no seu estilo de vida: os determinantes sociais de saúde.

Os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais funcionam como determinantes sociais de saúde da população, podendo impactar no processo saúde-doença e desencadear problemas de saúde (5). Tal situação pode ser observada nas populações carcerárias devido ao ambiente em que se encontram e as condições pouco saudáveis à que estão expostas, que perpassam desde a questão estrutural a falta de insumos.

Ao adentrarem nos ambientes de detenção as reeducandas deparam-se com condições precárias, como a superlotação, celas mal ventiladas, falta de higiene e iluminação; condições insalubres para o processo de recuperação e reintegração social (6). A vida no encarceramento é permeada por desafios similares ou até maiores aos que trouxeram essas pessoas para a prisão, estes que influenciam cotidianamente na qualidade de vida dessas reeducandas.

Esta população vem crescendo de forma alarmante em todos estados brasileiros, em ambos os sexos. O encarceramento feminino por exemplo, no período de 2000 a 2014 apresentou crescimento de 567%, totalizando 37.380 reeducandas em 2014 (7).

O perfil normalmente encontrado nos espaços de detenção femininos corresponde à mulheres jovens, solteiras, com filhos, baixo nível de escolaridade e renda familiar precária. Esses fatores associados à outras condições limitantes do cotidiano de vida podem ter contribuído para o acesso ao crime, já que o principal motivo de detenção é o tráfico de drogas, seguido por furto e roubo (8).

Pouco se sabe sobre como mulheres em situação de aprisionamento percebem saúde e o processo de adoecimento, neste sentido é fundamental discutir sobre essa temática afim de reduzir as iniquidades a que estão expostas.

Vislumbrando esse cenário buscou-se conhecer e refletir sobre a percepção do processo saúde-doença a partir do ponto de vista das reeducandas de uma Cadeia Pública Feminina.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa. Este tipo de estudo caracteriza-se pela observação, análise e correlação dos fatos que permeia o indivíduo isoladamente ou sua coletividade, objetivando explicar e modificar conceitos, ideias e práticas (9).

O método qualitativo da pesquisa proporciona revelar processos socioculturais pouco conhecidos referentes a um grupo populacional específico, fazendo análise das expressões humanas presentes nos sujeitos e nas relações, proporcionando maior visibilidade sobre a temática (9).

A pesquisa foi desenvolvida em uma Cadeia Pública Feminina de um município da região médio norte de Mato Grosso junto a 57 mulheres condenadas ou em regime provisório, assim o universo amostral foi composto pela totalidade das reeducandas. A coleta de dados foi realizada no mês de outubro de 2016 através de entrevista guiada por roteiro semiestruturado, contendo questões abertas que abordavam as variáveis relacionadas à percepção das reeducandas sobre o conceito de saúde e seus condicionantes e determinantes. As entrevistas foram realizadas individualmente em sala reservada com duração de 20 minutos. Posteriormente foram transcritas na íntegra e codificadas de forma alfanumérica, de modo que a letra “R” indica “reeducanda” e o elemento numérico que acompanha o conjunto expressa a ordem do discurso no desenvolvimento da análise. Optou-se por entrevistar todas as mulheres para possibilitar uma ampliação das concepções sobre o processo saúde doença.

Para análise de dados foi utilizada análise do discurso, que oferta a possibilidade de observar o sentido não explícito no discurso como forma de aproximação do processo saúde-doença por meio da análise da interpretação da linguagem, em que a palavra expõe contradições e conflitos existentes em uma realidade, explicando a determinação de vários fenômenos (10).

O estudo respeitou todos aspectos éticos em pesquisas com seres humanos (internacionais e nacionais), conforme a Declaração de Helsinki (sétima revisão, 64ª Assembleia Médica Mundial, em outubro de 2013) e a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, tendo parecer de aprovação n.º 1.457.621/2016.

Resultados e discussão

A Cadeia Pública foi inaugurada em 1978, funcionando como um presídio masculino e feminino e atualmente assume caráter de Cadeia Pública Feminina, com capacidade para 58 reeducandas, distribuídas em oito celas, e dispõe de 21 servidores públicos para manutenção do trabalho.

O perfil predominante das participantes do estudo corresponde a reeducandas autodeclaradas pardas, com faixa etária entre 18 e 31 anos, ensino fundamental incompleto, solteiras, donas de casa, possuindo até 4 filhos, detidas pelo crime de tráfico de drogas e com período de reclusão de até dois anos.

Essas mulheres, ao destacarem o conceito de saúde, apresentaram significados como ausência de dor ou doença, remetendo a centralização da doença, baseada no modelo biomédico.

“Saúde é [...] não passar mal, não ter doenças, dores”. (R53)

“Saúde é uma pessoa que não tem problema nenhum”. (R6)

“Não sentir dor, não sentir o corpo ruim”. (R32)

“Sem dores, sem sentir nada”. (R24)

Essas percepções resultam da experiência vivenciada por cada reeducanda — transmitida hereditariamente — aliada ao conceito de saúde relacionado apenas à ausência de doenças (1). A dificuldade de acesso à informações acerca da saúde através dos meios de comunicação e/ou serviços de saúde e profissionais somada muitas vezes à ausência ou interrupções nos espaços de formação escolar, como visto no perfil dessas reeducandas, favorecem a manutenção desse teor de saber ainda enraizado na perspectiva biomédica e culturalmente presente em espaços menos favorecidos da sociedade brasileira.

Uma pesquisa realizada com moradores de rua, população com vulnerabilidades similares às vivenciadas na detenção, também expressou semelhança na ideia de saúde como sinônimo de ausência de doenças, onde relacionam o seu estado de saúde com as condições de vida e exposição aos riscos da rua (11). Outras populações vulneráveis, os indígenas, por exemplo, também demonstraram percepções similares, uma vez que aproximadamente 44% do público questionado se apropria do discurso médico/científico, associando saúde à ausência de agravos (12).

As representações sobre saúde estão em sua maioria vinculadas apenas às vivências particulares de cada indivíduo (12), o que também foi observado neste estudo quando as mulheres demonstraram no diálogo o reflexo da vida no cárcere, podendo ser exemplificado por fragmentos de fala que definem saúde sendo extrínseca à sua realidade, transferindo a condição para indivíduos que não compartilham suas rotinas.

“Saúde é tudo de bom, é se sentir bem, sair, se divertir, ir onde gostamos sem dar satisfação, estar livre”. (R31)

“É responsabilidade, cuidar mais da gente, tanto o homem e a mulher, também da família, dos filhos. Tudo que comemos é importante, dormir, trabalhar e estar onde quisermos, o que não posso fazer aqui”. (R44)

As condições de habitação no cárcere como as superlotações e altas taxas de insalubridade transformam as prisões em ambientes propícios à proliferação de doenças, além dos fatores estruturais como a má alimentação, o sedentarismo e a falta de higiene, que contribuem para o surgimento de problemas em saúde (13). Estudo internacional demonstrou que as mulheres privadas de liberdade nos Estados Unidos possuem maior prevalência de doenças clínicas, psiquiátricas e dependência de drogas, quando comparadas a outro gênero (14).

Harner e Riley conduziram estudo sobre os impactos do aprisionamento na saúde mental de mulheres, demonstrando que o fato de viverem em um ambiente potencialmente ameaçador à saúde faz com que os sujeitos envolvidos se sintam mais propícios ao adoecimento. Denota-se que uma descrição de saúde afasta a reeducanda da realidade (15).

“Saúde é tudo. Sem saúde não vive. Lá fora eu não valorizava a saúde”. (R28)

“Saúde é essencial, é tudo. No Brasil o sistema é uma vergonha, nem dá para ter saúde, assim, aqui principalmente... Não se come bem, não dorme bem, vive pressionada, sofrendo ameaças, vivendo junto de pessoas que não gostamos e nunca vimos”. (R10)

Martins e colaboradores também evidenciam a percepção de saúde ligada à liberdade, sendo a mais frequente entre esse público, destacando que as regras das penitenciárias, divisão do espaço físico com pessoas externas ao seu vínculo social, estruturas precárias e principalmente o aspecto psicológico, com ameaças e uma relação interpessoal hierarquizada por parte de poder, limitam a autonomia desfrutada pelas mulheres anteriormente à prisão (16).

Aliada ao vínculo entre saúde e liberdade tem-se uma construção de saúde de forma ampliada, caracterizada pela ambiguidade dos termos apresentados nas falas e configurando um aspecto fundamental à vida no contexto biopsicossocial (17).

Em 2003, através da Portaria Interministerial dos Ministérios da Saúde e da Justiça n.° 1777, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) é aprovado (18) justificando a constatação de que a saúde no ambiente prisional não contemplava na íntegra os princípios do Sistema Único de Saúde (19).

O PNSSP garante a saúde das reeducandas de forma integral, visando a criação de estratégias para o enfrentamento de problemas em saúde, reduzindo os agravos mais frequentes, prestando assistência à saúde de forma resolutiva e contínua e democratizando o conhecimento do processo saúde-doença (18).

Porém o que se observa na realidade é que os direitos estabelecidos pelas leis não são legitimados em sua concretude (19). O acesso aos serviços e profissionais é escasso e a atenção em saúde caracterizada por meio da presença do médico e ação curativa, ação reducionista do que se propõe tanto na concepção de uma atenção integral ao cidadão brasileiro quanto ao que se descreve no PNSSP.

Ter saúde para essas reeducandas está ligado a disponibilidade imediata de um profissional para atendimento, remetendo à prática curativista, como apontado em estudos (19) e devido à ausência dessa estratégia em saúde, buscam desassistidas a obtenção de recursos financeiros para a aquisição de medicamentos, como forma de suprirem essa carência (20).

“Saúde é tudo, ter alimentação, ter médico…”. (R1)

“Saúde para mim é ter remédio quando está com dor, é ter acesso aos profissionais, como médico, SAMU, é ser atendido quando preciso, poder ir até onde preciso para ser atendida e não ficar à mercê da prisão”. (R21)

“Passar todo ano pelo médico, se prevenir”. (R41)

Essa necessidade de profissional acentua-se nas instituições prisionais porque os recursos estão voltados aos cuidados para as doenças já manifestadas e normalmente o número de profissionais são insuficientes e os ambientes para tratamento inadequados para o estabelecimento de planos terapêuticos (15).

No Brasil o cenário é mais preocupante porque a escassez de profissionais de saúde nas unidades prisionais é comum. Algumas prisões não possuem serviços de saúde institucionalizados internamente e tendem a buscar atendimento na rede primária de saúde pública municipal, que demanda de escolta, essa muitas vezes dificultada por conta da falta de contingente de agentes penitenciários, sendo então o último recurso a busca pelos serviços de urgência como o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) (21).

Um estudo realizado na capital mato-grossense mostrou entraves no acesso aos serviços de saúde pela população carcerária. A superlotação dificulta a comunicação entre os agentes penitenciários e profissionais de saúde, o que faz o agente penitenciário decidir sobre a escolha de quem está precisando do atendimento (22).

Além das definições de saúde estarem relacionadas com a prevenção dos agravos através da disponibilidade médica, outras representações denotaram associação com o autocuidado.

“Estar bem consigo, se alimentar bem, condição de higiene básica, praticar esporte e estudar”. (R3)

“Qualidade de vida, alimentação saudável e praticar exercícios”. (R23)

Aspectos como a autoestima, alimentação saudável, higiene pessoal, prática de exercícios físicos e demais atividades que englobam os níveis social e intelectual, como o estudo, são citados pelas reeducandas, evidenciando o processo da democratização do autocuidado.

Nesse contexto a promoção da saúde se comporta como estimuladora do empoderamento dos sujeitos, resultando na emancipação individual e formação da consciência coletiva, fortalecendo o direito de escolha e da participação ativa no processo de manutenção dos cuidados em saúde, que reflete na corresponsabilidade da assistência — partindo dos serviços e profissionais de saúde e da conscientização/sensibilização que propicia a atuação do cliente (23).

Dadas as condições de vivência no cárcere e como as estruturas carcerárias brasileiras, em sua maior predominância, não conseguem criar espaços de convivência e de autonomia dos reeducandos para cuidar da sua própria saúde, nem sempre é possível ter uma alimentação saudável e boas condições de higiene dentro das prisões.

O déficit no autocuidado pode contribuir para o estado de saúde limitado já que o descuido com o próprio corpo pode ocasionar a doença, que é considerada uma alteração da estrutura e função corporal (1). A prescrição de hábitos e comportamentos individuais a serem seguidos configuram-se como possibilidades de adoecimento, que apesar de serem singulares, começam a denotar maior abrangência do significado de saúde.

A preocupação com a alimentação adequada, a falta de atividade física e até mesmo o tabagismo, tem sido apontados por essa população como um dos principais fatores de risco para o surgimento de doenças crônicas (1). A alimentação adequada é um direito humano e para assegurar esse cumprimento é fundamental a segurança alimentar e nutricional. Nos presídios a alimentação é padronizada, não atendendo às necessidades individuais e não contemplando os padrões nutricionais, fornecendo proteína animal e gordura saturada em excesso, faltando todavia, aportes energéticos de glicídios, gordura vegetal, cálcio e micronutrientes (24).

Pimentel e colaboradores, ao estudarem o sistema prisional no estado do Piauí, destacaram que reeducandos expressam insatisfação em relação à qualidade dos alimentos durante as refeições, mal cozidos e temperados, e que preferem consumir lanches ao invés de comida. Percebe-se excesso de lipídios e repetição dos cardápios, que não atendem às restrições alimentares de diabéticos, hipertensos, alérgicos e demais grupos, além do fato dos alimentos serem compartilhados, em que uma reeducanda com hipercolesterolemia nutre-se da mesma forma que uma reeducanda sem limitações quanto à quantidade e tipo de determinados compostos (25).

A prática de esportes deve ser estimulada nesse contexto, visto que se consolidam como ferramentas que favorecem o autocuidado, qualidade de vida e ressocialização da detenta, pois os exercícios físicos proporcionam noções de organização, treinamento e empenho, além de atuarem na autoestima (26).

Estes benefícios promovem bem-estar para quem os pratica e para os profissionais que realizam a manutenção do sistema, já que torna a vivência menos conflituosa e mais agradável. Aliado a isso encontra-se a oferta do estudo e possibilidade de ingresso em uma instituição de ensino superior, mesmo acompanhadas por escolta, fazendo com que os anos de cumprimento da pena não sejam permeados pela ociosidade mas produtivos em aspectos de crescimento pessoal e profissional (26).

A educação ofertada à detenta consiste em uma forma de empoderamento que também permeia o processo de ressocialização intrínseco a ela, possibilitando o desenvolvimento do senso crítico, que conduz às escolhas e reflexão sobre suas consequências. Isso faz com que a liberdade seja acompanhada das condições que permitem ao indivíduo integrar-se como cidadão, denominadas direitos e deveres, que o norteará para a preparação para o trabalho e realização pessoal (27).

A Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) cita fatores imprescindíveis para a manutenção da saúde e estimula a realização de atividades por parte da Atenção Básica que visem orientar quanto à alimentação saudável, práticas corporais/atividade física e ambiente livre de tabaco, para construir melhorias na qualidade de vida (28). Houveram reeducandas que apresentaram conceitos amplos referentes a saúde.

“É ter bem-estar, estar bem com o corpo, com a mente, estar bem cuidado”. (R2)

“Saúde é tudo, estar bem com a vida, corpo e mente. Sem doença”. (R17)

Ao citarem o bem-estar, corpo e mente, pelo que expressam, devem estar em sintonia e que esses intrinsecamente permutam o estado de saúde, o que aproxima-se de uma compreensão da definição de saúde adotada pela Organização Mundial de Saúde. A partir do momento que as reeducandas são capazes de relacionar esses fatores com a saúde observa-se que conseguem reconhecer sua influência.

Estudo conduzido por Mari expõe por meio de entrevistas a associação entre mente e corpo e a necessidade de ambos estarem sãos para que o bem-estar seja preservado. Além disso, mencionou-se a influência dos aspectos físico e emocional na qualidade de vida dos indivíduos e seu impacto na saúde (29).

Ressalta-se ainda a relação com a possibilidade de exercerem atividades laborais bem como tarefas domésticas, cuidados com os filhos e residirem em ambiente salubre (11).

“Saúde é tudo: viver, trabalhar, não depender dos outros”. (R25)

“É o mais importante. É ter disposição para cuidar da casa, dos filhos”. (R37)

“Saúde pra mim é tudo, porque sem saúde não trabalho e não vivo”. (R38)

O vínculo entre o processo social e biológico do binômio saúde-doença é dado por processos particulares, como o caráter social e modo concreto de trabalhar, incluindo atividades neuromusculares, metabólicas, entre outras (30).

Portanto a execução de um trabalho para prover renda é constatado como um determinante social importante (28). O trabalho é vital para a manutenção da vida dos indivíduos porém deve-se observar as características desse trabalho para que o mesmo não seja um agente desestabilizador da saúde.

As representações de saúde se apoiam em conceitos, símbolos e estruturas interiorizadas na interpretação de fenômenos orgânicos, conforme os grupos sociais a que pertencem (1). Devido a esse fato autores criticam as definições previamente adotadas, uma vez que deve-se considerar o que está intrínseco a cada indivíduo, sendo que o que é considerado normal para uma pessoa pode não ser para outra (31). Neste sentido, os relatos apresentados podem refletir a ansiedade vivenciada em decorrência da ausência de oportunidades laborais e ócio diário do sistema prisional brasileiro.

Essas situações juntamente com a ausência do cuidado destinado à família e, principalmente aos filhos faz com que a mulher se torne mais vulnerável e suscetível ao adoecimento, visto que esse fato é associado à falta de saúde aliada ao sentimento de saudade e solidão, o que torna a vitalidade distante de seus cotidianos, segundo as reeducandas.

Diante disso medidas podem ser tomadas visando a aproximação da detenta à realidade com a qual irá se deparar ao retornar para o convívio social externo ao presídio. Dentre as mesmas pode-se evidenciar a ampliação das oportunidades de educação e trabalho e do acesso aos meios de comunicação permitidos nesse ambiente, como noticiários, revistas e jornais, possibilitando a conscientização sobre a situação do país e do mundo e consistindo em um meio de aquisição de saberes em saúde (32).

A partir dos diálogos observou-se uma construção conceitual de saúde resultante do universo pessoal das reeducandas, enriquecida por meio dos valores, cultura e meios social, ambiental e biológico, além do modo de viver e comportamentos sustentados, fornecendo uma definição singular. Essa construção está presente em uma comunidade pouco pesquisada, mas que já vem demostrando similaridade no que buscam como saúde (1).

Esse estudo apresenta limitações pois investigou apenas mulheres de uma unidade instituição prisional, no entanto suscita a replicação em outros ambientes, a fim de ampliar os conhecimentos no que se refere a essa clientela em situação de cárcere e sua saúde.

A partir do conhecimento sobre o processo saúde-doença por essa população torna-se possível a criação de políticas públicas de saúde e projetos sociais que sejam implantados nesses ambientes de acordo com princípios do Sistema Único de Saúde no que se refere à equidade do cuidado, além de possibilitar a integração entre os serviços de saúde em ambiente prisional com o ensino/pesquisa/extensão

Conclusões

As principais representações do conceito de saúde associado ao processo de adoecimento de acordo com o conhecimento expressado pela população carcerária feminina se referem à ausência de doenças, acesso a medicamentos e a profissionais de saúde, possibilidade de realização do autocuidado e à capacidade de trabalho com ênfase no convívio social e inserção na sociedade.

O conceito de saúde também foi relacionado à liberdade pela maioria das reeducandas, onde justificam que o ambiente em que se encontram interfere no alcance da vitalidade devido a não correspondência às demandas solicitadas, isolamento social e ausência de planejamento e objetivos de vida, o que tem contribuído para o aumento da procura pelos estabelecimentos de saúde.

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Notas

* Artículo de investigación

1. Conflito de interesse: nenhum

2. Financiamento: Fundação de Amparo y Pesquisa do Estado de Mato Grosso (Fapemat). Edital PPSUS-003/2017

Autor notes

a Autora de correspondencia. Correo electrónico: ana.claudia@unemat.br

Informação adicional

Cómo citar este artículo:: Terças AC, Nascimento V, Gusmão MA, Da Graça B, Gleriano J, Mariano M. Na detenção ou na liberdade: onde eu encontro minha saúde? Investig Enferm Imagen Desarr. 2020;21(2). https://doi.org/10.11144/Javeriana.ie21-2.dloe

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