O serviço residencial terapêutico como protagonista no cuidado em liberdade: avanços e desafios das políticas de Minas Gerais*
The Therapeutic Residential Service (SRT) as a Key Player in Care in Freedom: Progress and Challenges of Policies in Minas Gerais
El servicio residencial terapéutico (SRT) como protagonista del cuidado en libertad: avances y desafíos de las políticas en Minas Gerais
André Vitor Ferreira de Souza , Isabelle de Jesus Freitas , Amanda Vasconcelos Alcântara , Lírica Salluz Mattos Pereira
O serviço residencial terapêutico como protagonista no cuidado em liberdade: avanços e desafios das políticas de Minas Gerais*
Revista Gerencia y Políticas de Salud, vol. 23, 2024
Pontificia Universidad Javeriana
André Vitor Ferreira de Souza a andrevitorferreiradesouza@gmail.com
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Isabelle de Jesus Freitas
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Amanda Vasconcelos Alcântara
Fundação João Pinheiro, Brasil
Lírica Salluz Mattos Pereira
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Recepção: 24 Agosto 2023
Aprovação: 23 Abril 2024
Publicação: 20 Novembro 2024
Resumo: O serviço residencial terapêutico (SRT) é uma casa presente na comunidade, destinada ao cuidado de pessoas com transtornos mentais egressas de hospitais psiquiátricos e de custódia que permaneceram nestes por longo período e possuem vínculos sociofamiliares rotos. Realizamos levantamento das legislações do estado de Minas Gerais com o objetivo de analisar as que subsidiaram o fomento dos SRTs existentes e quais são os avanços e desafios dessa política. Trata-se de artigo de revisão de literatura realizado por meio do portal “Pesquisa legislativa” do Poder Executivo de Minas Gerais, utilizando-se das palavras-chave “serviços residenciais terapêuticos”, “serviço residencial terapêutico”, “desospitalização”, “serviços substitutivos” e “desinstitucionalização”. Foram identificadas 307 legislações e incluídas 4 no estudo entre 1995 e 2022. Identificou-se que as normativas seguiram uma linearidade, a partir da incorporação de novas regras e parâmetros, e da caracterização do serviço, não havendo mudanças significativas no que tange aos elementos já postos. Assim, é necessário amplo debate com gestores municipais e estaduais quanto ao fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial para a reinserção social dos usuários que ainda estão em hospitais psiquiátricos do Estado, visando ao cuidado em liberdade.
Palavras-chave:saúde mental, desinstitucionalização, políticas públicas de saúde, serviços de saúde mental.
Abstract: The Therapeutic Residential Service (SRT) is a home located within the community, intended to care for individuals with mental disorders who have been discharged from psychiatric hospitals and custodial care, where they had stayed for long periods and have broken social and family ties. We reviewed legislation from the state of Minas Gerais to analyze those that promoted the development of existing SRTs and the progress and challenges of this policy. This is a literature review article carried out through the “Legislative Research” portal of the Executive Branch of Minas Gerais, using keywords such as “therapeutic residential services,” “therapeutic residential service,” “dehospitalization,” “substitute services,” and “deinstitutionalization.” A total of 307 pieces of legislation were identified, of which 4 were included in the study, covering the period between 1995 and 2022. It was observed that the regulations followed a linear course, incorporating new rules, parameters, and the characterization of the service, without significant changes to the already established elements. Therefore, a broad debate with municipal and state managers is necessary to strengthen the Psychosocial Care Network (RAPS) to achieve the social reintegration of users who remain in psychiatric hospitals in the state, promoting care in freedom.
Keywords: Mental Health, Deinstitutionalization, Public Health Policies, Mental Health Services.
Resumen: El servicio residencial terapéutico (SRT) es una casa ubicada en la comunidad, destinada al cuidado de personas con trastornos mentales que han sido dadas de alta hospitales psiquiátricos y de custodia donde permanecieron por largos períodos y que tienen vínculos sociofamiliares rotos. Realizamos un levantamiento de las legislaciones del estado de Minas Gerais con el objetivo de analizar aquellas que promovieron el fomento de los SRT existentes, así como los avances y desafíos de esta política. Este es un artículo de revisión de literatura realizado a través del portal “Investigación Legislativa” del Poder Ejecutivo de Minas Gerais. Se utilizaron palabras clave como “servicios residenciales terapéuticos”, “servicio residencial terapéutico”, “deshospitalización”, “servicios sustitutivos” y “desinstitucionalización”. Se identificaron 307 legislaciones, de las cuales se incluyeron 4 en el estudio que abarca el periodo entre 1995 y 2022. Se identificó que las normativas siguieron un curso lineal, a partir de la incorporación de nuevas reglas y parámetros y de la caracterización del servicio, sin cambios significativos en los elementos ya establecidos. Por lo tanto, es necesario un amplio debate con gestores municipales y estatales sobre el fortalecimiento de la Red de Atención Psicosocial (RAPS) a fin de lograr la reinserción social de los usuarios que aún permanecen en hospitales psiquiátricos del Estado, buscando el cuidado en libertad.
Palabras clave: Salud Mental, Desinstitucionalización, Políticas Públicas de Salud, Servicios de Salud Mental.
Introdução
O estado de Minas Gerais tem importante participação no contexto histórico da construção das políticas nacionais e estaduais em saúde mental como conhecemos atualmente, sendo um dos estados pioneiros nas discussões e na implementação de políticas nesse contexto. No entanto, no final do século 19, assim como praticado na Europa, o Brasil e Minas Gerais tenderam para a inclusão de um modelo assistencial que visava à exclusão do usuário ou do indesejado social em um primeiro momento e, como resultados desse modelo, tivemos práticas violentas e higienistas (Paulin e Turafo, 2004; Sampaio e Bispo Júnior, 2021).
Diversos cenários de violação de direitos marcaram a saúde mental do Estado, uma vez que, antes da criação dos primeiros hospitais psiquiátricos do estado, no século 19 e início do século 20, pessoas em sofrimento mental eram atendidas em pavilhões de observação nas Santas Casas de São João Del Rei e Diamantina (Goulart e Durães, 2010).
Nesse cenário, e pautados pelo saber médico e científico da época, os hospitais tornaram as internações psiquiátricas primeira opção para o tratamento das pessoas com transtornos mentais, uma vez que a figura do “louco”, nesse momento, era vista como “desorganização da família, desordem social, perigo para o Estado” (Foucault, 2000, p. 91).
Com essa tendência de psiquiatrização de problemas sociais, a realidade dos hospitais era de superlotação no fim dos anos 1950, sendo ainda locais onde ocorriam graves violações de direitos humanos (Souza e Lobosque, 2006). Os debates acerca da assistência ofertada às pessoas com transtorno mental foram iniciados em 1960, os quais, no Brasil, estiveram pautados nas experiências e propostas desenvolvidas na França, nos Estados Unidos e na Itália (Brasil, 2005; Desviat e Ribeiro, 2015).
No Brasil, no fim da década de 1970, ainda no período ditatorial, começam a surgir movimentos sociais em defesa de uma reforma sanitária e de uma reforma psiquiátrica. Em meados de 1978, o movimento dos trabalhadores de saúde mental é criado dando início à luta em defesa dos direitos dos pacientes psiquiátricos (Brasil, 2005).
Logo, a partir dos anos de 1970, começam a surgir em Minas os primeiros movimentos com o objetivo de levar maior dignidade e humanização aos internos dos hospitais psiquiátricos. Esses movimentos foram marcados pelo I Congresso Mineiro de Psiquiatria, que ocorreu na cidade de Araxá em 1970, pelo II Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado em Caxambu, em 1971, e pelo III Congresso Mineiro de Psiquiatria, que ocorreu em Belo Horizonte, em 1979. Este último é considerado um marco da reforma psiquiátrica devido à repercussão causada e à presença de Robert Castel e do idealizador da reforma psiquiátrica na Itália, Franco Basaglia. Além disso, contou com a participação de usuários, familiares, jornalistas e sindicalistas (Souza e Lobosque, 2006).
Com esse marco da reforma psiquiátrica no Brasil, as políticas em saúde mental começaram a ser pensadas e, em 1982, foi implantado, pelo governo estadual, o projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Pública e, por meio do programa de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), foram promovidas equipes de saúde mental na atenção básica (Brasil, 2016).
Apesar disso, a realidade no estado em 1991 era de 36 hospitais psiquiátricos em funcionamento, totalizando 8.087 leitos, o que implicou um desafio a ser enfrentado nos próximos anos com o objetivo de mudar o paradigma no estado e criar e implementar os serviços abertos e substitutivos (Brasil, 2016).
Na década de 1990, o Ministério da Saúde inicia a publicação de normativos que começam a delinear uma política de saúde mental, que considera a lógica de cuidado de base territorial. Tais normativas favoreceram a expansão de serviços comunitários substitutivos aos hospitais, a redução de leitos e o fechamento de hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento de ações e estratégias de desinstitucionalização de pacientes moradores de hospitais (Brasil, 2005; Borges e Baptista, 2008).
Nesse sentido, a reforma psiquiátrica brasileira surge com o objetivo não só de fechar os hospitais psiquiátricos e de desospitalizar as pessoas, mas também de devolver a elas o direito de viver em liberdade e de possibilitar assistência em saúde que respeite o sujeito. Esse processo considera a subjetividade do indivíduo e é desenvolvido caso a caso, levando em conta a singularidade social, clínica e jurídica do indivíduo.
A partir dos anos 2000, ocorreram avanços na implantação de serviços fundamentados nas diretrizes da Lei 10.216/2001, que buscaram consolidar um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária com a introdução do paradigma da atenção psicossocial como modo de atenção (Almeida e Campos, 2019).
Um dos serviços que integram o processo de desinstitucionalização e visa auxiliar a reinserção social dos pacientes/moradores institucionalizados em hospitais psiquiátricos são os serviços residenciais terapêuticos (SRT). Os SRTs são moradias ou casas presentes na comunidade, destinadas ao cuidado de pessoas com transtornos mentais egressos de hospitais psiquiátricos e de custódia que permaneceram nestes por longo período e que não possuam suporte social e laços familiares que permitam a sua inserção na sociedade (Brasil, 2011).
Considerando a importância do arcabouço legal vigente para a concretização do processo de desinstitucionalização, delineou-se a presente investigação com o objetivo de analisar as legislações que subsidiarão o fomento aos SRTs existentes no estado e quais são seus avanços e desafios dessa política.
Métodos
Trata-se de revisão integrativa de literatura, considerada como método de pesquisa que permite a síntese do estado do conhecimento de um assunto, possibilitando a identificação de conclusões gerais a respeito de uma área de estudo e a inclusão de dados de literatura teórica e empírica, o que aumenta a profundidade e abrangência das conclusões, bem como o profundo entendimento de um determinado fenômeno (Mendes et al., 2008).
A construção da revisão integrativa seguiu estas etapas: 1) identificação do tema ou questão de estudo; 2) estabelecimento de critérios para a inclusão e exclusão de estudos; 3) definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados; 4) análise crítica das legislações; 5) interpretação dos resultados obtidos com a revisão; 6) elaboração da síntese do conhecimento.
O levantamento bibliográfico foi realizado por meio da identificação e seleção de políticas no portal “Pesquisa legislativa” (http://pesquisalegislativa.mg.gov.br/Legislacao.aspx), que reúne todas as normas já publicadas no Diário Oficial dos órgãos do Poder Executivo de Minas Gerais. A busca foi realizada separadamente utilizando como estratégia as palavras-chave “serviços residenciais terapêuticos”, “serviço residencial terapêutico”, “desospitalização”, “serviços substitutivos” e “desinstitucionalização”, com a inclusão de todos os resultados encontrados nas abas “leis, decretos e outras normas” e “Resoluções, portarias, deliberações e outros”, apresentando um número de 307 resoluções, portarias, leis, decretos, resoluções conjuntas, entre outros, entre 1972 e 2023.
Após esse processo, foram eliminadas 114 legislações duplicadas, restando um total de 193, das quais foram excluídas resoluções específicas de custeio anual de serviços e/ou incentivo financeiro, listas de beneficiários, alterações de legislações de custeio anual de serviços, incentivo e beneficiários, títulos de ressarcimento, legislações de realocação de recurso e legislações que não se referiam ao escopo pesquisado, restando um total de 16 normativas.
A seguir, as normativas foram reunidas e lidas em sua completude e então foram excluídas as que não tratavam do SRT, do processo de desospitalização/desinstitucionalização e as que apenas citavam estes sem maiores explicações, restando assim uma amostragem final de quatro legislações.
Resultados
Foram selecionadas quatro normativas para a análise aprofundada, conforme a Tabela 1. Destas são duas deliberações, uma resolução e uma lei estadual, sendo a mais antiga de 1995 e a mais recente de 2022.
Após a leitura das legislações e pautados nas dimensões transversais e indissociáveis, que orientam a reforma psiquiátrica brasileira de Paulo Amarante (2007), elencamos duas categorias temáticas: “Dimensão jurídico-política” e “Dimensão técnico-assistencial”. A primeira diz respeito às políticas que previam a criação do SRT no estado e posterior reconhecimento como estratégia de saúde no processo de desinstitucionalização dos usuários. A segunda reúne as políticas de fortalecimento técnico, que trazem à tona o regramento e as estruturas básicas de funcionamento destas (Amarante, 2007).
Dimensão jurídico-política
No que tange ao reconhecimento da necessidade de criar uma política que altere a lógica de psiquiatrização no estado de Minas Gerais, podemos elencar como principal legislação, a Lei 11.802 de 1995, que modifica a visão do Estado com relação ao indivíduo em sofrimento mental, tornando o Estado corresponsável pela criação dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos e pelo cuidado em liberdade como norteador da oferta deste. Ademais, a lei veta a criação de novos serviços destinados a esses indivíduos que impliquem segregação e prevê o fechamento dos hospitais psiquiátricos existentes no estado.
Como forma de desinstitucionalizar os pacientes/moradores das instituições hospitalares, foram criados os conselhos estaduais e municipais para fiscalização, controle e execução dos serviços públicos de saúde com vistas à assistência no processo de reinserção social dos usuários.
Cabe ressaltar que tais políticas sociais tinham como objetivo propiciar a desinstitucionalização de todos os pacientes no prazo de três anos; no entanto, a título de elucidação, as deliberações de regimento interno e de competências e atribuições da Comissão Estadual de Reforma Psiquiátrica de Minas Gerais só foram publicadas em 2004. Já a deliberação que estabelece os “lares abrigados ou similares”, que passam a ser conhecidos como SRT no estado, só é publicada em 2001.
A Deliberação 68 de 2001 estabelece as regras de implantação do serviço e trata das responsabilidades dos municípios na criação e no fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com vistas à inserção do SRT no território, descreve as responsabilidades da Secretaria de Estado de Saúde quanto ao incentivo da implantação do serviço, com o repasse do recurso deste e com a supervisão controle daquelas. Ademais, a deliberação prevê as fontes de custeio que se darão por meio da realocação da autorização de internação hospitalar do leito hospitalar anteriormente ocupado para o município.
A deliberação trata também dos serviços ambulatoriais substitutivos que o território necessita possuir previamente para a implantação de SRT, do plano municipal de saúde mental e do projeto técnico para o SRT. Cabe também ao município prover a infraestrutura física do serviço, investir recursos financeiros, materiais e humanos para sua manutenção, supervisão e controle dos SRTs.
Vale ressaltar que, por mais que tais legislações estejam inseridas na categoria “dimensão jurídico-política”, os conceitos delas são somente os mais predominantes, não excluindo outras vertentes da teoria de Amarantes (2007), como notado pela inclusão de conceitos da reforma psiquiátrica nessas legislações, que, de acordo com a dimensão “teórico-conceitual”, para nortear tal mudança de paradigma, fazem-se necessários a incorporação de tais embates sociopolíticos e o questionamento do saber científico até então empregado.
Tal vertente também indica mudança na assistência à saúde (dimensão técnico-assistencial), pois a criação dessa lógica antimanicomial modifica drasticamente as formas de assistência à pessoa em sofrimento mental. Já a participação de movimentos da sociedade civil (dimensão sociocultural) é notada na criação de tais políticas através de movimentos, fóruns e conferências com grande participação do controle social.
Dimensão técnico-assistencial
No que tange às legislações com maior enfoque na caracterização das práticas a serem realizadas no SRT e no regramento do serviço, temos a Resolução 5.461 de 2016, que surge em um contexto em que a então coordenação de saúde mental de Minas Gerais visava fortalecer os serviços das RAPS (Brasil, 2016). Ela estabelece a Política Estadual de Saúde Mental de Minas Gerais, a qual garante recursos de implantação e custeio dos serviços previstos nesta, lança ações estratégicas com o objetivo de expandir e fortalecer a rede, traz as responsabilidades comuns entre estado e municípios, bem como as responsabilidades da Secretaria de Estado de Saúde e das Secretarias Municipais de Saúde.
Entre as ações estratégicas previstas para o SRT, destaca-se a implantação prioritária desse dispositivo em municípios que possuem pacientes internados a mais de dois anos em hospitais psiquiátricos públicos e privados com o Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS), conforme levantamento que foi realizado em 2015. Pode-se citar também a iniciação do processo de desinstitucionalização de usuários do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e a discussão de tal assunto nos municípios que ainda possuem hospitais psiquiátricos.
Além disso, a resolução traz para o âmbito estadual o regramento estabelecido pela Portaria 106 de 11 de fevereiro de 2000 do Ministério da Saúde, como os tipos I e II, sendo o tipo I responsável por acolher até oito moradores e o tipo II responsável por acolher até 10 moradores. Ela estabelece também a equipe mínima que deve compor cada um dos módulos do serviço e o vínculo de seu supervisor com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Ademais, trata do processo para habilitação e credenciamento destas junto ao Ministério da Saúde. Tal processo é necessário para que o ministério reconheça o serviço como funcionante e parte da RAPS de determinado território e comece a realizar o repasse dos recursos financeiros federais, o que só ocorre após a habilitação do serviço.
A Deliberação 3.767 de 2022 reafirma os serviços pertencentes à RAPS previstos na Resolução 5.461 de 2016, cofinanciados pelo Estado, e descreve as diretrizes de tais serviços, caracterizando-os conforme a política estadual de saúde mental . Além disso, a deliberação modifica o vínculo de um profissional do CAPS com o SRT e passa a articular o SRT com os serviços da Atenção Primária à Saúde e com o CAPS, bem como a trazer a necessidade de comprovação do período de internação do usuário para o pleito de vaga alterado na Portaria 3.588 de 21 de dezembro de 2017.
Importante destacar que, na deliberação supracitada, são ressaltados as atribuições/atividades a serem desenvolvidas pelo serviço e maiores detalhes de acolhimento no que diz respeito aos usuários provenientes do hospital de custódia, assim como a ordem de preferência para o ingresso deles, os fluxos judiciários e a coparticipação da assistência social no processo anterior à tentativa de pleito de vaga em SRT.
Discussão
O processo de desinstitucionalização não é uma “questão exclusivamente científica a encontrar explicação e solução na ciência, mas é também um problema técnico, normativo, social e existencial” (Amarante, 1996, p. 104). Logo, a residência terapêutica está atrelada a um “conjunto de possibilidades de produção de vida e de reprodução social que não são apenas técnicas, mas sociais, políticas e existenciais” (Amarante, 1996, p. 104).
Residência Terapêutica se constitui como dispositivo no processo de desinstitucionalização das pessoas acometidas de transtorno mental, com o intuito de promover a construção da sua inserção na comunidade. As residências se constituem como espaços de habitação e de reconstrução de laços sociais e afetivos para as pessoas que se encontravam confinadas nos hospitais psiquiátricos. No ambiente residencial não são mais considerados pacientes e sim moradores. (Cavalcanti, 2005, p. 32)
Assim, as normativas mais antigas trazem uma caracterização mais simplória no que diz respeito aos “lares abrigados” e as mais recentes, um regramento mais robusto, uma vez que novos elementos são somados às anteriores.
No que concerne à concepção e avanços das legislações que tratam dos SRTs, percebe-se que ambas seguiram uma linearidade, com a incorporação de novas regras e parâmetros, e com a caracterização do serviço, não havendo mudanças significativas no que tange aos elementos já postos anteriormente.
Tal medida de maior regramento e caracterização é de suma importância tendo em vista a singularidade dos SRTs, uma vez que, assim como todo o trabalho no campo da saúde mental, a atuação nesses dispositivos necessita de intersetorialidade e conhecimento (Desviat e Ribeiro, 2015). Apesar de tais serviços serem caracterizados como pertencentes a grande área da saúde, eles possuem conexão com a assistência social, já que se trata de serviço estratégico, de âmbito residencial que tem o objetivo de devolver ao usuário a sua autonomia e o direito de viver em comunidade.
Levando isso em consideração, é preciso dizer que, segundo a lógica da reforma psiquiátrica brasileira, o SRT corresponde a uma casa onde é prevista a reabilitação psicossocial, e não meramente local de abrigamento social. É importante destacar que a reabilitação psicossocial do morador está atrelada diretamente ao processo de aquisição de autonomia e reinserção no meio social; assim, a construção do cotidiano da casa se dá de maneira subjetiva, ou seja, pela história de cada morador (Kantorki et al., 2014). No que tange às questões de saúde dos moradores, estas devem ser trabalhadas fora da casa, ou seja, nas redes de saúde que compõem o SUS.
Entretanto, essa correlação de conhecimentos traz um desafio para a gestão: o atravessamento do sistema judiciário (Amarante, 2007). Devido ao SRT ser um serviço estratégico da saúde com grande correlação com outras áreas, como a assistência social, muitos são os entraves no âmbito judiciário que, por vezes, representam obstáculos no exercício da cidadania dos usuários de saúde mental (Amarante, 2007).
Em razão desse caráter multiprofissional e da falta de conhecimento sobre o serviço, muitas vezes, o SRT tende a ser confundido como um local de abrigamento social e não um serviço de saúde que possui singularidades e requisitos de acesso. Por conseguinte, as legislações passaram a estabelecer mais critérios para o acolhimento dos usuários.
Nesse sentido, muitos foram os avanços das legislações de SRT quando comparados os conteúdos da Lei 11.802 de 1995 e da Deliberação 3.767 de 2022. Pode-se observar, na leitura das legislações, que houve um processo de regramento mais robusto, uma delimitação mais precisa do seu escopo de atuação para que esse espaço se caracterize como dispositivo de reabilitação psicossocial.
A Deliberação 3.767 de 2022 traz regramento mais robusto acerca dos usuários acolhidos do hospital de custódia, o que pode também ser indício de possível mudança no perfil dos abrigamentos, uma vez que, com a tendência de extinção dos hospitais psiquiátricos, o serviço cesse a admissão de pessoas advindas destes. Por sua vez, isso não ocorre com o hospital de custódia, pois este está atrelado ao sistema judiciário que está em constante admissão de novos usuários que posteriormente podem se tornar candidatos a um SRT.
Tal fator, quando exposto à luz de elementos postos pela reforma psiquiátrica brasileira, deve ser levado em consideração, uma vez que demonstra uma visão ainda de punição e exclusão da loucura. Conforme apresentado anteriormente, o hospital de custódia do estado surge de um contexto no qual o louco infrator precisava ser punido para que se controlasse a marginalidade vivida na sociedade, no entanto se sabe que, por trás deste, existem inúmeros fatores envolvidos, como um momento de maior desorganização psíquica.
Ademais, como visto, em 1991, o total de leitos psiquiátricos no estado era de 8.087, já em 2022 este se encontra em 509 leitos, ambos desconsiderando o hospital de custódia (Escola de Saúde Pública, 2022). Apesar da diminuição drástica no número de leitos, é preciso considerar que a Lei estadual 11.802 de 1995 prevê a desinstitucionalização de todos os pacientes em desamparo sociofamiliar no prazo de três anos, no entanto o processo sofreu atrasos que perduram até a atualidade.
Nesse sentido, deve-se ter em mente os fatores que podem dificultar sua implantação nos diferentes territórios, sendo que a concepção de território, no contexto em que esse serviço se insere, é de suma importância nos paradigmas vividos no âmbito da gestão, da assistência e da individualidade de cada usuário (Amorim e Dimenstein, 2009).
Para a inserção de um SRT, é necessária uma rede de atenção extra-hospitalar consolidada, a fim de suprir as necessidades desses indivíduos, e não meramente a desospitalização do usuário, o que evitaria a reinstitucionalização dele. Ademais, urgem uma alta articulação entre os entes públicos e até mesmo a sensibilização destes no que tange à mudança da visão do usuário de saúde mental como perigoso ou desqualificado e ao desmonte da lógica manicomial no território em que ele irá se inserir. Ainda, deve-se deixar de lado a visão do transtorno mental como problema a ser curado e o ideal de que todo usuário terá vida produtiva, reproduzindo paradigmas sociais (Amorim e Dimenstein, 2009).
Além desses paradigmas, de acordo com Martins et al. (2012), outra questão a ser levada em conta na implantação de um SRT é a dificuldade, por parte das prefeituras, em alugar os imóveis. As imobiliárias e os proprietários têm resistência em alugar por temor ao descumprimento dos contratos por parte do ente público, assim como a possível dificuldade no processo de rescisão contratual destes (Martins et al., 2012). Ademais, segundo eles, tal processo exige a reorganização dos serviços, sendo necessária até mesmo a revisão de práticas para que estas visem estimular as potencialidades dos usuários e evitem o controle arbitrário sobre eles na RAPS da região (Martins et al., 2012).
Conclusões
Diante desses apontamentos, evidencia-se que as legislações facilitaram o processo de construção de uma rede de serviços substitutivos para que fosse possível concretizar o processo de desinstitucionalização, sendo que o SRT se coloca fundamentalmente como dispositivo da atenção em saúde mental que exige constante reflexão sobre as práticas e os saberes no processo de desinstitucionalização em andamento.
O fortalecimento de tal serviço faz-se necessário, uma vez que o processo de desinstitucionalização do estado ainda não foi finalizado, necessitando de amplo debate com gestores municipais e estaduais quanto ao fortalecimento da RAPS e à reinserção dos usuários restantes na sociedade e no espectro do cuidado em liberdade.
Além disso, maiores debates que visem cercar o tema “louco infrator” necessitam surgir, a fim de criar políticas de saúde e fluxos sólidos que não tornem o hospital de custódia do estado uma nova forma de punir a loucura.
Referências
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Notas
*
Artículo de revisión
Autor notes
aAutor de correspondencia. Correo electrónico: andrevitorferreiradesouza@gmail.com
Informação adicional
Cómo citar: Ferreira de Souza, A. V., Freitas, I. de J., Vasconcelos Alcântara, A. y Mattos Pereira, L. S. (2024). El servicio residencial terapéutico (SRT) como protagonista del cuidado en libertad: avances y desafíos de las políticas en Minas Gerais. Revista Gerancia y Políticas de Salud, 23. https://doi.org/10.11144/Javeriana.rgps24.srtp