Em defesa de seu esposo: o protagonismo de Séfora em Ex 4,24-26*

In Defense of Her Husband: The Protagonism of Zipporah in Ex 4:24-26

Theologica Xaveriana, vol. 69, núm. 187, 2019

Pontificia Universidad Javeriana

Matthias Grenzer a

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil


Francisca C. C. Suzuki

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil


Recepção: 29 Dezembro 2017

Aprovação: 10 Maio 2018

Resumo: Na micronarrativa em Ex 4,24-26, Séfora, esposa de Moisés, se torna modelo para o protagonismo daquelas personagens que, em geral, são avaliadas como secundárias, destacando-se a fundamental importância delas para a história da salvação. No caso, Séfora surpreende em diversos sentidos: literariamente, ela ganha centralidade na cena em questão; historicamente, ao defender a sobrevivência de quem se vê ameaçado e ao assumir protagonismo como mulher, ela talvez contradiga eventuais preconceitos pertencentes a seu contexto cultural; teologicamente, ela é retratada como quem obtém o consentimento de Deus.

Palavras-chave Êxodo, Séfora, narrativa, personagem secundária.

Abstract: In the micronarrative of Ex 4:24-26, Sephora, Moses’ wife, becomes a model for the protagonism of those characters who are generally evaluated as secondary, emphasizing their fundamental importance for the history of salvation. In the case, Séfora surprises in several senses: literally, she gains centrality in the scene in question; historically, in defending the survival of those who are threatened and assuming protagonism as a woman, she might contradict eventual prejudices belonging to her cultural context; theologically, she is portrayed as one who obtains the consent of God.

Keywords: Exodus, Sephora, Zipporah, narrative, secondary character.

INTRODUÇÃO 1

Séfora, esposa madianita de Moisés, não assume o papel de personagem principal na macronarrativa sobre o êxodo, a qual ocupa os últimos quatro livros do Pentateuco. Os protagonistas são, além do Senhor, Deus de Israel, sobretudo Moisés e os israelitas 2 . Séfora, contudo, participa de quatro micronarrativas ou cenas (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). O nome dela é mencionado somente por três vezes (Ex 2,21; 4,25; 18,2), enquanto o nome de Moisés aparece seiscentos e quarenta e sete vezes no Pentateuco (Ex: 290x; Lv: 86x; Nm: 233x; Dt: 38x).

Mesmo assim, apesar de sua presença reduzida, Séfora parece ganhar uma função até decisiva em vista da vocação e sobrevivência de Moisés. Quer dizer, provocado pela própria narrativa bíblica, o ouvinte-leitor é convidado a vislumbrar que o protagonismo, em determinado momento, pertence, de forma surpreendente, ao personagem secundário 3 . Talvez seja exatamente isso que distinga Séfora de um mero “figurante” ou “personagem simples”, o qual cumpre apenas “um papel passivo ou quase passivo (pano de fundo) na narrativa” 4 . Quais são, por sua vez, os elementos que a narrativa bíblica oferece a seu ouvinte-leitor, a fim de que este compreenda o protagonismo de um dos personagens participantes da história contada, quer este seja o protagonista, quer este seja um personagem secundário?

A micronarrativa aqui investigada (Ex 4,24-26) traz Séfora pela terceira vez à memória do ouvinte-leitor das tradições sobre o êxodo. Por isso, é importante rever o que, nos episódios anteriores, já foi narrado a respeito da personagem. Na primeira das micronarrativas que conta com sua presença, Séfora, inicialmente, integra o grupo das “sete filhas do sacerdote de Madiã”, sendo que estas, como pastoras, cuidam do gado menor do pai (Ex 2,16a). Quando elas relatam a seu pai, em determinado dia, o que tinha ocorrido no poço enquanto faziam beber os animais, Séfora, junto às irmãs, realça Moisés como quem as “libertou da mão dos pastores” violentos (Ex 2,19b), “tirou água” para elas do poço (Ex 2,19c) e “fez beber o gado menor” (Ex 2,19d).

Tal acontecimento motiva o sacerdote de Madiã a “dar sua filha Séfora a Moisés” (Ex 2,21b). Assim, esta assume uma relação matrimonial com quem se refugiara em sua terra e lhe “dá um filho à luz” (Ex 2,22a; ver o nome de Gérson em Ex 2,22; 18,3). Ou seja, justamente por tornar-se esposa de Moisés e mãe do filho gerado pelos dois, Séfora, de modo particular, está em conformidade com a lei que prescreve “amar o imigrante” (Lv 19,33-34; Dt 10,19) 5 .

Na segunda micronarrativa em que Séfora aparece (Ex 4,18-20), conta-se como Moisés, após seu encontro com o Senhor, Deus de Israel, no monte Sinai, decide retornar a Madiã e, em seguida, motivado pelas palavras de seu sogro e de Deus, “toma sua mulher e seus filhos, os faz montar um jumento e volta rumo à terra do Egito” (Ex 4,20). De forma surpreendente, ouve-se ou lê-se agora, no plural, “filhos” de Moisés, ou seja, Gérson e pelo menos mais um. Apenas mais tarde o ouvinte-leitor poderá identificar o nome do segundo filho de Moisés (ver o nome de Eliezer em Ex 18,4).

Todavia, sem que se narrasse diálogo algum, surge agora a seguinte cena: Moisés – um líder que se propõe a conduzir o povo dos hebreus para fora da sociedade que os oprime – volta agora, com sua esposa e seus dois filhos, ao Egito. Parece significativo que Séfora, de forma silenciosa e prestativa, lhe faça companhia, favorecendo, assim, a arriscada e perigosa empreitada do esposo 6 .

Enfim, nestas primeiras duas cenas com participação da personagem aqui estudada, observa-se que Séfora ainda não assume, sozinha, protagonismo. Ela atua como pastora junto a suas seis irmãs (Ex 2,16). Também junto às irmãs, ela informa seu pai sobre o ocorrido no poço, participando de um discurso coletivo (Ex 2,19). No mais, é preciso imaginar que, junto a suas irmãs, Séfora chama Moisés para ir ao encontro de Jetro (Ex 2,20). Além disso, é o pai quem dá sua filha Séfora como esposa a Moisés (Ex 2,21).

A única ação que pertence exclusivamente a Séfora ocorre quando ela dá à luz um filho; porém, é Moisés quem dá o nome ao filho do casal (Ex 2,22). Na segunda cena com a participação de Séfora, ocorre algo semelhante no que se refere ao protagonismo dela. É Moisés quem “toma sua mulher e seus filhos, os faz montar no jumento e volta para a terra do Egito” (Ex 4,20). Não se narra nenhum diálogo do casal acompanhando os acontecimentos. Em contrapartida, também não é narrado nenhum tipo de oposição por parte de Séfora ao que acontece.

Todavia, enquanto nas primeiras duas cenas com participação da esposa de Moisés ainda não se revele um protagonismo específico, exclusivo e/ou direto de Séfora, isso muda na terceira cena que a retrata. O estudo exegético aqui apresentado se propõe, justamente, a descrever os pormenores de tal protagonismo. De certa forma, vale para Séfora o que, em geral, se diz sobre as personagens secundárias: “Apenas momentaneamente a narrativa ilumina essas figuras” e isso somente “enquanto elas se cruzam com o protagonista” 7 .

Contudo, os protagonistas ou personagens principais não existem de forma isolada, algo que vale, sobretudo, para Moisés. Pelo contrário, este ganha configuração a partir das inter-relações descritas na macronarrativa. Quer dizer, embora Moisés se torne nas mãos do Senhor, Deus de Israel, o instrumento decisivo no processo de libertação do povo dos oprimidos, ele, em diversos momentos, é descrito como quem é apoiado e até salvo por outros, especialmente por mulheres, entre elas Séfora, sua esposa 8 .

O TEXTO

Texto hebraico segmentado e tradução portuguesa

A micronarrativa em Ex 4,24-26 foi composta, originalmente, em hebraico. A tabela a seguir apresenta, na coluna esquerda, o texto que a Biblia Hebraica Stuttgartensia traz como versão provavelmente mais original 9 . Na coluna central, ocorre a delimitação dos meios versículos. Como não existe consenso quanto a essa subdivisão, a divisão aqui estabelecida será seguida ao longo de todo o estudo. O critério escolhido se baseia, sobretudo, nas formas verbais. E na coluna direita, é mostrada uma tradução ao português de Ex 4,24-26 que já acolhe os resultados dos estudos exegéticos realizados a seguir.






As variantes textuais

As antigas traduções procuram ajudar na leitura desta narrativa tão enigmática. A Peshitta acrescenta, no v. 24a, um sujeito: “Moisés estava no caminho, num lugar de pernoite”. A Septuaginta e o Targum adicionam, no v. 24b, ao tetragrama – traduzido aqui como Senhor (na versão de Áquila, "Deus") – o termo “mensageiro/anjo” (ver Ex 3,2).

No que se refere ao discurso direto de Séfora – “De fato, tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 25e) – e ao comentário apresentado pelo narrador (v. 26b) – “Disse, pois, ‘noivo de sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b) –, a Septuaginta traz o texto de outro modo: “O sangue da circuncisão de minha criança permaneceu firme”. Quer dizer, “na versão da Septuaginta, a frase de Séfora é um tipo de feitiço”, sendo que aqui “se narra outra história, diferente do texto massorético” 10 .

No v. 26a, o Pentateuco Samaritano traz outro sufixo pronominal. Em vez de ler “E [ele] o largou”, apresenta a variante “E [ele] a largou”, dando a entender que o Senhor tinha dado trégua a Séfora, após a luta dramática dela pela vida de seu esposo.

Enfim, as variantes podem ser compreendidas como tentativas de facilitar a leitura de um texto exigente. São acréscimos, mudanças pontuais ou até reformulações mais amplas, marcados pelo esforço de, através de determinada interpretação, favorecer a compreensão do que está sendo narrado. No entanto, como versão mais difícil, o texto massorético, em geral, merece a preferência como versão provavelmente mais original e, por isso, será aqui seguido na íntegra 11 .

ESTUDO LITERÁRIO

Delimitação e contexto literário

Em Ex 4,20a-c, a narrativa do êxodo informa o ouvinte-leitor sobre o fato de que “Moisés tomou sua mulher e seus filhos, os fez montar um jumento e voltou rumo à terra do Egito” (Ex 4,20a-c). Tal volta foi motivada pelo diálogo que Moisés teve com o Senhor no “monte de Deus”, “além do deserto” (Ex 3,1–4,17), pela conversa com o sogro e pela palavra que o Senhor continuava a dirigir a Moisés, agora em “Madiã” (Ex 4,18-20). Em Ex 4,21-23, ouve-se ou lê-se ainda outro discurso do Senhor dirigido a Moisés. Destaca-se aquilo que o futuro líder dos hebreus deve ter em mente “ao andar”, ou seja, “ao voltar ao Egito” (Ex 4,21b-c). Não está claro se tal discurso já se dá no caminho rumo ao Egito ou ainda no momento de partida em Madiã.

Com as notícias iniciais na micronarrativa aqui estudada, ocorre um avanço geográfico e cronológico. Parte do “caminho” (v. 24ab) rumo ao Egito ficou para trás. O grupo formado por Moisés – ele, sua mulher, seus filhos e o jumento – chegou a um “lugar de pernoite” (v. 24a). Trata-se, portanto, de um novo ambiente. E o que ali “aconteceu” (ver וַיְהִי no v. 24a) dá origem à trama da nova cena. Aliás, a forma verbal aqui mencionada, como “marcador de tempo”, funciona como fórmula que, em diversos momentos, indica o “início de uma narrativa” (ver Ex 2,11.23; 6,28; 13,17).

Todavia, a trama ou o enredo se inicia, aparentemente, com a notícia de que “o Senhor foi ao encontro de” Moisés (v. 24b) e se encerra quando ele “o largou” (v. 26a). Trata-se dos pontos-limite do arco narrativo. No v. 26b, segue-se ainda um “comentário posterior que a narrativa põe na boca de Séfora” 12 . Ao analisar o conteúdo desse último meio versículo, haverá a oportunidade de compreender a provável intenção que acompanha o desfecho.

Percebe-se também na continuação da leitura da macronarrativa sobre o êxodo que o episódio, no final do v. 26, chega ao fim, uma vez que, a partir de Ex 4,27, a atenção do ouvinte-leitor é novamente dirigida ao Egito e às personagens ligadas a esse ambiente. Moisés, pois, chega agora a seu destino e se encontra com Aarão, os anciãos dos filhos de Israel e o povo dos hebreus (Ex 4,27-31).

Elementos estilísticos e estrutura literária

A micronarrativa aqui investigada parece favorecer certas “indeterminações” no que se refere às personagens participantes do enredo, talvez algo literariamente planejado 13 . Com isso, o texto se torna mais enigmático e/ou misterioso. Menciona-se o nome do “Senhor” (ver o tetragrama no v. 24b) e o de “Séfora” (v. 25a) como sujeitos dos verbos de ação. Narra-se que “o Senhor foi ao encontro” de alguém (v. 24b), “procurou matá-lo” (v. 24c) e, mais tarde, “o largou” (v. 26a). “Séfora”, por sua vez, “tomou uma faca de sílex” (v. 25a), “cortou o prepúcio de seu filho” (v. 25b), “tocou os pés” de um de seus companheiros de viagem (v. 25c) e “disse” palavras (v. 25d) que a narrativa, logo em seguida, apresenta como discurso direto dela: “De fato, tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 25e). Mais ainda, esse discurso de Séfora é retomado e comentado pelo narrador no final do episódio: Séfora “disse, pois, ‘noivo de sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b).

Observa-se, portanto, que a micronarrativa em questão apresenta, sempre na primeira posição da frase, sete formas verbais chamadas de wayyiqtol, imperfeito, futuro invertido ou, simplesmente, narrativo, sendo que se narra como o Senhor e Séfora agiram no momento em que Moisés e sua família voltavam ao Egito 14 . Talvez o emprego do número sete como elemento estilístico para configurar a micronarrativa não seja resultado de mero acaso.

Todavia, embora exista maior clareza em relação ao Senhor, a Séfora e às ações deles, há incertezas quanto às demais figuras participantes na cena aqui estudada, sobretudo no que se refere a Moisés, já que este somente participa da narrativa quando sufixos pronominais remetem a atenção do ouvinte-leitor a ele. A identificação de tais referências, por sua vez, é exigente.

Formula-se, inicialmente, que “o Senhor foi ao encontro dele” (v. 24b) “e procurou fazê-lo morrer” (v. 24c). A quem, todavia, é dirigida essa ação divina? A quem se referem os dois sufixos pronominais traduzidos como “dele” (v. 24b) e “o” (v. 24c)? Na unidade literária anterior à cena aqui investigada, narra-se que “o Senhor falou a Moisés” (Ex 4,21a), sendo que o discurso direto do Senhor é apresentado logo em seguida (Ex 4,21b-23).

Ao dar continuidade a tudo isso, faz sentido imaginar que as palavras do Senhor dirigidas a Moisés sejam seguidas agora por uma ação divina justamente contra esse mesmo interlocutor, ainda que o conteúdo das palavras do Senhor, em princípio, tenha criado uma expectativa diferente no que se refere à relação entre os dois. Tal surpresa, mais tarde, ainda precisará ser discutida.

Uma dificuldade semelhante existe no v. 25b, quando se enuncia que Séfora “cortou o prepúcio de seu filho”. Sabe-se que o casal tem dois filhos (Ex 18,2), pois já foi narrado que Moisés, no momento da partida, “tomou sua mulher e seus filhos” (plural!), “os fez montar no jumento e voltou ao Egito” (Ex 4,20). Nesse sentido, o ouvinte-leitor se pergunta agora a respeito da identidade do filho atingido pela ação de sua mãe. Foi Gérson (Ex 2,22) ou Eliezer (Ex 18,4) que teve o “prepúcio cortado” (v. 25b)?

A incerteza quanto a quem é atingido pela ação de Séfora ainda aumenta quando se narra que ela “tocou os pés dele” (v. 25c). Por acaso se trata dos pés de Moisés ou dos pés do(s) filho(s)? O próprio contexto da micronarrativa parece favorecer a hipótese de que sejam os pés de Moisés, uma vez que, logo após sua ação, Séfora “disse” a este (v. 25d) que ele seria seu “noivo de sangue” (v. 25e). Outra vez, a posterior discussão das dimensões teológicas ajudará a esclarecer o ponto de referência do sufixo pronominal aqui investigado.

Há ainda no texto mais uma incerteza em relação tanto ao sujeito atuante como ao sufixo pronominal. Narra-se no fim do episódio, de forma curta e resumida, que ele “o largou” ou “desistiu dele” (v. 26a). Com isso, o ouvinte-leitor fica com uma questão dupla: quem largou quem ou quem desistiu de quem? A compreensão aqui favorecida busca a solução no contexto da própria micronarrativa. O sujeito atuante, provavelmente, é o “Senhor” (v. 24b), sendo que este, após “ter ido ao encontro” de Moisés (v. 24b), “procurou fazê-lo morrer” (v. 24c), e agora “o larga” (v. 26a). Contudo, não é possível ter segurança total no que se refere a tais identificações, uma vez que as indeterminações, literariamente, parecem querer provocar a sensação do quão misteriosa pode ser a presença de Deus.

Resumindo: até em relação ao Senhor surgem, no final da micronarrativa aqui estudada, dúvidas sobre se é dele que se fala. Muito mais, a cena parece querer deixar Moisés no escuro ou na indefinição. Em momento algum o nome dele é mencionado, assim como o nome do filho circuncidado por Séfora. Em contrapartida, os diversos sufixos pronominais remetem o ouvinte-leitor, de forma constante, ao contexto literário, seja da própria micronarrativa, seja do que foi narrado nas cenas anteriores a ela. Em relação a Séfora, porém, a narrativa não deixa dúvida sobre sua presença e suas ações. Além disso, o único discurso direto é atribuído a ela (v. 25e), o qual, para encerrar a cena, provoca ainda um comentário explícito do narrador (v. 26b).

No que se refere à estrutura literária da micronarrativa aqui analisada, observam-se, a partir do que foi dito até agora, duas sequências de ações. Inicialmente, o Senhor atua. Ele “vai ao encontro de” Moisés (v. 24b) e “procura fazê-lo morrer” (v. 24c). Depois se descreve, de forma mais extensa, a atuação de Séfora. Ela “toma uma faca de sílex” (v. 25a), “corta o prepúcio de seu filho” (v. 25b), “toca os pés de” Moisés (v. 25c) e “diz” (v. 25d) o discurso apresentado no v. 25e. No fim, a micronarrativa, aparentemente, dá continuidade à sequência das ações realizadas pelo Senhor, que agora “larga” Moisés (v. 26a). Ou seja, as ações atribuídas a Séfora ganham centralidade na estrutura literária da narrativa, sendo emolduradas pelas ações realizadas pelo Senhor.

Ou, com outras palavras, uma sequência de ações ocorre, de forma embutida, dentro de outra sequência de ações. Aquilo que se ouve ou se lê, por sua vez, no primeiro e no último meio versículo – ver a notícia geográfica e cronológica no v. 24a e a notícia cultural no v. 26b, ambas apresentadas pelo narrador – pode ser compreendido como uma segunda moldura, sendo que esta enquadra as duas sequências de ações pertencentes ao Senhor e a Séfora. Eis uma visualização esquemática da estrutura literária aqui descrita:

  1. A Notícia geográfico-cronológica apresentada pelo narrador (v. 24a)

  2. B Ações do Senhor (v. 24b-c)

  3. C Ações de Séfora (v. 25a-e)

  4. B’ Ação do Senhor (v. 26a)

  5. A’ Notícia cultural apresentada pelo narrador (v. 26b)

Análise narrativa e gênero literário

Como dito acima, na macronarrativa sobre o êxodo, apresentada nos últimos quatro livros do Pentateuco, Séfora não costuma aparecer como personagem principal. Seu nome, pois, ocorre apenas três vezes (Ex 2,21; 4,25; 18,2), sendo que ela participa de quatro episódios (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). Isso, por sua vez, não significa que, em determinada cena, Séfora não possa evoluir como personagem, atraindo o protagonismo para si.

Ao comparar as quatro cenas com participação de Séfora, é possível observar mudanças em relação ao protagonismo dela. Em Ex 2,15c-22, Séfora, inicialmente, faz parte de um personagem coletivo. Ela é uma das “sete irmãs, filhas do sacerdote de Madiã” (Ex 2,16.18-19). Contudo, no final do episódio em questão, Séfora aparece de forma individual. Primeiramente, é objeto de uma ação de seu pai, quando este a entrega como esposa a Moisés (Ex 2,21). Em seguida, por sua vez, ela se torna sujeito que atua ao “dar à luz um filho” (Ex 2,22), assumindo, ainda que de forma limitada, certo protagonismo.

Em Ex 4,18-20, na segunda micronarrativa com participação de Séfora, o nome dela não é mencionado. Também desta vez ela sofre uma ação. É, pois, “Moisés” quem “toma sua mulher [Séfora] e seus filhos”, “os faz montar um jumento” e, assim, “volta rumo à terra do Egito” (Ex 4,20). Também na quarta e última cena com participação de Séfora ocorre algo semelhante. Agora é “Jetro, sogro de Moisés”, quem “toma Séfora, mulher de Moisés”, e a reaproxima do marido (Ex 18,2.6).

Em contrapartida, no terceiro episódio com participação de Séfora (Ex 4,24-26), sua participação aumenta. Agora ela é um personagem redondo que evolui, ganhando voz e vez. O único discurso direto pertence a ela (v. 25e). Somente a atuação dela é descrita de forma pormenorizada, sendo-lhe atribuídas quatro ações (v. 25a-d) que, em seu conjunto, provocam tranquilidade ou distensão no enredo, sendo que ela parece influenciar e até reverter a ação dramática do Senhor contra Moisés (v. 24b-c.26a).

Mais ainda, quanto à família em questão, Séfora ganha centralidade. O “filho”, pois, é descrito como sendo “dela” (v. 25b). E também Moisés, cujo nome o episódio não menciona, é definido em relação a Séfora, ganhando evidência no momento em que ela afirma: “Tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 25e). Enfim, a micronarrativa aqui estudada “sublinha, de forma efetiva, a função da mulher como centro do grupo dos três atores humanos”. 15

Em princípio, “personagens secundárias têm papéis secundários na narrativa, porque estão menos presentes e são menos importantes no enredo, ou porque somente contribuem com a ação ou a transformação da personagem principal, o protagonista” 16 . Todavia, nem sempre é fácil distinguir entre personagem principal e secundária. Existem, pois, “graus diferentes no que se refere à importância das figuras”; quer dizer, há personagens secundárias que, “como pessoas anônimas”, somente “realizam um papel técnico menor”, mas há “personagens secundárias que cumprem uma função tão importante que a decisão sobre se ainda são secundárias é difícil” 17 .

No que se refere a Séfora em Ex 4,24-26, o ouvinte-leitor se encontra diante de uma figura secundária que assume o protagonismo. A micronarrativa em questão sublinha isso tanto pela configuração literária dada a ela como pelo conteúdo veiculado por ela, sendo que a segunda afirmação ainda receberá maiores explicações neste estudo.

Focando o gênero literário, a micronarrativa aqui investigada guarda certa proximidade com o episódio no qual Jacó, no vale do rio Jaboc, enfrenta um ataque noturno de Deus (Gn 32,23-33). Entre outros paralelismos que criam uma maior relação entre Jacó e Moisés, ocorre que ambos, ao retornarem à sua terra de origem, enfrentam, como experiência limiar, a agressão do adversário divino 18 .

No entanto, embora existam elementos comuns entre as duas micronarrativas, também há diferenças significativas. Por exemplo, em Ex 4,24-26 não se menciona um lugar geográfico específico, a fim de que se possa vislumbrar, por detrás do texto, a etiologia de um determinado local que, originalmente, gozasse de autonomia literária, assim como é possível imaginá-lo em relação a “Fanuel” (Gn 32,30-31) 19 . Além disso, Jacó não é salvo pelo protagonismo de uma mulher como Séfora, mas ele enfrenta a luta contra o agressor divino.

Enfim, a micronarrativa em Ex 4,24-26, de certo modo, acolhe alguns motivos ou elementos teológicos que se fazem presentes também em outras tradições literárias da Bíblia hebraica. Os estudos histórico-teológicos a seguir irão discuti-los de forma pormenorizada. No entanto, afirma-se que a cena aqui estudada guarda sua singularidade sobretudo no que se refere à trama e à sequência dos acontecimentos, assim como à reflexão teológica promovida pelo episódio.

COMENTÁRIOS HISTÓRICO-TEOLÓGICOS

A reação de Séfora

A ação do Senhor, Deus de Israel, de ir “ao encontro” de Moisés (v. 24b) e “procurar fazê-lo morrer” (v. 24c), surpreende enormemente o ouvinte-leitor da macronarrativa sobre o êxodo. Deus faria, pois, o que as parteiras “não fizeram” (ver Ex 1,16-17)? Por acaso, o Senhor não tinha chamado Moisés para que este voltasse ao Egito e conduzisse os hebreus oprimidos fisicamente para fora da sociedade opressora (Ex 3,10; 4,12.21)?

Ao acolher a surpresa apresentada pela narrativa, porém, é possível compreender algumas conotações simbólico-teológicas do que está sendo contado.

Aliás, por vontade do Senhor, Moisés irá morrer antes de o projeto do êxodo se realizar plenamente, com a instalação das tribos que ocupariam terras na Cisjordânia (Nm 20,12; Dt 34,5). Neste caso, é possível entender que se tratou de uma reação do Senhor à postura aparentemente equivocada de Moisés de atribuir-se, junto com Aarão, o milagre das águas que brotaram da rocha em Meriba (Nm 20,11).

Também em vista de Ex 4,24-26 é possível imaginar que Moisés tenha provocado a agressão divina, seja por ter ferido mortalmente um egípcio (Ex 2,11-15c), seja por ter hesitado em aceitar o chamado do Senhor, apresentando uma série de objeções (Ex 3,1–4,16).

Por fim, a literatura bíblica conhece o tema de o Senhor tornar-se um agressor que, aparentemente, de modo infundado pode atingir a pessoa em sua integridade física e/ou moral. Como exemplo, cabe mencionar Jó (Jó 42,11), o servo sofredor (Is 53,6.10) e os justos que se lamentam nos Salmos (Sl 34,20; 69,27; 71,20; 88,7-9.17). Trata-se, portanto, de uma experiência mística não tão isolada, a qual as tradições do êxodo, na cena aqui estudada, acolhem na figura de Moisés.

Todavia, se a ação do Senhor (v. 24) já surpreende o ouvinte-leitor, igualmente o faz a reação de Séfora (v. 25). Narra-se, no primeiro momento, que ela “tomou uma faca de sílex” (v. 25a). Ou seja, a mulher que, anteriormente, foi “tomada” por Moisés – para que o acompanhasse em sua volta ao Egito (Ex 4,20) – e que Jetro, mais tarde, “tomará” – para, como pai, entregá-la uma segunda vez a seu esposo Moisés (ver Ex 2,21; 18,2) – agora “toma” (v. 25a) um instrumento cortante para agir com Moisés. No caso, “a faca de sílex” –uma pedra “dura semelhante a um diamante” (Ez 3,9) ou aos “cascos dos cavalos” (Is 5,28) – lembra Josué, que, por ordem divina, “fará para si facas de sílex, a fim de circuncidar os israelitas na colina dos prepúcios” (Js 5,2-3). Portanto, o tema da “circuncisão” (v. 26b) já ganha alguma presença no episódio aqui estudado por causa do objeto tomado por Séfora.

No segundo momento, a narrativa expõe que Séfora “cortou o prepúcio de seu filho” (v. 25b). Agora o motivo do “prepúcio” (v. 25b; Gn 17,11.14.23.24.25; 34,14; Lv 12,3; Dt 10,16) traz à mente, conotativamente, o assunto da “circuncisão” (v. 26b). Cabe muito bem aqui uma imagem da iconografia egípcia que mostra a cena de uma circuncisão. Trata-se de um relevo do túmulo de Ankhmahor, encontrado em Sacará, do período da sexta dinastia (2350-2000 a.C.). No lado esquerdo, vê-se “um sacerdote agachado, o qual, com um instrumento oval (faca de sílex?), opera a circuncisão”, enquanto “um ajudante segura o jovem a ser circuncidado”; no lado direito, “ocorre o tratamento das feridas, novamente através do sacerdote” 22 . Em princípio, a circuncisão é um rito comum a diversas culturas (ver a menção de Egito, Judá, Edom, Amon, Moab e dos moradores do deserto em Jr 9,24-25).

Cena de circuncisão do
Antigo Egito
23
Figura 1
Cena de circuncisão do Antigo Egito 23


Todavia, a cena aqui estudada dá destaque a Séfora. “Embora o pai esteja presente, a circuncisão, contra o costume, é realizada pela mãe”, algo que talvez “possa ser explicado ainda pela situação de maior urgência (1Mc 1,60; 2Mc 6,10)” 24 . De qualquer modo, é Séfora quem “corta o prepúcio de seu filho” (v. 25b).

No terceiro momento, ela “tocou os pés” ou, acolhendo o sentido metafórico da expressão, os genitais de seu esposo Moisés (v. 25c). À primeira vista, a ação de Séfora parece ser um rito apotropaico, semelhante à aplicação do “sangue sobre as casas” pelos israelitas por ocasião da primeira páscoa no Egito (Ex 12,7.13.22-23). Nesse sentido, tratar-se-ia de uma “ação ritual e simbólica, a qual serve à prevenção de um mal de, em geral, causa transcendental, estando este já presente ou pertencente ao futuro” 25 .

Em todo caso, Séfora é caracterizada pela micronarrativa como quem age no momento de maior dramaticidade, e isso contrariamente a seu esposo. “Como nome, pois, Moisés não aparece no texto; mais ainda, ele também nada faz” 26 . Séfora, por sua vez, “com seu papel ativo e salvífico”, assemelha-se às “personagens femininas” das parteiras (Ex 1,15-22), da mãe e irmã de Moisés, assim como à filha do faraó (Ex 2,1-10), justamente por favorecer a sobrevivência do futuro libertador, sendo que a vida dele se configura como “sequência de ameaças mortais e salvações” 27 .

O discurso de Séfora

A reação de Séfora ao ataque do Senhor a seu esposo culmina num discurso que ela dirige, aparentemente, a Moisés: “Disse (v. 25d): ‘De fato, tu és um noivo de sangue para mim’” (v. 25e). Além disso, “ao Séfora chamar Moisés de noivo de sangue, surge a ideia de que ela, por aplicar o sangue da circuncisão a seu esposo, motive Deus a desistir de atacar Moisés” 28 . Quer dizer, o rito celebrado e as palavras faladas por Séfora fazem com que o Senhor “largue” o esposo dela (v. 26a). Que surpresa! Independentemente do que possa ter motivado o Senhor a “ir ao encontro” de Moisés (v. 24b) e “procurar fazê-lo morrer” (v. 24c), agora o Deus de Israel entra em sintonia com Séfora, acompanhando a ação dela em defesa da vida de seu esposo.

A micronarrativa aqui estudada não deixa claro se Séfora, desde o início, tem a intenção de realizar uma circuncisão. Como visto acima, a “faca de sílex” (v. 25a) e o “corte” realizado no “prepúcio” (v. 25b), de forma indireta, remetem o ouvinte-leitor a essa ideia. Além disso, o comentário do narrador no final do episódio (v. 26b), diretamente, apresenta tal leitura. No entanto, até a penúltima frase o episódio mantém o caráter enigmático do que está sendo narrado. Assim, é possível pensar que Séfora, como “filha” do “sacerdote de Madiã” (Ex 2,16.21), esteja familiarizada com ritos religiosos e, no caso, apotropaicos, de acordo com sua cultura de origem.

No entanto, em vez de querer definir essa ambiguidade, vale a pena ater-se ao que está sendo narrado. De certo, a sobrevivência de Moisés se dá porque o Senhor “o larga” (v. 26a; ver o verbo “largar” com o mesmo sentido em 2Sm 24,16; 1Cr 21,15; Jó 7,19). No entanto, o discurso de Séfora também parece transmitir a impressão de que “a proteção do homem” se encontre justamente em sua “relação com a mulher” 29 . Chama, pois, a atenção do ouvinte-leitor que Séfora interprete o gesto ou rito celebrado por ela no sentido de uma renovação da relação que existe entre ela e Moisés. Nesse sentido, dois detalhes em seu discurso “Tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 26a) merecem atenção.

Primeiramente, Séfora chama seu esposo de “noivo”, termo marcantemente repetido no final da micronarrativa (v. 25e.26b). Com isso, a esposa de Moisés relembra o “dia do casamento” (Ct 3,11), da “saída do noivo de seu quarto” ou da “câmara nupcial” (Jl 2,16; Sl 19,6), e da felicidade ligada às “vozes de noivo e noiva” (Is 61,10; 62,5; Jr 7,34; 16,9; 25,10; 33,11). Ou seja, por mais que o termo aqui traduzido como “noivo” (ver חָתָן no v. 25e.26b) “indique uma relação para a vida inteira”, a palavra em si remete ao momento em que a união do casal foi selada, sendo que o hebraico bíblico conhece outras expressões para “marido” (ver בַּעַל em Gn 20,3; Ex 21,3.22; Dt 22,22; 24,4; 2Sm 11,26; Os 2,18; Jl 1,8; Pr 12,4; 31,23.28; Est 1,17) ou “homem” que, por laços matrimoniais, pertence a determinada mulher (ver אִישׁ , por exemplo, em Gn 3,16; Pr 7,19) 30 .

Em segundo lugar, Séfora, ao dirigir-se a Moisés, usa em seu discurso direto o pronome pessoal da segunda pessoa do singular – “tu” (v. 25e) – e, quando se refere a si mesma, uma preposição seguida pelo sufixo pronominal da primeira pessoa do singular – “para mim” (v. 25e). Assim, ela realça retoricamente a relação do casal. Surge, com isso, a impressão de que parte do mistério da salvação da vida de Moisés se encontre na união do casal – “tu e eu” –, como se Deus respeitasse a luta da esposa em defesa do marido.

A religiosidade de Séfora

No final do episódio aqui estudado, o narrador afirma que Séfora “disse ‘noivo de sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b). Como dito acima, as menções da “faca de sílex” (v. 25a) e do “prepúcio cortado” (v. 25b) já permitem perceber que Séfora talvez esteja realizando uma circuncisão. Contudo, também é possível entender que a esposa de Moisés esteja celebrando um rito apotropaico, no qual ela afasta o mal de seu esposo ao “tocar-lhe os pés” (v. 25c) com o “sangue” (v. 25e.26b) do “prepúcio cortado” (v. 25b), assim como os israelitas, na noite da saída do Egito, iriam “tocar, com o sangue” do “gado pequeno abatido”, “a verga e as ombreiras” das portas, a fim de que o “danificador não entrasse em suas casas” (Ex 12,21-23).

Contudo, o episódio aqui investigado não narra expressamente que Séfora “tocou os pés” de Moisés (v. 25c) com o “sangue” duplamente mencionado (v. 25e.26d). Além disso, a expressão enigmática “noivo de sangue” (v. 25e.26b) ainda abre espaço para outra compreensão. Em vez de entender que a micronarrativa vise ao sangue do “prepúcio cortado” (v. 25b), é possível vislumbrar uma referência aos sangues de Séfora, especialmente aos sangues que a mulher perde no momento do parto e no período do resguardo.

Nesse sentido, faz todo o sentido lembrar das leis em Lv 12,2-4. Nelas, o legislador israelita prescreve, primeiramente, que “a mulher, após ter dado à luz um menino”, é considerada “impura durante sete dias, assim como nos dias da menstruação” (Lv 12,2). Em um segundo momento, determina-se que, “no oitavo dia, deve ser cortada a carne do prepúcio” do menino recém-nascido (Lv 12,3). Em terceiro lugar, segue-se a prescrição a respeito dos “trinta e três dias” de resguardo para a mulher parturiente, por causa do “sangue de purificação” (Lv 12,4).

Ou seja, “como há uma perda maior de sangue durante o parto, o mesmo ocorre nas primeiras semanas após o parto”, justamente por causa do “processo de regressão do útero”; por isso, durante esse período, a mulher é liberada dos “esforços” que um “encontro” com Deus “exige da parte do ser humano” 31 . Enfim, é importante perceber como o legislador israelita se preocupa com o sangue da mulher, sendo que esse assunto, nas tradições jurídicas do Levítico, serve como moldura à circuncisão do menino recém-nascido.

Ante este contexto religioso-cultural, Moisés pode ser compreendido, da forma mais direta possível, como “noivo de sangue” de Séfora (v. 25e.26b), justamente por esta lhe ter dado dois filhos (Ex 4,20; 18,3). O respeito que, durante o período menstrual, o do parto e o do resguardo, cabe ao marido em relação à esposa transforma o homem, na base da convivência do casal, em um verdadeiro “noivo de sangues” (v. 25e.26b) 32 . Ao usar tal expressão, Séfora “destaca sua relação com Moisés” e “se declara a este” 33 .

Todavia, em sua última frase, o episódio aqui estudado apresenta a ação de Séfora de “cortar o prepúcio de seu filho” (v. 25b) com uma “faca de sílex” (v. 25a) no horizonte religioso das “circuncisões” (v. 26b). Assim, a esposa madianita de Moisés assemelha-se a Abraão, o qual “tomou seu filho Ismael, todos os nascidos em sua casa e todos os adquiridos por dinheiro, e circuncidou a carne do prepúcio deles” (Gn 17,23), assim como, posteriormente, também “circuncidou seu filho Isaac” (Gn 21,4). Há também um paralelismo com Josué, que “circuncidou os filhos de Israel na colina dos prepúcios” (Js 5,3-4.7).

Como esses dois homens, a mulher Séfora cumpre o mandamento de que, como “sinal da aliança” para com Deus, “todo macho seja circuncidado” (Gn 17,10-11), lembrando-se de que as tradições religiosas do antigo Israel, de forma profética, insistem na dimensão espiritual do rito. Visa-se, pois, à ordem de “circuncidar-se para o Senhor” (Jr 4,4) ou, em outras palavras, de “circuncidar o prepúcio do coração” (Dt 10,16).

Enfim, a cena aqui estudada não revela a idade do “filho” de Séfora no momento de a mãe “lhe cortar o prepúcio” (v. 25b), sendo que as tradições jurídicas, mais tarde, preveem a “circuncisão no oitavo dia” após o nascimento (Lv 12,3). Contudo, Séfora parece promover uma integração em diversos sentidos. De um lado, o ouvinte-leitor pode ter a impressão de que, como madianita, ela tenha adotado “a fé de seu marido” e submetido “sua família às normas israelitas”, algo que se tornou “testemunho de sua integração no povo de Israel” 34 . E isso, justamente, como “contrapeso às múltiplas manifestações hostis contra Madiã no Antigo Testamento (ver Nm 25; 31–32; Js 13,21; Jz 6–8; Is 9,3; 10,26)” 35 . De outro lado, é possível entender que “o Senhor se colocou de forma ameaçadora no caminho, porque Moisés e/ou o filho dele não eram circuncidados, sendo que o caminho somente se abriu quando Séfora superou o defeito circuncidando seu filho e, de forma simbólica, até Moisés” 36 .

Em todo caso, percebe-se que o rito religioso da “circuncisão” (v. 26b) se encontra vinculado ao espaço familiar formado por “Séfora” (v. 25a), “o filho dela” (v. 25b) e o “noivo de sangue” (v. 25e.26b), sendo que a ação decisiva pertence, de forma surpreendente, à esposa e mãe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A macronarrativa bíblica sobre o êxodo apresenta Moisés, um de seus protagonistas principais, como homem casado. Embora sua mulher, a madianita Séfora, participe de apenas quatro episódios (Ex 2,15-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7), cabe justamente a ela a defesa do marido, líder profético a serviço do projeto divino que insiste na libertação dos brutalmente curvados, oprimidos e humilhados. Um conjunto de pormenores da ação de Séfora em defesa de seu esposo ganha destaque na micronarrativa de Ex 4,24-26. Segue-se um resumo dos elementos que a cena em questão realça.

Superação da passividade do outro

Também um líder como Moisés pode experimentar momentos de perplexidade que levam à estagnação e/ou à paralisia total. E isso justamente no caminho que, em princípio, corresponde à vocação anteriormente experimentada. Mais ainda, de forma paradoxal e inexplicável, o próprio Senhor, Deus de Israel, parece atingir o seu profeta, ameaçando-o em sua sobrevivência. O resultado disso é a passividade total. Séfora, por sua vez, supera a passividade do companheiro. Em vez de simplesmente aceitar os fatos, ela encontra uma solução para salvar a vida de seu esposo.

Insistência religiosa no vínculo matrimonial

Séfora celebra, aparentemente, o rito religioso de uma circuncisão, o qual envolve um gesto apotropaico para afastar o mal de quem tem sua sobrevivência ameaçada. Tal celebração envolve a família: como mãe, ela corta o prepúcio do filho; como esposa, toca os pés de seu marido com o sangue que o rito fornece. Por excelência, porém, Séfora insiste, por intermédio do rito religioso, na relação com seu marido. Chamando este de noivo, ela liga Moisés aos sangues dela, fazendo assim memória da fertilidade, dos nascimentos dos filhos e dos períodos de resguardo.

Defesa da vida do esposo junto a Deus

A insistência religiosa de Séfora na união matrimonial e familiar se torna, misteriosamente, uma contribuição à sobrevivência de Moisés, o qual quase teve sua vida tirada por Deus. Quer dizer, de forma surpreendente, Deus parece aceitar o rito religioso celebrado pela mulher, especialmente quando esta, ao insistir na comunhão de vida com seu parceiro, se propõe a reverter a situação dramática dele. Dessa forma, o gesto profundamente humano revela sua capacidade de acolher o divino.

RECONHECIMENTO

Artigo de investigação ligado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ao Grupo de Pesquisa “Tradução e Interpretação do Antigo Testamento, TIAT”.

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Notas

1 Todos os textos bíblicos deste artigo foram traduzidos diretamente do hebraico.

2 No que se refere a Deus como figura, conferir Gillmayr-Bucher, “Die literarische Konzeption der Figur Gott im Buch Exodus”, 57-87; em relação à figura de Moisés, ver Römer, “Os papéis de Moisés no Pentateuco”, 89-107; Fernandes, “Onde estiver a Torá, estará meu servo Moisés”, 169-190; Fischer, “Das Mosebild der Hebräischen Bibel”, 84-120; Vogels, Moisés e suas múltiplas facetas. Do Êxodo ao Deuteronômio.

3 Semelhantemente, Leonardo Agostini Fernandes está atento à atuação significativa da esposa madianita de Moisés; ver “Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4,24-26)”, 59-84.

4 Marguerat e Bourquin, Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa, 78.

5 Para um estudo pormenorizado da primeira micronarrativa que traz presente o personagem de Séfora, ver Grenzer, “Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22)”, 75-89. Em vista da tradição jurídica aqui mencionada, ver Grenzer, “A proposta ímpar do amor ao imigrante (Lv 19,33-34)”, 13-30.

6 Grenzer e Suzuki, “Voltar, com a família, à sociedade em conflito (Ex 4,18-20)”, 159-178.

7 Mendonça, A leitura infinita. A Bíblia e sua interpretação, 214-215.

8 Mais tarde, o ouvinte-leitor do Pentateuco percebe que Moisés, além de Séfora, mulher madianita, ainda “tomou uma mulher cuchita” para si (Nm 12,1). A presença desta última, por sua vez, se limita ao versículo mencionado. Ver Grenzer, “Briga entre profetas (Nm 12)”.

9 Elliger e Rudolph (eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia.

10 Utzschneider e Oswald, Exodus 1–15, 142.

11 Em relação à terminologia das questões de crítica textual, ver Francisco, Manual da Bíblia hebraica. Introdução ao Texto Massorético. Guia introdutório para a Biblia Hebraica Stuttgartensia.

12 Utzschneider e Oswald, Exodus 1–15, 144.

13 Blum e Blum, “Zippora und ihr חתן דמים”, 124.

14 Grenzer, “As dimensões temporais do verbo hebraico: desafio ao traduzir o Antigo Testamento”, 15-32. Seja mencionado ainda que a micronarrativa trabalha com um oitavo verbo na forma do wayyiqtol: ver a formulação “E aconteceu (וַיְהִי) no caminho, num lugar de pernoite” (v. 24a). Contudo, já se explicou a especificidade e a função dessa expressão verbal (ver 2.1).

15 Blum e Blum, “Zippora und ihr חתן דמים”, 126.

16 Ska, Our Fathers Have Told Us”. Introduction to the Analysis of Hebrew Narratives, 86.

17 Bar-Efrat, Wie die Bibel erzählt. Alttestamentliche Texte als Kunstwerk verstehen, 100.

18 Figueiredo, “Um nome que faz toda a diferença. Análise literária de Gênesis 32,23-33“, 132-138.

19 Kessler, “Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26”, 64.

20 Fernandes, “Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4,24-26)”, 69.

21 Kessler, “Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26”, 68.

22 Zwickel, Leben und Arbeit in biblischer Zeit. Eine Kulturgeschichte, 220.

23 Zimmermann, “Beschneidung (AT)”.

24 Kessler, “Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26”, 73.

25 Schmitt, “Apotropäische Riten”, 1.

26 Kessler, “Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26”, 69.

27 Albertz, Exodus 1–18, 96.

28 Utzschneider e Oswald, Exodus 1–15, 145.

29 Fischer, Gottesstreiterinnen. Biblische Erzählungen über die Anfänge Israels, 179.

30 Propp, “That Bloody Bridegroom (Exodus IV 24-6)”, 496.

31 Hieke, Levitikus 1–15, 447-448.

32 Literalmente, o texto hebraico fala de “noivo de sangues” (v. 25e.26b). No caso de Séfora, o plural pode ser uma referência aos dois partos (Ex 4,20; 18,3) e/ou aos sangues do parto e do tempo de resguardo.

33 Fischer e Markl, Das Buch Exodus, 77.

34 Andiñach, O Livro do Êxodo. Um comentário exegético-teológico, 90.

35 Dohmen, Exodus 1–18, 177.

36 Utzschneider e Oswald, Exodus 1–15, 145.

* Artigo de investigação.

Autor notes

a Autor de correspondencia. Correio eletrônico: mgrenzer@pucsp.br

Informação adicional

Como citar: Grenzer, Matthias y Francisca C. C. Suzuki. “Em defesa de seu esposo. O protagonismo de Séfora em Ex 4,24-26”. Theologica Xaveriana 187 (2019): 1-23. https://doi.org/10.11144/javeriana.tx69-187.dsepse

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