Desafios e alternativas da neutralização da subjetividade na cultura da modernidade*

Desafíos y alternativas de la neutralización de la subjetividad en la cultura de la modernidad

Challenges and Alternatives to the Neutralization of Subjectivity in the Culture of Modernity

Guilherme Fellipin dos Santos , Marco Antônio de Almeida

Desafios e alternativas da neutralização da subjetividade na cultura da modernidade*

Universitas Humanística, núm. 91, 2022

Pontificia Universidad Javeriana

Guilherme Fellipin dos Santos

Universidade de São Paulo, Brasil


Marco Antônio de Almeida

Universidade de São Paulo, Brasil


Recepção: 25 março 2022

Aprovação: 19 Setembro 2022

Publicação: 30 Dezembro 2022

Resumo: O artigo discute os processos de construção do conhecimento na sociedade contemporânea, considerando: 1- O desenvolvimento de perspectivas acerca do conhecimento na matriz cultural ocidental, apontando que a interpretação da realidade muda conforme as dinâmicas sociais, num processo reflexivo, ampliando as camadas de complexidade de compreensão do social; 2 Os desafios combinados da neutralização da subjetividade e da anulação da experiência, amplificados na era digital do século XXI, e o surgimento de formas sociais de construção de conhecimento mais reflexivas, que consideram novos sujeitos coletivos e os insumos proporcionados pelos debates em torno das questões decoloniais, ambientais e de gênero. O texto faz um breve apanhado do contexto histórico e do desenvolvimento da discussão teórica atual em torno do tema. Conclui-se, finalmente, pela importância da reflexão sobre mecanismos de construção do conhecimento que rompam com a hegemonia cultural da neutralização da experiência intersubjetiva, retomando-a como o próprio motor da Cultura.

Palavras-chave:conhecimento, experiência, pensamento decolonial, subjetividades, saberes tradicionais.

Resumen: El artículo tiene como propósito analizar los procesos de construcción del conocimiento en la sociedad contemporánea. Se consideran dos ejes de reflexión: primero, el desarrollo de perspectivas de conocimiento respecto a la matriz cultural occidental, que reconocen que la interpretación de la realidad cambia según las dinámicas sociales. Estas buscan ampliar las capas de complejidad en la comprensión de lo social. Segundo, los desafíos derivados de la neutralización de la subjetividad y la anulación de la experiencia, agudizados en la era digital del siglo XXI, y del surgimiento de formas sociales de construcción de conocimiento más reflexivas. Estas incluyen a los nuevos sujetos colectivos y los resultados de los debates en torno a las cuestiones decoloniales, ambientales y de género. El texto hace un breve recorrido por el contexto histórico y el desarrollo de la discusión teórica actual sobre el tema. Finalmente, se evidencia la importancia de la discusión sobre mecanismos de construcción del conocimiento que rompan con la hegemonía cultural de neutralización de la experiencia intersubjetiva. Al contrario, se plantea que esta se debe retomar como motor de la cultura.

Palabras clave: Conocimiento, experiencias, pensamiento decolonial, subjetividades, saberes tradicionales.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the processes of knowledge construction in contemporary society. Two axes of reflection are considered: first, the development of knowledge perspectives with respect to the western cultural matrix, which recognize that the interpretation of reality changes according to social dynamics. These seek to broaden the layers of complexity in the understanding of the social. Second, the challenges derived from the neutralization of subjectivity and the annulment of experience, exacerbated in the digital era of the 21st century, and the emergence of more reflexive social forms of knowledge construction. These include new collective subjects and the results of debates around decolonial, environmental and gender issues. The text makes a brief tour through the historical context and the development of the current theoretical discussion on the subject. Finally, the importance of the discussion on knowledge construction mechanisms that break with the cultural hegemony of neutralization of the intersubjective experience becomes evident. On the contrary, it is proposed that it should be retaken as a motor of culture.

Keywords: knowledge, experiences, decolonial thought, subjectivities, traditional knowledge.

Introdução: a objetificação do mundo no pensamento ocidental

Refletir acerca dos processos de construção do conhecimento na sociedade contemporânea implica, necessariamente, considerar criticamente a evolução de tendências do conhecimento e seus efeitos na matriz cultural do Ocidente. Esse tipo de reflexão, que pode ser vislumbrada sob diversos rótulos —pensamento decolonial, epistemologias do sul, pensamento sistêmico—caracteriza-se por ir além da “epistemologia”, refletindo e rejeitando um status quo injusto, buscando recuperar a capacidade de olhar em profundidade a partir de contextos não-hegemônicos, libertando-se de categorias coloniais que limitam a imaginação social e política.

Nesse artigo propomos uma revisão dessa temática a partir de uma perspectiva influenciada por um viés construtivista, que defende que as chaves de interpretação da realidade mudam conforme as dinâmicas sociais, e como essas próprias dinâmicas sociais são, reflexivamente, influenciadas por essas alterações, ampliando as camadas de complexidade desse processo. A análise busca evidenciar um tema relevante para o desenvolvimento futuro dos estudos da Cultura e da Sociologia, não trabalhando o tema de maneira definitiva, mas indicando um rumo possível para futuras pesquisas.

Peter Berger e Thomas Luckmann destacam a importância da consideração dos processos sociais de construção do que é tido como “real” e “conhecido” enquanto objeto de estudo. Segundo eles, o interesse sociológico desses dois termos é “inicialmente justificado pela evidência de sua relatividade social1” (Berger e Luckmann, 1966, p. 15). Seu argumento indica que a subjetivação de uma realidade material objetiva por um indivíduo comum, alheio ao questionamento críticos dos estudos das dinâmicas da cultura e conhecimento, não será total- e tampouco o é entre os estudiosos. A interpretação desta realidade estará sujeita à forte influência dos mecanismos de tradução do real e formação de conhecimento do meio social, não anulando as próprias faculdades subjetivas dos sujeitos, mas certamente fornecendo o arcabouço de símbolos e configurações de significação. Os sujeitos dão peso e significado para determinados aspectos desse objeto de interpretação, e menos para outros, a partir de necessidade que seu meio apresenta para considerá-los.

Considerando essa interpretação parcial de uma realidade total objetiva, o sujeito comum construirá uma “realidade” individual, isto é, seu entendimento próprio do que é “real”, que em um processo dialético é igualmente parte da composição da matriz coletiva de significação. Esse processo seria possivelmente diferente se realizado em outro contexto. “O que é ‘real’ para um monge tibetano pode não ser real para um empresário americano” (Berger e Luckmann, 1966, p. 15).

Assim, as dinâmicas internas a uma realidade sobre o que seus habitantes “conhecem” e “não conhecem” dela, bem como questionamentos mais profundos sobre “o que se sabe que não sabe” e “o que não se sabe que não se sabe”, ficam sujeitas ao processo coletivo de construção do conhecimento, de maneira individualmente deliberada ou não. Os próprios processos sociais per se, com base nessa chave de análise, são parte essencial do estudo do sociólogo do conhecimento.

É a partir dessa chave que o historiador Peter Burke busca uma história social do conhecimento, partindo das consequências da disseminação dos livros pela imprensa de Gutemberg à era da disponibilização digital do conhecimento com a Wikipédia. Em determinado momento da obra o autor descreve como o conhecimento matemático ganhou relevância entre as companhias de navegação durante os séculos XVI e XVII, servindo desde a construção naval à administração das colônias- essencialmente a gestão estatística dos recursos, corpos e vidas.

Essa gestão estatística da vida em sociedade gradualmente vai se tornando uma tendência entre os Estados europeus, desde as unificações nos séculos XVIII e XIX com fins de simplificação da gestão dos territórios, da economia nacional de escala com as revoluções industriais e processos de independência até a era do capitalismo neoliberal, na qual o Estado perde seu papel de mantenedor de garantias e promotor do bem-estar social e se volta majoritariamente à gestão das tensões sociais. Ao falar sobre o termo “estatística”, Burke (2014) indica que ele

designava originalmente a descrição de uma região, particular de um Estado [...]. Nessas descrições, os números passaram a adquirir maior importância, a tal ponto que os governos chegaram a recrutar matemáticos, enquanto o termo ‘estatística’ adquiria seu significado corrente. (p. 88)

O historiador, ao longo da obra, identifica outros contextos institucionais para além do Estado em que aumenta a relevância dada à interpretação matemática da realidade junto do refinamento das técnicas mecânicas. Conforme avançam essas técnicas, avança também no senso comum a ideia da possibilidade de um “controle” técnico sobre a natureza. Como afirma Burke (2003),

No século XVIII, o conhecimento útil se tornara respeitável. Sob novos estatutos de 1699, a Academia Francesa de Ciências passou a dar mais ênfase à engenharia e a outras formas de ciência aplicada [...] [a partir de 1500], a árvore do conhecimento fora desbastada. A matemática fora promovida ao primeiro lugar [...], as artes mecânicas eram levadas mais à sério [...], mostrando a crescente aproximação entre conhecimento acadêmico e o não acadêmico. (pp. 104-108)

As ciências em geral seguem essa tendência, com a valorização de metodologias quantitativas de comprovação de resultados até mesmo nas ciências humanas (em alguns casos inclusive prestigiando a linguagem matemática quase como um traço intrínseco da disciplina, como a Economia)2:

Os números foram adquirindo importância cada vez maior não só no conhecimento da natureza, mas também no conhecimento da sociedade. De fato, a ciência natural forneceu pelo menos parte da inspiração para essa ‘guinada estatística’ [...]. [Essa guinada] veio a se espalhar cada vez mais no domínio das ciências sociais acadêmicas. Nesse aspecto, a disciplina principal era a economia. [...] Na sociologia, os métodos quantitativos adquiriram importância na metade do século XX. (Burke, 2014, pp. 88-89)

Essa tendência observada por Burke é também identificada na literatura sobre as dinâmicas da informação, aprofundando o entendimento sobre suas consequências. Essa valorização da estatística e linguagem matemática, na verdade, se baseia num movimento maior de suposta condenação justamente da imprevisibilidade do subjetivo, sendo socialmente preferível uma tomada de decisão baseada numa análise tida como objetiva da realidade, “sem mediação”, “técnica” e totalmente passível de previsão:

A objetividade mecânica surge como uma solução para a tentação subjetiva, e desde então vivemos uma luta contra uma espécie de tentação interior. O que se constituiu como a imagem da objetividade foi moralizada pela mecanização com o intuito de eliminar a “suspeita da mediação”. A oposição entre objetividade e subjetividade implica diretamente a dualidade homem e máquina, pois a última é enaltecida por, supostamente, ser menos vulnerável às intrusões subjetivas. A máquina entendida dessa forma incorpora um ideal não intervencionista, fechada em si mesma e sem margem de indeterminação. (Regattieri e Antuon, 2018, p. 46)

A partir da neutralização da subjetividade e previsão da realidade objetiva, as ciências sociais passam a seguir duas tendências, ambas quase uma emulação dos mesmos fenômenos nas ciências naturais. A primeira é a tentativa de explicar fenômenos sociais a partir de leis descritivas gerais, formuladas inicialmente em termos de probabilidade, com conotações de normalidade e desvio da norma. “Outra proposta mais modesta [...] foi elaborar ‘modelos’ [...] no sentido de descrições deliberadamente simplificadas, que geram explicações de situações mais confusas e complexas encontradas no mundo real” (Burke, 2014, pp. 108-109)3.

Essa tendência geral, segundo outro historiador, alcança desde organizações institucionais até relações interpessoais. As dinâmicas cotidianas como um todo passam a seguir uma lógica automatizada de uma “engenharia de fluxos” que controla desde infraestrutura até o tempo de trabalho, alterando configurações de percepção temporais e espaciais (sobretudo na abrangência e instantaneidade da Era Digital) e afetando a construção de laços mais profundos (Sevcenko, 2012). Uma tendência que também se manifesta na instrumentalização do conhecimento científico, valorizando sua aplicabilidade no desenvolvimento de técnicas e produtos tecnológicos.

Nessa matriz de significâncias gestada no projeto da modernidade se entende que a objetividade na interpretação e ação sobre o real não só é possível de acessar, mas socialmente preferível. Esse fator cria a necessidade de uma construção —ou a programação— do conhecimento antecipadora (para prever ou eliminar a incerteza) através de uma determinada configuração tida como objetiva- ainda que incorreta de facto, limitada pelo arcabouço epistemológico disponível para interpretação da realidade.

Um breve exemplo prático da realização dessa dinâmica é investigado por Canclini ao discutir a experiência do museu na América Latina em relação à construção de um patrimônio narrativo nacional. Ele enxerga uma tendência geral das políticas públicas de construção de patrimônio no continente em abordar o “tradicional” e “popular” como símbolos pretéritos, de grupos sociais já não existentes na dinâmica presente da modernidade nas formas apresentadas. O passado idealmente construído é apenas uma herança sagrada —fora do plano terreno— e não apresenta uma conexão fluente, tampouco existem “resquícios” (e aqui o autor enfatiza como os dois temos, popular e tradicional, e todas as populações às quais fazem referência são iguais objetos de interação e transformação com o presente e o hegemônico) de sua relevância nas dinâmicas atuais (Canclini, 2019). Para Agambem (2007), essa sacralização do popular e do tradicional, a imposição da modernidade a grupos populares e tradicionais ainda presentes e como eles sobrevivem a isso não é considerada na construção da matriz de símbolos e narrativas nacionais:

A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens —a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza, até mesmo a política— retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo e agora já não é. [...] de forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência. (p. 73)

Esse é “o modelo da racionalidade moderna que estabelece a supremacia do método e da quantificação para a redução da complexidade, com o consequente estabelecimento de leis para fundamentar o funcionamento dos processos” (Tálamo e Smit, 2007, p. 45). Dessa maneira, busca-se uma anulação da experiência intersubjetiva da construção simbólica da realidade, restando ao indivíduo somente seu papel de espectador de um espetáculo pré-concebido, programado, visitante de uma exposição de museu ou um corpo sem capacidade de agir contra as forças mecânicas agentes em si.

O problema da hegemonia da falsa objetividade

De maneira deliberada ou não, mas certamente benéfica para uma parcela específica da sociedade, pela “teia social” da modernidade permanece em circulação uma matriz de conhecimentos que de maneiras diversas imprime uma, podemos chamar, hegemonia da objetividade. Seu conteúdo não é de fato objetivo, mas uma construção de subjetividades cujo a posição social de jure de objetiva a mantém fora da dimensão crítica do indivíduo, de sua própria subjetividade, capacidade apropriadora. Como o sociólogo George Simmel comenta, trata-se de um conjunto de fenômenos socialmente construídos cada vez mais separados da atividade humana concreta (Gross, 2012).

Recorrendo à literatura da ciência da informação, autores como Gutiérrez (2013) debatem algumas consequências desse processo. Segundo o autor, essa posição inquestionável da falsa objetividade dá início a um processo de reificação de conceitos, geralmente pouco precisos —mas certamente, podemos chamar, limitadores epistemológicos— que impõem barreiras intransponíveis à crítica, e com o tempo adquirem caráter mitológico, ou dogmático. É possível falar também de engessamentos nas chamadas “províncias do conhecimento”, algo consideravelmente marcado na divisão pelas disciplinas nas etapas iniciais da escolaridade que dificulta suas interações (Tálamo e Smit, 2007).

Gutiérrez entende que, no geral, conforme as construções subjetivas não correspondem totalmente à realidade objetiva, o indivíduo social está em constante estado de incomodo frente à essas contradições, chamada “estesia”. Mas a imposição da objetividade suprime esse estado, pois ao indivíduo não cabe o questionamento ou reflexão sobre suas próprias concepções subjetivas, tidas como objetivas. É um estado de “anestesia”, acrítica, produtor de constantes tensões internas ao sujeito o levando a agir como objeto passivo às determinações culturais de seu contexto.

Para George Simmel, apresentado no texto de Mathias Gross (2012), “não-conhecido” adquire um papel de signo de um conhecimento específico sobre o que, de fato, não é conhecido. Trata-se de uma consideração de certa maneira deliberada das lacunas do que a sociedade constitui enquanto “conhecimento”. É uma constatação da não totalidade dessa matriz. Segundo o sociólogo, é um elemento essencial da tomada de decisão em uma sociedade mais para a qual essa ação:

... não pode continuar limitada à estimativa e gerenciamento de riscos claramente calculáveis; em vez disso, ela [a sociedade] deve entender o problema do que não é conhecido e não pode ser previsto. A questão é, primeiro, porque algo não é conhecido e, segundo —e possivelmente mais importante— quais ações e decisões são apropriadas, devido a essa falta de conhecimento. Esse aspecto (considerar os elementos limitantes do conhecimento científico, pois ele produz fatos desconhecidos sempre) é crucial, pois todos os processos de pesquisa e inovação promovem o crescimento de um novo não conhecimento, revelando novos limites ao conhecimento. (Gross, 2012, p. 433)

Para Schutz e Luckmann (1973), esse termo ganha outro significado, mas com finalidade semelhante. Em seu texto, os autores ora usam o termo mais próximo à concepção de Simmel, ora usam como uma “determinação negativa” do conhecimento. Isto é, um marcador de negação de conhecimento positivado, acompanhado de um novo determinante positivo que até agora o substituiu, preenchendo essa lacuna. Os autores explicam esse mecanismo com o exemplo simples de, antigamente, baleia ser considerada um tipo de peixe. Ao longo dos avanços na biologia e o refinamento das classificações taxonômicas, passou-se a entender baleia como um mamífero. Nesse exemplo, “não-peixe” permanece como um representante de algo que antes se tinha como verdade e posteriormente foi falseado, mas ainda presente em nossa matriz de conhecimento e acompanhado do termo positivado “é mamífero”, corrigindo em certos aspectos a concepção anterior (Schutz e Luckmann, 1973).

Em ambas as teorias, o termo “não-conhecido” serve essencialmente como um marcador de caráter fragmentário do estoque de conhecimento disponível. Trata-se de um mecanismo consciente de suas limitações intrínsecas de apropriação do que identificamos enquanto informação da realidade. Uma forma, interpretada a partir das ponderações dos autores, na qual pode se estruturar uma dinâmica social mais construtiva e reflexiva. Marca-se a ideia na matriz social de seu conhecimento ser conscientemente limitado, cria-se a necessidade de amplificação de uma deliberação social construtiva para uma melhor tomada de decisão.

A hegemonia do pensamento moderno negligencia justamente esse processo de construção do conhecimento a partir de sua negativação, consequentemente limitando a percepção da necessidade da crítica coletiva nos processos de tomada de decisão. A anulação das incertezas e tensões dos processos sociais na criação de dogmas, saberes reificados, falsas objetividades que colonizam as províncias do conhecimento enquadrando-as entre fronteiras —e muitas vezes, pasmem, hierarquizando-as— assim como a racionalidade matemática como a grande condição do ser social passam, em todos os sentidos, pela fachada da impossibilidade de questionamento, crítica, construção coletiva.

Uma matriz de pensamento que se propõe como sagrada, absoluta, indivisível, homogênea, natural e objetiva só é possível graças a um certo grau de esvaziamento das possibilidades reais de questionamento, e nossa reflexão, até aqui, buscou uma discussão que localize nesse fenômeno sem esconder a turbulência que é identificá-lo.

Considerando as questões sobre a neutralização da subjetividade e anulação da experiência amplificados na era digital do século XXI, e ponderadas até aqui, o desafio consiste na reformulação de formas sociais de construção de conhecimento mais reflexivas, explorando possibilidades de outras configurações de subjetividade coletiva e os insumos proporcionados pelos debates em torno dos debates decoloniais, ambientais e de gênero. Como romper os gessos dos significados hegemônicos e interpretar a realidade de uma maneira menos dogmatizante para além das determinações contextuais, retomar a agência dos processos sociais, a apropriação dos conceitos e conviver com as contradições inerentes da vida. Pretende-se explorar formas distintas de interação com a realidade e confecção de seus tradutores, os produtos culturais, a fim de fugir da prisão epistemológica da modernidade reificadora.

Profanar

Um dos pontos considerados nessa tendência de imposição de objetividade foi a necessidade de consolidação de uma matriz de significâncias que se pretendia objetiva e cujas incertezas fossem neutralizadas. Esse processo demandou uma forma de reificação de conceitos, geralmente pouco precisos —mas que, certamente, podemos chamar de limitadores epistemológicos— que impôs barreiras intransponíveis à crítica, e que com o tempo adquiriram caráter mitológico ou dogmático (Gutiérrez, 2013). Essencialmente, essa matriz deve se pretender totalizante e inquestionável, isto é, sagrada. Esse efeito é particularmente forte a partir da digitalização das dinâmicas da cultura. Segundo Latour (2000), trata-se de uma disposição do conhecimento no qual oferece:

a cada inscrição o poder de todas as outras. Mas este poder não vem de sua entrada no universo dos signos, e sim de sua compatibilidade, de sua coerência ótica, de sua padronização com outras inscrições, cada uma das quais se encontra sempre lateralmente ligada ao mundo através de uma rede. (p. 8)

E se dos museus à internet o conhecimento é depositado em uma lógica de sua posterior impossibilidade de uso —a sacralização— e como total, que desconsidera as contingências históricas e contradições sociais que lhe deram forma e massa, algumas conclusões são possíveis. Uma delas é que essa pretensa neutralidade totalizante disfarça uma tentativa de manutenção dessas contingências históricas, as quais permanecem. Quando a disposição do conhecimento ou a matriz de significações não compreende suas próprias contradições e tensões sociais que lhe forneceram material, ela apenas mantém as desigualdades nas formas de apropriação dos produtos culturais (Erik-Mai, 2016).

Os choques e transformações só são compreendidos conforme se continua “procurando cada vez o que se mantém constante através dessas transformações” (Latour, 2000, p. 14). Não à toa a aparente saturação desse modelo se dá justamente conforme ele avança, pois ficam mais evidentes as inconsistências entre as totalidades e as contradições sociais da vida na modernidade, bem como aumenta a dificuldade de conciliar todas as tensões. A vida urbana massificada não compreende o anonimato, e mesmo que tente imprimir isso de maneira geral causa essa reação de diversificação de demandas (Canclini, 2019). Portanto, a segunda conclusão é a necessidade de romper essa tendência e profanar a sacralidade dos signos e símbolos engessados que tentam imprimir dinâmicas pré-determinadas como uma ordem extraterrena, de outro plano, bem como os construtos sociais de personificação dessa sacralidade. As reflexões de Giorgio Agamben nos dão uma linha para pensar essa profanação.

Pode-se refletir da obra do autor que essa configuração do pensamento na sociedade ocidental cria ídolos, como, por exemplo o Genius e a Felicidade. O primeiro permite considerar o reconhecimento social da trajetória individual, a realização da vida subjetiva em termos impessoais. Para Agamben, o Genius se estabelece numa relação de oposição com o Eu em que o Eu ao longo de sua vida dá corpo e forma ao Genius, mas não o controla, tampouco o supera. Este é resultado “objetivo” daquele. Mas ao supervalorizar a necessidade de reconhecimento, os indivíduos buscam o Genius incessantemente, buscam romper o anonimato inerente a ele, e se afastam cada vez mais. O pensamento hegemônico, ao idolatrar o Genius, coloca uma falsa condição para os Eus, de relevância e satisfação somente se realizada essa deliberada tarefa impossível de atingi-lo, comprometendo a ambos, amplificando as insatisfações (Agamben, 2007). O anonimato das ideias é sufocado pelo falso empreendedorismo e sucesso individual.

Isso porque, para Agamben, a Felicidade só é possível dessa maneira, se o Eu não tem consciência de sua existência. Há uma “diferença entre viver dignamente e viver feliz” (Agamben, 2007, p. 24). Viver dignamente está relacionado com conquistas sabidamente possíveis pelo Eu – por exemplo, a errônea ideia de um Genius alcançável. São colocados objetivos dos mais pessoais, mas atingi-los, segundo o autor, não traz felicidade, pois já estavam projetados, previstos, conhecidos.

Para ser verdadeiramente feliz, no entanto, Agamben expressa a necessidade de desconhecimento e incerteza sobre a possibilidade de sê-lo pelo Eu. Uma relação paradoxal, pois “quem é feliz não pode saber que o é”, e a Felicidade “só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada”, ou na medida da sua imprevisibilidade (Agamben, 2007, p. 24). A Magia, então definida pelo autor como o nomear do oculto, fuga da linguagem estabelecida e do tido como natural, é a ferramenta necessária para reconhecer a existência do desconhecido possível, do contraditório, rompendo a previsibilidade (e, portanto, o destino) da Felicidade, repondo-a como possível se mantida como imprevisível (Agamben, 2007).

Divergir

Após devidamente profanar o caráter sagrado do símbolo ou produto cultural em questão, torna-se possível entender como ele não é total, não é inteiramente coerente. O próximo passo então, é compreender as contradições e divergências que servem de combustível para as interações sociais múltiplas lhe darem significado. Essa questão da abordagem do diferente e da diferença é presente no debate entre Gustavo Lins Ribeiro e Renato Ortiz.

O primeiro autor apresenta como a diversidade cultural é abordada nas dinâmicas internacionais contemporâneas, sobretudo através da pauta dos direitos humanos. Para Ribeiro (2014) existem “discursos fraternos globais” os quais buscam abordar tensões estruturais produtoras de desigualdades e devem se atentar para as tentativas de glocalização, a imposição de um ideário local com uma fachada globalizante ou universalista. Mesmo no tema dos direitos humanos universais, não faltam casos de instrumentalização desse discurso em prol de ações completamente contrárias ao seu fim (incontáveis invasões militares e derrubadas de governos em nome da liberdade e democracia).

Isto porque, para o autor, qualquer pretensão de recolocar os termos das relações socioculturais passa por um entendimento particular, diferenciado pela sua finalidade, podendo ser local (unilateral), translocal (uma mesma cultura se realizando em várias situações geográficas, a qual não debate coletivamente suas próprias tensões pela diferença) ou, por fim, cosmopolita (tem a intenção de amenizar as disputas das diferenças e diversidade). É impossível construir um discurso universal dado que as próprias taxonomias da diferença e quem são os diferentes são igualmente marcadores de uma particularidade – desse modo o Outro não pode existir senão enquanto um desvio do “normal” (Ribeiro, 2014).

Esse cuidado com o entendimento da diferença e do diferente é ampliado por Ortiz (2015). Ao questionar a pretensão de um pluralismo cultural idealizado, atenta para a possibilidade de ser uma estrutura particularista, mesmo que translocal, quando afirma as diferenças enquanto evidências de dinâmicas de poder que lhes deram significado. Seu exemplo é pertinente, sobre a manutenção de uma diversidade cultural nas ilhas Javanesas no século XIX por uma autoridade de dominação colonial externa. Esse autor ressalta como os debates internacionais sobre a diversidade cultural ainda são limitados pelas epistemologias e mecanismos essencialmente ligados à modernidade ocidental europeia, apesar do evidente norte democrático.

A fim de tratar a diferença para além das dinâmicas de poder nessa discussão inicialmente em termos epistemológicos, os postulados teóricos de Garcia Gutiérrez podem ser úteis. Na medida em que todas as formas e conceitos são a convergência entre suas várias significações e transformações ao longo do tempo, uma mesma forma pode ser em algum contexto e não ser em outro, sendo necessário interpretar essa “sobreposição dissolutiva” entre ser e não ser enquanto parte de seus significados possíveis (Gutiérrez, 2013). A abordagem da diversidade com o norte cosmopolita então que busca de certa maneira amenizar as tensões entre os diferentes, de acordo com Lins Ribeiro, só será efetiva se não se pretender universal jamais, se anunciar e denunciar seus próprios preconceitos, adentrando diálogos complexos com diversas e contraditórias cosmopolíticas e encontrando equivalências nas formulações para evitar a reificação (Ribeiro, 2014).

Hibridar

Após estabelecer os termos em que as diferenças devem ser tratadas, fugindo dos conceitos de “normais” e “desviantes”, torna-se mais fácil reinterpretar os produtos culturais e suas dinâmicas evitando a busca por formas puras. Retomando os postulados de Garcia Gutiérrez, tudo o que é também não é em determinado contexto, havendo gradações entre esses polos. Em outras palavras, o significado dos símbolos, conceitos e produtos culturais tradutores de nossa realidade representam processos de significância responsáveis por sua forma e pela sua inserção no meio social.

Não faltam exemplos sobre como as formas sociais não se apresentam de maneira pura. Ao discutir níveis de interação do indivíduo com o conhecimento científico/ especializado (sendo eles o homem nas ruas, o cidadão bem-informado e o expert) Alfred Schutz deixa claro como esses comportamentos não se dão de maneira isolada. Na verdade, o contexto da situação (por exemplo se envolve um tópico do qual temos ou não o saber especializado, e se nos é interessante adquiri-lo) é o que nos fará agir entre esses comportamentos. Logo, para Schutz, dentro de nós coabitam esses três tipos sociais (Schutz, 1946) em constante interação.

Se as formas com as quais interpretamos o real, e sobretudo as formas sociais, são representação de processos, é a partir no conceito de hibridação de Nestor García Canclini que se pode aprofundar a interpretação. Para o autor, o termo indica os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini, 2019, p. 19). Ele reforça como a complexidade da sociedade resulta no (e é afetada pelo) aumento dos processos de hibridação e como mesmo para estudos sobre narrativas identitárias “não é possível falar de identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou nação”, sugerindo então um deslocamento “do objeto de estudo da identidade para a heterogeneidade e a hibridação interculturais” (Canclini, 2019, p. 23). Não se trata de entender a hibridização como, igualmente, uma forma pura e total, mas “sim, os processos de hibridação” (Canclini, 2019, p. 27).

Simplificando, a melhor interpretação dos fenômenos reais se dá pela interação de seus múltiplos elementos (indo do é para o não é) e suas diferentes formas e maneiras de combinações em novos conceitos e significados. Assim, Canclini aponta como o caminho investigativo passa justamente pela quebra das paredes divisórias do conhecimento em províncias fechadas, as quais impedem o debate e conflito entre saberes e o entendimento das interações possíveis entre eles possíveis no sentido de serem sua única apresentação na natureza, isto é, em processo de hibridação. Essencialmente, após a consolidação desses conceitos separadamente, se preencherão as difusas lacunas entre eles e seus conhecimentos justamente com uma abordagem multidisciplinar, posteriormente atingindo uma transdisciplinaridade nova (Canclini, 2019).

Essa abordagem distinta do enfoque racionalista moderno, o qual sedimenta a separação dos conhecimentos (Tálamo e Smit, 2007), tem sua necessidade percebida por outros autores. Semelhante à proposta postulada por Gutiérrez, Gernot Wersig (1991) também propõe uma construção conceitual aberta e reflexiva, chamando de “intraconceitos” os referenciais ainda a serem criados que permitem a viagem entre as províncias do saber, hoje demasiadamente demarcadas (Wersig, 1991). Sobre o esforço multidisciplinar, o qual envolve necessariamente uma cooperação entre diferentes profissionais detentores dos saberes especializados, o historiador March Bloch (2014) ressalta como, para transpor os limites de análises individuais ou restritas à uma disciplina:

nenhum remédio então senão substituir a multiplicidade de competências em um mesmo homem por uma aliança de técnicas praticadas por eruditos diferentes, mas [todas] voltadas para um tema único. Esse método supõe o consentimento no trabalho por equipes. (p. 81)

E o terceiro passo de Canclini, a transdisciplinaridade, é ressaltado por Tálamo e Smit sobre uma nova ciência “pós-moderna”, a qual se debruça sobre fenômenos complexos fazendo uso das ferramentas multidisciplinares e reconstrói o conhecimento sobre uma perspectiva temática. “O conhecimento pós-moderno, ao contrário do moderno, não é determinístico e nem tampouco descritivo; ele é essencialmente tradutor, isto é, compreensivo e interpretativo” (Tálamo e Smit, 2007, p. 38).

Apropriar

Entendemos como a formação da cultura e do conhecimento envolvem dinâmicas híbridas em que múltiplos símbolos, fenômenos e seres sociais interagem de uma forma complexa, difusa e nem sempre coerente em relação à matriz hegemônica de interpretação ou a um significado linear. A partir disso, cabe explorar como se realiza essa perspectiva mais reflexiva em termos de apropriação da informação. Para aplicar essa nova forma de observação dessas dinâmicas, podemos ressaltar alguns trabalhos os quais demonstram como formas hegemônicas e não-hegemônicas interagem entre si nesse sentido.

Um ótimo exemplo desse tipo de análise, partindo de uma perspectiva não-hegemônica para tratar de temas muito discutidos, são os textos e reflexões de líderes indígenas americanos sobre sua interação com o mundo dos “brancos”. Em seus textos dentro da obra “A queda do céu” com Bruce Albert, o líder Yanomami Davi Kopenawa aborda suas impressões durante visitas à capitais ocidentais.

Kopenawa demonstra usa preocupação majoritária com a proposição de diálogo entre líderes mundiais e seu povo para denunciar a histórica negligência do Estado brasileiro com os povos originários. Ele reflete sobre como a forma de vida tradicional dos brancos aparenta ser a própria origem de sua incapacidade de atuar em comunidade. Atentando para a beleza e complexidade material das paisagens e bens de consumo nas cidades, o xamã identifica como a conexão com a natureza —representada, talvez, pelas conexões espirituais— e o entendimento dessa condição parecem ter se perdido, justamente, por conta da complexidade e velocidade com as quais as relações sociais se dão. Essa reflexão é representada pela constatação da perda do brilho da vida no metal que sustenta a torre Eiffel, do qual Kopenawa compreende a origem natural do material, mas não consegue identificar se os habitantes da cidade entendem essa relação de dependência. Em outra passagem, ele coloca:

Ter conhecido as terras dos antigos brancos durante minhas viagens me deixou pensativo. Com certeza, suas cidades são belas de ver, mas, por outro lado, a agitação de seus habitantes é assustadora. Trens correm o tempo todo debaixo da terra, carros no chão coberto de cimento e aviões atravessam sem trégua o céu encoberto. As pessoas vivem amontoadas umas em cima das outras e apertadas, excitadas como vespas no ninho. Tudo isso causa tontura e obscurece o pensamento. O barulho contínuo e a fumaça que cobre tudo impedem de pensar direito. Deve ser mesmo por isso que os brancos não conseguem nos ouvir! (Kopenawa e Albert, 2015, p. 435)

O líder indígena demonstra um extremo incômodo com o caráter impessoal, ou como colocamos aqui, pretensamente objetivo, em que se dão as relações sociais e na cotidianidade. Para os brancos, ele observa, não se trata de negar deliberadamente, mas essencialmente ignorar as disparidades de qualidade de vida entre habitantes da mesma cidade (Kopenawa e Albert, 2015). Eles ignoram a dependência que o mundo contemporâneo industrial ainda apresenta em relação ao meio ambiente tanto enquanto fonte de recurso mas especialmente como lugar de existência compartilhada com outros sujeitos, esquecem o passado destrutivo da Colonização tão próxima e origem de tantos problemas atuais (Kopenawa e Albert, 2015)4, e, acima de tudo, se deixam levar pelo ritmo acelerado dos fluxos cotidianos impedidores de reflexões sobre o mesmo, obstáculos para construir relações menos superficiais e um senso comunitário mais abrangente. Isso, no entanto, não compromete as intenções de Kopenawa compartilhadas por outro líder indígena, Ailton Krenak (2020), da etnia dos crenaques. Ambos os líderes são representantes de um movimento maior entre membros da luta pelos direitos dos povos originários, mencionada por Lins Ribeiro mas ainda não explorada sobretudo pela literatura das Relações Internacionais.

Apesar de manifestarem perspectivas bastante não-hegemônicos5 de tópicos correntes (meio ambiente, qualidade de vida etc.), conforme as reflexões de Kopenawa trazidas acima, essas lideranças indígenas se apropriam do discurso hegemônico dos direitos humanos no âmbito internacional6 para a “proteção de minorias étnicas”, gerando um “repúdio radical ao genocídio, ao etnocídio, à xenofobia, ao racismo e ao desaparecimento de opositores do Estado” (Ribeiro, 2014, p. 201), ocupando espaços importantes nos órgãos de deliberação. Esse uso, ao tomar um posicionamento claro e impedir uma instrumentalização da pauta direitos humanos contrária à sua finalidade, apresenta caráter híbrido, de maneira alguma incoerente.

Essa hibridização apropriadora demonstra tanto a passividade com a qual “os brancos” vivem as influências das forças exógenas quanto a capacidade de uso de instrumentos em disputa para mediação da vida social por grupos de pessoas majoritariamente excluídas dessas dinâmicas hegemônicas. Os “excluídos” tomam a agência de um mecanismo (o discurso dos direitos humanos, muitas vezes instrumentalizado com fins de colonização desses “excluídos”) para inserir particularismos, dando novo significado e importância para ele e se colocando essencialmente enquanto atores relevantes em um cenário do qual historicamente foram impedidos de acessar, o das disputas do sistema internacional.

Um outro exemplo de apropriação não excludente é referenciado no texto de Manuela Carneiro da Cunha sobre as interações entre a ciência racionalista e as tradições ameríndias de interpretação dos fenômenos naturais, a “ciência tradicional”. Essas matrizes de entendimento se aproximam na medida em que “ambos são formas de procurar entender e agir sobre o mundo. E ambas são também “obras abertas, inacabadas, sempre se fazendo”, a despeito de nenhuma delas funcionarem em um “um vácuo político e social” (Cunha, 2007, p. 78). Ressaltando a homogeneização das diferentes tradições indígenas com a única finalidade de contraste com a matriz científica de conhecimento, a autora diferencia as origens sociais de ambas, e busca estabelecer as pontes entre essas matrizes diferentes. Ela identifica casos como usos tradicionais de determinado tipo de planta medicinal despertarem pesquisas científicas sobre seu princípio ativo posteriormente, resultando no desenvolvimento de remédios eficazes7. Para além de servir de ponto de partida para pesquisas aprofundadas e evidências para investigações posteriores, a autora busca estabelecer uma relação apropriadora entre o saber científico e o saber tradicional. Para Carneiro da Cunha:

não se trata aqui, como muitos cientistas condescendentemente pensam, de simples validação de resultados tradicionais pela ciência contemporânea, mas do reconhecimento de que os paradigmas e práticas de ciências tradicionais são fontes potenciais de inovação da nossa ciência. (Cunha, 2007, p. 81)

Em outras palavras, ela desmonta justamente a relação de oposição falsa entre ciência e tradição. Apesar da hegemonia difusa da primeira, ela de maneira alguma serve para legitimar ou deslegitimar a segunda. Assim como fazem os líderes indígenas em relação ao debate institucional dos direitos humanos, a relação não excludente, ou híbrida, entre os elementos dessas matrizes distintas de significância oferecem novos usos e significados para elementos engessados e dogmatizados, expandindo os horizontes de relação entre a sociedade e seu produto cultural, assim retomando a agência sobre eles.

A pandemia do COVID 19, por outro lado, demonstrou que para responder às desigualdades sociais, econômicas e culturais é colocar em questão a realidade estrutural que as produzem. Torna-se o caso de encarar uma mudança verdadeiramente paradigmática, que questione inclusive as visões correntes acerca dos processos tecnológicos. Alguns autores vêm refletindo sobre as tecnologias, lançando olhares diferenciados a elas e ao seu processo de apropriação —de Jenkins (2009) e sua perspectiva de uma “cultura da convergência” como um conjunto de “gambiarras tecnológicas”, a crítica ao “solucionismo tecnológico” (Morozov, 2018) ou mesmo Latour (2020) e suas concepções ecossistêmicas—.

Podemos destacar as formulações de Yuk Hui (2020) acerca da concepção de “tecnodiversidade”, dentro desta perspectiva de questionamento paradigmático. Para ele, as concepções de modernidade e a pós-modernidade são discursos construídos a partir dos contextos históricos europeus, mas ele propõe ir além da crítica do eurocentrismo e do colonialismo do poder, afirmando que as perspectivas ontológicas e epistemológicas que são alvo dessas críticas estão materializadas, embutidas nas tecnologias, nas arquiteturas de bancos de dados e de algoritmos, nas definições de usuários e nos modos de acesso. O sistema capitalista evolui investindo em máquinas, atualizando-se constantemente de acordo com os avanços tecnológicos, gerando fontes de lucro na invenção de novos dispositivos.

Portanto, a produção das mesmas tecnologias em diversos países, com atributos levemente diferentes, sob marcas distintas, não possui relação nenhuma com a concepção de tecnodiversidade. Para Hui (2020), uma maneira do pensamento não-europeu, do pensamento das culturas tradicionais responder aos dilemas deste contexto científico-tecnológico seria um retorno renovado à discussão acerca da Natureza, se perguntando o quê significariam uma cosmotécnica inca, maia, africana, amazônica etc. Como essas cosmotécnicas poderiam contribuir para recontextualizar a tecnologia moderna? Essa é uma questão que, partindo de diálogos transversais entre diferentes culturas, de apropriações e co-apropriações, aponta para a possibilidade de criação de uma solidariedade que inclua e respeite os pontos de vista da alteridade.

Considerações finais

A cultura hegemônica da sociedade ocidental contemporânea é resultado de um processo histórico de sacralização, por conferência de objetividade, a elementos que consolidam essa hegemonia. A “colonização” do conhecimento e sua configuração estática, que anula a experiencia intersubjetiva para sua reflexão, engessam nossas ferramentas de análise sobre a diversa realidade repleta de contradições (Gutiérrez, 2013).

Essa colonização resulta em uma Cultura que naturaliza hegemonias como a do Norte sobre o Sul global, do Ocidente sobre o estrangeiro, do objetivo sobre o subjetivo, da Ciência sobre a Tradição, sempre uma configuração binária (praticamente numérica) simplificadora de seus polos, ignorando seus elementos evidentemente híbridos. Assim, ao indicar um polo como a norma e o outro como desvio, consolida esse conjunto de normas hegemônicas da Cultura colonizada, que valorizam a objetividade e a técnica.

Hoje, é quase impossível imaginar que propostas de superação tanto da modernidade como da pós-modernidade não se defrontassem com a ciência e a tecnologia como um tema central. As sociedades industriais e pós-industriais do capitalismo ocidental construíram projeções do futuro ancoradas numa perspectiva mitificada do progresso, que além do domínio e da subjugação da natureza, compreendia também as formas de representação em que a ciência e as artes imaginam a própria realidade. Por outro lado, se lançarmos um olhar decolonial e dialético às tecnologias, podemos enxergar as formas das coisas e as dinâmicas sociais e culturais da tecnologia libertas desse falso determinismo. Assim, ao associar a ideia do futuro ao progresso tecnológico, muitas vezes somos levados a concentrar nossos olhares nos oligopólios de tecnologia digital do Vale do Silício. Desse modo, acabamos por minimizar a presença de tecnologias sociais presentes em nosso cotidiano, como as plataformas de compartilhamento, o valor do Comum no Creative Commons, o associativismo digital, o movimento wiki e similares.

Para Yuk Hui (2020), uma maneira do pensamento não-europeu, do pensamento das culturas tradicionais, responder aos dilemas deste contexto científico-tecnológico seria partir de diálogos transversais entre diferentes culturas buscando gerar uma solidariedade que inclua e respeite os pontos de vista da alteridade. Assim, as críticas decorrentes dos estudos decoloniais, das perspectivas epistemológicas do “Sul” se somariam às questões que já vinham sendo fermentadas pela ecologia, pelo feminismo, pelos debates identitários e étnicos, para contestar os modelos social, cultural, político e econômico vigentes. Pode-se, eventualmente, criticar esta visão como “ingênua” e questionar a possibilidade de um diálogo transversal dessa natureza, considerando que o mundo inteiro foi transformado e sincronizado pelo imenso poder das mudanças tecnológicas. Entretanto, o que Hui chama a atenção é que essa crítica visa a concepção ocidental de tecnologia enquanto mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia e força exclusivamente produtiva, que oculta seu potencial descolonizador, apontando para a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade, da apropriação libertadora da ciência e da tecnologia que possibilite recuperar subjetividades individuais e coletivas.

Entender esse processo, e sobretudo suas inconsistências e possibilidades de resistência, torna-se fundamental para pensar os lugares possíveis de culturas desviantes e críticas de/ a essa hegemonia. (Re)criar esses lugares, como uma América Latina ou um Sul Global enquanto espaços de enunciação de autoridade científica sob uma perspectiva decolonial, demanda o esforço de descolonizar o conhecimento, romper o processo de objetificação dos produtos culturais se apropriando das suas tecnologias e adotar uma abordagem intercultural —que entenda a Cultura como resultado da experiência intersubjetiva constante— a convivência com a diferença.

Este trabalho buscou articular reflexões já presentes na literatura que evidenciam esse processo e apontam para suas problemáticas consequentes. Buscamos contribuir com o desenvolvimento de estratégias de fuga dessa hegemonia cultural, levantando algumas possibilidades existentes e resistentes de construção de conhecimento alternativas e reflexivas. Entende-se que o aprofundamento dessas estratégias – inclusive em futuras pesquisas sobre o tema, dado o caráter não definitivo da abordagem realizada neste artigo, tem enorme potencial para construir e consolidar lugares culturais contra-hegemônicos, para responder aos desafios combinados da neutralização da subjetividade e da anulação da experiência, amplificados na era digital do século XXI.

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Notas

* Artigo de pesquisa

1 Tradução livre.

2 O mesmo ocorre com a gestão empresarial, na qual os números são os objetos imediatos de manejo e tradutores do sucesso ou fracasso do empreendimento. O historiador identifica essa “guinada estatística” investigando as “pontas” da teia social em que os fenômenos ocorrem, com sua existência mantida pela sua circulação por todas elas (Latour, 2000).

3 O Dilema do Prisioneiro, formulado por um matemático originalmente em 1950 e um dos principais mecanismos de análise da ciência política moderna, trabalha essa chave de neutralização das incertezas, aplicada à tomada de decisão do indivíduo em interação com outro indivíduo independente.

4 Me refiro aqui essencialmente ao mal-estar gerado em Kopenawa ao visitar museus parisienses e ver corpos embalsamados e objetos tradicionais de indígenas expostos da época da colonização.

5 Isso não é o mesmo que oposta, a despeito da binaridade com a qual debates são calcados na modernidade ocidental

6 E nacional, apesar da falta de interesse de longo prazo das instituições brasileiras

7 Outro exemplo citado pela autora é como a tradição e o conhecimento de tribos pela experiência com seus biomas locais ajudaram cientistas a aprofundar suas pesquisas sobre as relações ecológicas da região.

Informação adicional

Como citar este artigo: Fellipin dos Santos, G., e De Almeida, M. A. (2022). Desafios e alternativas da neutralização da subjetividade na cultura da modernidade. Universitas Humanística, 91. https://doi.org/10.11144/Javeriana.uh91.dans

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