Ouvidorias comunitárias: uma proposta de abordagem para a gestão territorial sob a perspectiva da nova agenda urbana e o direito à cidade Santa Cruz do Sul-RS*
Defensorías comunitarias: una propuesta de enfoque para la gestión territorial desde la perspectiva de la nueva agenda urbana y el derecho a la ciudad Santa Cruz do Sul-RS
Community Ombudsmen: A Proposed Approach to Territorial Management from the Perspective of the New Urban Agenda and the Right to the City Santa Cruz do Sul-RS
Ouvidorias comunitárias: uma proposta de abordagem para a gestão territorial sob a perspectiva da nova agenda urbana e o direito à cidade Santa Cruz do Sul-RS*
Universitas Humanística, vol. 92, 2023
Pontificia Universidad Javeriana
Paulo Jorge Riss da Silva a
Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil
Recepção: 26 Abril 2022
Aprovação: 12 Julho 2023
Publicação: 30 Dezembro 2023
Resumo: O artigo apresenta análise da fragmentação socioespacial na cidade de Santa Cruz do Sul/RS - Brasil e aspectos do Plano Diretor diante do atual debate sobre o espaço urbano conforme expresso na “Nova Agenda Urbana” (ONU/Habitat III-2016). A proposta das “Ouvidorias Comunitárias” introduz nova abordagem para compreensão do território através da espacialização de dados quali-quantitativos objetivando subsidiar políticas públicas com ênfase na inclusão social, envolvendo o poder público, as entidades civis, a academia e comunidades locais de maneira democrática na compreensão e proposição de ações, em uma estratégia que busque reverter os efeitos deletérios da fragmentação socioespacial e contribuir para o exercício da justiça espacial. O artigo está dividido em quatro tópicos: o primeiro trata de aspectos da fragmentação socioespacial em SCS e a problematização do Plano Diretor. No segundo são analisados aspectos das dinâmicas de urbanização em relação à Nova Agenda Urbana. Na sequência são apresentadas diretrizes que buscam embasar nova compreensão sobre as dinâmicas de urbanização com foco na inclusão participativa e o Direito à Cidade. Finalmente, por se tratar de uma proposta conceitual, o artigo não dispõe de dados empíricos. Entretanto, é possível entrever a necessidade de ampliação do conhecimento do território através da utilização e democratização das tecnologias SIG para a qualificação do arcabouço técnico-legislativo das instituições gestoras e o fomento da inclusão participativa nos processos decisórios de gestão territorial nas cidades.
Palavras-chave:fragmentação socioespacial, plano diretor, nova agenda urbana, direito à cidade, ouvidorias comunitárias.
Resumen: El artículo analiza la fragmentación socioespacial en la ciudad de Santa Cruz do Sul/RS, Brasil, y aspectos del plan director a la luz del debate actual sobre el espacio urbano expresado en la “nueva agenda urbana” (ONU/Hábitat III - 2016). La propuesta de la Defensoría Comunitaria introduce un nuevo enfoque para la comprensión del territorio a través de la espacialización de datos cualitativos y cuantitativos, con el objetivo de subsidiar políticas públicas con énfasis en la inclusión social, involucrando de forma democrática al poder público, entidades civiles, la academia y comunidades locales en la comprensión y propuesta de acciones, en una estrategia que busca revertir los efectos deletéreos de la fragmentación socioespacial y contribuir al ejercicio de la justicia espacial. El artículo se divide en cuatro temas: el primero aborda aspectos de la fragmentación socioespacial en SCS y la problematización del plan director. El segundo analiza aspectos de la dinámica de urbanización en relación con la nueva agenda urbana. A continuación, se presentan orientaciones que buscan apoyar una nueva comprensión de las dinámicas de urbanización con enfoque en la inclusión participativa y el derecho a la ciudad. Por último, al tratarse de una propuesta conceptual, el artículo carece de datos empíricos. Sin embargo, es posible vislumbrar la necesidad de ampliar el conocimiento del territorio a través del uso y la democratización de las tecnologías SIG, para cualificar el marco técnico-legislativo de las instituciones de gestión y promover la incursión de nuevas tecnologías.
Palabras clave: fragmentación socioespacial, plan director, nueva agenda urbana, derecho a la ciudad, defensores del pueblo comunitarios.
Abstract: The article presents an analysis of socio-spatial fragmentation in the city of Santa Cruz do Sul/RS – Brazil – and aspects of the Master Plan in light of the current debate on urban space as expressed in the “New Urban Agenda” (UN/Habitat III - 2016). The “Community Ombudsman’s Office” proposal introduces a new approach to understanding the territory through the spatialization of qualitative and quantitative data, with the aim of subsidizing public policies with an emphasis on social inclusion, involving public authorities, civil entities, academia and local communities in a democratic way in understanding and proposing actions, in a strategy that seeks to reverse the deleterious effects of socio-spatial fragmentation and contribute to the exercise of spatial justice. The article is divided into four topics: the first deals with aspects of socio-spatial fragmentation in SCS and the problematization of the Master Plan. The second analyses aspects of the dynamics of urbanization in relation to the New Urban Agenda. Next, guidelines are presented that seek to support a new understanding of the dynamics of urbanization with a focus on participatory inclusion and the Right to the City. Finally, as this is a conceptual proposal, the article has no empirical data. However, it is possible to glimpse the need to broaden knowledge of the territory through the use and democratization of GIS technologies, in order to qualify the technical-legislative framework of management institutions and to promote the incursion of new technologies.
Keywords: Socio-Spatial Fragmentation, Master Plan, New Urban Agenda, Right to the City, Community Ombudsmen.
Introdução
A fragmentação socioespacial, mais do que resultado das trajetórias locais e processos históricos que transformam o ambiente natural ou preexistente na (re)produção da cidade através das dinâmicas de expansão e conversão territorial sob o modo capitalista de produção é, na verdade, condição estrutural para a manutenção e ampliação desta lógica, no sentido de que é este diferencial que permite as distintas possibilidades da drenagem da renda fundiária oriundas desses processos de transformação da paisagem e permitem a concentração de capital por parte dos agentes especializados, tendo como resultado, em muitos casos, a fragmentação territorial e a segregação socioeconômica.
Por outro lado, estas distintas características dos locais nas cidades são apropriadas por habitantes e atores comunitários em redes de cooperação, convívio e interação horizontais que, em conjunto com as particularidades geográficas, dotam as localidades de características singulares em uma sinergia entre as externalidades do comando hegemônico do capital e as horizontalidades reforçadas por laços de pertencimento e identidade. Sob este viés, a segregação denota o grau de fragmentação do território desordenado sob o comando vertical do mercado, mas também permite identificar a diversidade que anima estes espaços e confere a cada localidade características e potencialidades específicas que propiciam o surgimento de novas ferramentas capazes de fomentar o desenvolvimento local de maneira ascendente, a partir da interação dos coabitantes em redes de pertencimento e racionalidades coordenadas a partir do local em novas abordagens para a gestão territorial.
Neste sentido, o objetivo deste texto é apresentar uma nova estratégia de acesso à informação no sentido de capacitar as comunidades ao exercício do direito à cidade e à justiça espacial. Trata-se do delineamento de diretrizes que compõem um projeto-piloto que está sendo desenvolvido junto a universidades e o Poder Executivo Municipal com vistas a proporcionar um novo entendimento acerca dos processos de transformação urbanos que permitam abordagem diversa das estratégias de ordenamento territorial, representados principalmente pelo Plano Diretor. Entende-se necessário proporcionar uma interação mais efetiva, democrática e participativa das comunidades na compreensão dos processos decisórios e na proposição de políticas públicas mais afinadas com as realidades locais em um contexto em que tais instrumentos são apropriados pelos círculos restritos das empresas e ‘solidariedades verticais’ que atualmente detém a primazia sobre os métodos e processos de produção do tecido urbano.
Este artigo está dividido em três seções. A primeira parte trata de aspectos da segregação da cidade de Santa Cruz do Sul na atualidade e de dispositivos do Plano Diretor (PD), que elenca como princípios “a compatibilização dos interesses dos diferentes segmentos sociais, priorizando o interesse coletivo sobre o individual” e “a participação da população no planejamento da cidade” conforme os incisos VIII e XI do artigo 3° do Capítulo 1 da lei (Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul, 1977a).
Os aspectos da segregação dão conta de espacializar o fenômeno, enquanto a análise do PD sob o viés da participação popular demonstra que o instrumento não atende ao objetivo de proporcionar a inclusão social e o direito efetivo à cidade. O assunto abordado na segunda seção –a Nova Agenda Urbana, documento adotado na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, realizado em 2016– é oportuna na medida em que a tendência ao crescimento da importância das cidades e as redes urbanas no contexto de um modo de produção capitalista que se financeiriza e virtualiza ao passo que proporciona o aumento exponencial da capacidade de concentração e os processos de fragmentação e dinâmicas de segregação que tem se acirrado nas duas últimas décadas.
Essa conjuntura reafirma o urbano –em sinergia com o rural– enquanto fronteira crítica de acumulação capitalista e, também, foco das resistências locais de coesão e reafirmação de potencialidades endógenas. Conforme exposto na Nova Agenda Urbana:
Nesta era sem precedentes de crescente urbanização [...] chegamos a um ponto crítico no entendimento de que as cidades podem ser a fonte de soluções dos desafios enfrentados pelo mundo atualmente, em vez de sua causa. Se bem planejada e administrada, a urbanização pode ser uma poderosa ferramenta para o desenvolvimento sustentável. (Organização das Nações Unidas, 2019; grifo nosso)
Em um terceiro momento são apresentadas diretrizes que buscam embasar uma nova compreensão sobre as dinâmicas de crescimento urbano que pretendem fornecer subsídios para a elaboração de uma nova estratégia de planejamento com foco no fomento da inclusão participativa e democrática dos cidadãos com vistas ao acesso ao direito à cidade e à justiça espacial enquanto alternativas para mitigar os impactos da fragmentação territorial denotadas pelos aspectos da segregação socioespacial na cidade –as Ouvidorias Comunitárias–.
Santa Cruz do Sul: aspectos breves da segregação socioespacial, plano diretor e território
Ao longo das três últimas décadas, Santa Cruz do Sul apresentou um processo contínuo e acelerado de crescimento urbano. Enquanto o centro histórico e bairros adjacentes atravessavam um processo de refuncionalização e verticalização, o processo de produção do espaço sob a forma de novos loteamentos ampliava os limites do perímetro urbano legal. Conforme preconizado por Harvey (2012), esta aceleração do consumo de território gera também a aceleração do tempo de giro da produção, denotando assim um ciclo que auxilia a explicar os processos de crescimento e expansão do tecido urbano. Ainda que as dinâmicas de verticalização e ampliação do perímetro urbano apresentem conotações antagônicas, o que se verifica é que se trata de movimentos complementares que cristalizam, sob a forma de cidade, o processo de (re)produção capitalista do espaço.
No âmbito da regulação jurídica local, os planos diretores, por estarem a serviço de grupos econômicos e atores hegemônicos, frequentemente são instrumentos de gestão territorial desenvolvidos e aplicados “de cima para baixo” que acabam por reproduzir a lógica de mercado que os originou. A aceleração do crescimento do meio urbano sob lógicas conflitantes é potencial gerador de desigualdade e exclusão através da fragmentação e segregação socioespacial. Tal segregação não constitui apenas reflexo da atuação das redes de agentes produtores do espaço urbano; ela é condição necessária a estes agentes para a extração da renda fundiária.
O trabalho contou com o apoio de diferentes instituições e foi realizado através de uma parceria entre a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e a Prefeitura Municipal (PMSCS), via Secretaria de Planejamento, utilizando dados do projeto MAPA DA CIDADE que, ao longo dos últimos quatro anos, coletou, compilou e espacializou dados georreferenciados inéditos no município tanto em quantidade quanto em abrangência de informações, fornecendo assim um mosaico que possibilita análises cruzadas mais estruturadas do território municipal. Na Figura 1 é possível identificar os domicílios mais populosos em relação à quantidade de responsáveis por domicílio com rendimento mensal nominal de até um salário-mínimo. É evidente a distribuição desigual da população na cidade, com a concentração de pessoas de baixa renda vivendo de maneira mais adensada em comparação com o centro.
As concentrações nos bairros à sudoeste apresentam vinculação com o Distrito Industrial e são caracterizados por baixos níveis de qualidade de vida e pobreza, enquanto os bairros ao norte e leste se caracterizam por ocupação mais esparsa com a miscigenação dos ambientes urbano e rural.
A maioria de proprietários com rendimento mensal na faixa inferior a dois salários encontra-se distribuído na porção sul-sudoeste da cidade. No centro e à nordeste, junto à base do maciço florestal conhecido como Cinturão Verde e em direção a leste estão localizados majoritariamente os proprietários que percebem rendimentos mensais superiores a quatro salários-mínimos.
Outro dado significativo que revela uma dimensão insuspeita da fragmentação territorial é a espacialização dos imóveis próprios alugados –pontos amarelos– e imóveis de posse precária, onde o proprietário exerce a propriedade, mas ainda não detém a posse plena do imóvel, geralmente vinculados a financiamentos –pontos pretos– (Figura 2).
Santa Cruz do Sul pode ser considerada uma cidade próspera, com elevada qualidade de vida e alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); entretanto, a distribuição espacial dessa pujança não é homogênea no território em termos demográficos, econômicos e sociais.
Essa heterogeneidade se reflete na distribuição dos estratos sociais no perímetro urbano (Figura 3), e pode ser identificada na distribuição desigual dos produtos imobiliários, tais como loteamentos populares, condomínios fechados, edifícios verticais e residências unifamiliares. Percebe-se a concentração de condomínios fechados nas partes altas da cidade, enquanto o sul concentra a maioria de produtos que visam atender a demanda das camadas vulneráveis da população. Os condomínios fechados localizados ao norte, por sua proximidade uns aos outros, acabaram por configurar uma espécie de “enclave fortificado” junto ao Cinturão Verde, onde o acesso é restrito e estes exercem pressão no ambiente natural. De outra sorte, percebe-se que a porção sul da cidade concentra praticamente todas os empreendimentos de loteamentos populares.
Santa Cruz do Sul completou as etapas de revisão do Plano Diretor preconizadas no Estatuto da Cidade –denominação oficial da lei 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta o capítulo “Política Urbana” da atual Constituição brasileira, cujos princípios básicos são “o planejamento participativo e a função social da propriedade”. em 2019, sendo que esta Lei Complementar é a principal ferramenta responsável pelas diretrizes de ordenamento territorial do perímetro urbano do município e das sedes distritais. O Plano Diretor, descrito pelo Estatuto da Cidade é “o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” e é ele que deve promover a interação entre os aspectos territoriais e os objetivos sociais, econômicos e ambientais propostos para a cidade, por sua população. Entretanto, as abordagens sobre aspectos estruturais desses dois paradigmas de desenvolvimento –o Plano Diretor e a Nova Agenda Urbana– nos permitem questionar se as atuais maneiras pelas quais o plano pretende ser o instrumento normativo do ordenamento territorial ainda são válidas sob o pretexto de uma suposta sustentabilidade ou se a própria utilização desta legislação ainda é adequada no contexto das recentes transformações nas redes urbanas globais e seus reflexos locais.
O primeiro capítulo do PD trata da ‘Conceituação, Princípios e Objetivos’ da Lei, dispostos em 3 artigos e 9 incisos. No artigo 2°, a “conceituação” do Plano Diretor é assim descrita:
Art. 1° O Plano Diretor é um instrumento técnico e político, sendo a base do processo de planejamento para a ocupação dos espaços urbanos e rurais, em suas mais variadas atividades, de maneira que sejam cumpridas suas funções sociais, com vistas ao desenvolvimento sustentável do Município, norteando a ação dos agentes públicos e privados. (Municipío de Sana Cruz do Sul, 2019; grifo nosso
Tanto o modo de produção capitalista a as relações entre as empresas vem se tornando mais complexo e sofisticado quanto o Estado desenvolveu maneiras mais complexas (ou complicadas) de exercer seu comando sobre o território. Entretanto, esse comando não se realiza em “campo neutro”; ele vem a reboque de acertos, conluios e trocas entre os agentes e proprietários dos meios de produção e o setor público.
A prática política atual é extremamente especializada, e essa interação cada vez mais intensa entre os agentes privados e o setor público caracteriza um novo momento de simbiose entre o capital e o Estado, via exercício da política, conforme descrito por Santos:
Vivemos um mundo da rapidez e da fluidez. Trata-se de uma fluidez virtual, possível pela presença dos novos sistemas técnicos, sobretudo os sistemas da informação, e de uma fluidez efetiva, realizada quando essa fluidez potencial é utilizada no exercício da ação, pelas empresas e instituições hegemônicas [...] o mundo da rapidez e da fluidez somente se entende a partir de um processo conjunto no qual participam de um lado as técnicas atuais e, de outro, a política atual, sendo que esta é empreendida tanto pelas instituições públicas, nacionais, intranacionais e internacionais, como pelas empresas privadas. (Santos, 2000, p. 41; grifo nosso)
É salutar e típico do processo democrático que grupos da sociedade se articulem e mobilizem em função de seus interesses e necessidades. Entretanto, os diversos grupos representativos não têm o mesmo grau de organização, poder econômico e fluidez de circulação entre as diversas instâncias competentes envolvidas. Conforme postulado por Santos:
A palavra fragmentação impõe-se com toda força porque, nas condições acima descritas, não há regulação possível ou esta apenas consagra alguns atores e estes, enquanto produzem uma ordem em causa própria, criam, paralelamente, desordem para tudo o mais. [...] Esse novo poder das grandes empresas, cegamente exercido, é, por natureza, desagregador, excludente, fragmentador, sequestrando autonomia ao resto dos atores. (Santos, 2000, p. 42; grifo nosso)
O poder de influência e atuação das grandes empresas não é apenas desagregador ao fragmentar as redes de união resistentes do território sob sua lógica própria. Ao exercer sua influência sobre o meio político, também é fonte geradora de insegurança jurídica, direcionamento da (re)produção da cidade, alterador de legislações e emanador de tensionamentos entre as esferas público e privadas, não raro criando situações que manipulam a opinião pública e, em casos extremos, antagonizam agentes públicos e privados nos processos de crescimento urbano. O próprio ordenamento jurídico é agente homogeneizador dos tempos e espaços, na medida que ele é hierarquicamente organizado de ‘cima para baixo’, desde a organização federativa nacional até a escala do município. Encontramo-nos diante de um contexto em que, ao aumento da complexidade e sofisticação da atuação e configuração do poder público, corresponde também uma atuação mais incisiva das empresas privadas, que buscam tornarem-se, elas próprias, detentoras do poder político com vistas a orientar a legislação, mídias e a própria população em agir no sentido do que elas, empresas, entendam como necessário para sua reprodução, tendo como custo socializado a fragmentação dos espaços locais, enquanto os processos de acumulação capitalista se agudizam e se concentram. De acordo com Etges:
A gestão do território, a regulação do território são cada vez menos possíveis pelas instâncias ditas políticas e passam a ser exercidas pelas instâncias econômicas. O que acontece é que hoje a economia se realiza pela política. (Etges, 2017; grifo nosso)
Outro aspecto a ser destacado é a capacidade associativa dessas empresas especializadas em se articularem diante de objetivos comuns. Os poucos empresários especializados criam parcerias ou reservas de mercado conforme a conjuntura, organizando-se em “solidariedades organizacionais verticalizadas” (Etges, 2001), entidades de classe, associações ou quaisquer outras formas de cooperação que possibilitem a ingerência sobre as estratégias de ordenamento territorial.
Boa parte destas empresas especializadas não são recentes e possuem atuação que remonta há décadas, derivadas de heranças ou capital acumulado por antepassados, de tal sorte que tais solidariedades organizacionais acabam por constituir não somente oligopólios empresariais locais, mas também familiares, reconhecidos pela população como detentores, além dos modos de produção, também das técnicas e do “saber fazer”; com influência nas mídias locais e na percepção pública enquanto detentores das técnicas de “desenvolvimento” do território.
Outro aspecto a ser destacado quanto ao processo de elaboração do PD diz respeito à representatividade e o objetivo exposto em seu primeiro capítulo, no sentido da inclusão social através da “participação da população no planejamento da cidade” com vistas a priorizar o “interesse coletivo sobre o individual”. Em matéria reproduzida no jornal local, “Gazeta do Sul” datado de 20 de dezembro de 2016, que versa sobre o processo de pesquisa de opinião e consultas públicas realizadas no âmbito da revisão do PD, destacam-se alguns dados:
De 484 votantes, apenas 131 pessoas afirmam conhecer o atual Plano Diretor do Município, o que representa 27,07 %. Outras 311 pessoas – mais da metade dos participantes, com um percentual de 64,26 % – não conhecem o Plano Diretor. 8,68 %, o equivalente a 42 pessoas, votaram em branco.
Com relação a ocupação do solo, 304 pessoas são favoráveis a ampliação da zona urbana do Município. O valor é equivalente a 62,81 %, mais da metade do público que votou. Outras 138 pessoas, 28,51 %, não são a favor. Apenas 42 pessoas votaram em branco.
Em vez de ir ao Centro, 369 pessoas – o equivalente a 76,24 %, preferem ter comércio e trabalho perto do local onde moram. Apenas 79 pessoas afirmam que não, e 36 pessoas votaram em branco. 77,48 % acreditam que o transporte coletivo deve ser privilegiado em relação ao transporte individual. O percentual corresponde a 375 pessoas, que vencem o número de 71 pessoas que votaram não e 38 pessoas que votaram em branco. (Gazeta do Sul, 2016b; grifo nosso)
Os números são emblemáticos. Ainda que através da reportagem não se possa precisar quantas audiências públicas ocorreram durante o período (de 02 a 19 de agosto de 2016), é de notório saber que tais audiências, historicamente, e novamente no último processo, não lograram sucesso no sentido de proporcionar a participação popular. Em que pese o tempo exíguo aberto à manifestação da(s) comunidade(s), a matéria detalha o período em que foram disponibilizadas urnas para votação e as maneiras de participação através dos ambientes virtuais:
Ao total, 484 pessoas participaram da pesquisa, que foi realizada pela internet e através de mais de 200 urnas espalhadas por Santa Cruz. No período de 2 a 19 de agosto, moradores responderam questionamentos sobre os mais variados temas de interesse direto da população, como ocupação do solo, meio ambiente, mobilidade urbana e também sobre os mecanismos de participação do cidadão no processo de elaboração do novo plano. (Gazeta do Sul, 2016b; grifo nosso)
É significativo o fato que, de um universo de aproximadamente 130 mil habitantes, menos de 500 pessoas tenham exercido a oportunidade de se manifestar. A despeito dessa representatividade irrisória, cerca de um quarto dos votantes afirma sequer conhecer o plano diretor ora vigente na época, e, no entanto, foram instados a responder questões relativas à “ocupação do solo, meio ambiente, mobilidade urbana”. Chama atenção que, desse contingente, três quartos afirmam serem “favoráveis a ampliação da zona urbana do Município”, seja lá o que isso possa significar para os cidadãos que se manifestaram na situação.
Torna-se patente que as iniciativas de fomentar a participação comunitária nos processos de tomada de decisão são realizadas de maneira inadequada por parte do setor público no sentido de proporcionar à população o acesso à informação de forma inteligível, bem como as estratégias de divulgação e inclusão em tais processos se mostram equivocadas, ainda que, na forma da lei e em atendimento ao Estatuto das Cidades, tais operações se encontrem contempladas. Tal dado é ainda mais contrastante quando consideramos que os poucos agentes privados, representando as empresas especializadas, têm acesso direto ao gestor público, apresentando sugestões técnicas específicas e com chances muito maiores de obterem sucesso na consagração de seus objetivos dispostos em lei.
Organização das Nações Unidas: HABITAT3 e a Nova Agenda Urbana
A estratégia de subdividir o território urbano através da ferramenta do “zoneamento” é tão indissociada do conceito de plano diretor em si, tornando-os praticamente sinônimos, que tal estratégia de abordagem enquanto resposta adequada ao ordenamento territorial e os conflitos que daí surgem sequer é questionada quanto à efetividade, legitimidade, representatividade ou mesmo necessidade de sua utilização como ferramenta de planejamento urbano.
O conceito de zoneamento no Brasil é herdeiro dos planos sanitaristas do início do século XX, a partir dos anos 1930, e marca o início da elaboração e proposição de planos conjunturais para as cidades num momento de incipiente industrialização, caracterizado, no âmbito urbano, pelo início da verticalização dos núcleos e cidades mais populosas.
Sob viés fordista, amparado no urbanismo enquanto disciplina acadêmica e a consolidação do projeto modernista de produção da cidade face ao incremento populacional induzido pelo novo papel na rede urbana em vias de consolidação, um segundo momento a ser destacada na difusão do protocolo de zoneamento se dá a partir de 1964, quando é introduzida a estrutura do sistema financeiro nacional de habitação, em um momento em que o conceito de zoneamento passa a ser utilizado em diversos municípios brasileiros com o objetivo de habilitar empresas ou os governos municipais a contrair empréstimos públicos para a produção da moradia.
Outros dois momentos importantes são quando da redemocratização do país, a partir dos anos 1980, e o surgimento de novos instrumentos de gestão territorial, a exemplo das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social – enquanto que, na década de 1990, foram introduzidas, dentre outras, inovações como as Operações Urbanas Consorciadas e outras ferramentas que acabaram sendo incorporados ao Estatuto da Cidade e representam também o início do processo de flexibilização institucionalizada do zoneamento e que estão contempladas nos planos diretores atuais, como no caso de Santa Cruz do Sul a partir de 2007. Conforme exposto por Silva:
O zoneamento continua sendo um dos instrumentos mais difundidos e utilizados no tocante ao controle do uso e ocupação do solo entre os municípios brasileiros mesmo diante das inovações pós-Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. Sua concepção de regulação da forma urbana, construída por meio de um processo cumulativo por mais de um século, utiliza uma matriz de parâmetros urbanísticos com base em critérios de incomodidade de usos e controle da replicabilidade do solo. (Silva, 2014)
Dentre outras variáveis, o zoneamento regula usos do solo, taxas de ocupação dos lotes etc., mas o elemento principal regulamentado pelo zoneamento, onipresente em todos os locais onde o PD é utilizado é o Índice Construtivo, que pode ser descrito como um número definido pelo plano diretor que, multiplicado pela área do lote, estabelece a quantidade máxima de metros quadrados possíveis de serem construídos. Não por acaso, o cerne das infindáveis discussões sobre a aplicação do plano diretor é justamente acerca da definição deste índice que, ao definir o montante de recursos a ser aplicado pelo agente privado na conversão territorial do espaço, acaba por galvanizar o debate sobre todo o mais. A disseminação da utilização dos planos diretores em todo o território nacional e a respectiva centralidade da utilização do índice é fator homogeneizante em toda a nação da interface da relação entras as empresas privadas e o Estado na gestão e ordenamento territoriais.
Contudo, a Organização das Nações Unidas, através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelece um novo paradigma de quantificação, análise e qualificação dos índices e indicadores relativos ao urbano. A abordagem, de certo modo reducionista, de como os índices construtivos são conceituados e aplicados indiscriminadamente em todo o território nacional ficam evidenciados quando comparados com a acepção geral que os termos ‘índices’ e ‘indicadores’ denotam no contexto econômico e estatístico atual. Na atual conjuntura, índices e indicadores são assim descritos por Magalhães Júnior (2007) e Januzzi (2004):
Indicadores são modelos simplificados da realidade com a capacidade de facilitar a compreensão dos fenômenos de modo a aumentar a capacidade de comunicação de dados brutos e de adaptar as informações à linguagem e aos interesses dos diferentes atores sociais. Para os gestores, são ferramentas essenciais ao processo de tomadas de decisões e para a sociedade são instrumentos importantes para o controle social. Não são elementos explicativos ou descritivos, mas informações pontuais no tempo e no espaço, cuja integração e evolução permitem o acompanhamento dinâmico da realidade. (Magalhães Júnior, 2007; grifo do autor)
Uma das maneiras de agregar um conjunto de indicadores e facilitar sua comunicabilidade em virtude do grande número de dados e informações disponíveis é a construção de outras formas de obter medidas-síntese, como os indicadores compostos ou os índices. Os índices são elaborados mediante a agregação de dois ou mais indicadores simples, referidos a uma mesma dimensão, ou a diferentes dimensões, da realidade. (Jannuzzi, 2004; grifo nosso)
A sistematização, compreensão, comunicabilidade e a possibilidade de diversos vieses de abordagem e intercâmbio ou interchangeability no trato, composição e aquisição de informações, portanto, dota a formulação de um sistema de índices e indicadores com características muito mais sofisticadas de apreensão das diferentes realidades e práticas que animam o território urbano e permitem que se implemente não apenas um monitoramento mais abrangente e dinâmico dos processos de crescimento da cidade como também possibilitam a emergência de um novo paradigma de planejamento urbano orientado às características especificas de cada local.
A estratégia das Ouvidorias Comunitárias pretende potencializar as dinâmicas locais de correlações de força e ingerência do ordenamento territorial sob um prisma diverso das relações bilaterais entre o setor público e o capital hegemônico em um esforço que busca fomentar principalmente a inclusão de racionalidades e práticas alternativas nos processos decisórios de planejamento local. Nesse sentido, os objetivos expostos no documento da Nova Agenda Urbana (NAU) podem indicar um caminho viável:
11. Compartilhamos uma visão de cidades para todos e todas, aludindo ao uso e ao gozo igualitários de cidades e assentamentos humanos, com vistas a promover a inclusão e a assegurar que todos os habitantes [...] sem discriminação de qualquer ordem, possam habitar e produzir cidades e assentamentos humanos justos, seguros, saudáveis, acessíveis física e economicamente, resilientes e sustentáveis para fomentar a prosperidade e a qualidade de vida para todos e todas [...] no sentido de integrar esta visão, conhecida como “direito à cidade”, em suas legislações, declarações políticas e estatutos. (Organização das Nações Unidas, 2019, p. 5)
Portanto, para que um plano diretor que se pretenda inserido no debate mais amplo no que concerne à sustentabilidade e o espectro abrangente que tal proposição adquira atualmente necessita obrigatoriamente uma reflexão mais aprofundada no que diz respeito à delimitação e, por que não, conceituação do tema conforme exposto no seu capítulo inicial, sob pena de estar simplesmente emulando uma retórica narrativa que, no aspecto conceitual, se encontra totalmente descolada do debate atual acerca do acesso ao Direito à Cidade e à inclusão social com vistas à justiça espacial.
As Ouvidorias Comunitárias
A proposta que se pretende uma estratégia de inclusão social nos processos orientadores das formulações de políticas públicas que atuem no sentido de promover o Direito à Cidade em um contexto de reivindicação de uma justiça espacial que atenda de maneira inclusiva e equânime a população é apresentada nessa seção –as Ouvidorias Comunitárias (OC)–.
A proposta das OC pretende fomentar o acesso e a possibilidade de exercer a efetiva democracia em seus múltiplos aspectos através da formação de núcleos populares participativos. No contexto das OC, se pretende que a constituição de tais núcleos se dará no maior número possível de bairros, ainda que a maneira enquanto a estratégia se estrutura também permita o recorte regional. Conforme exposto por Marguti et al.:
[Em] um cenário estrutural de insuficiente capacidade técnica e institucional nas secretarias de governo dos municípios, muitas vezes incapazes de levarem a cabo estudos e diagnósticos consistentes para compreender a demanda de sua população de maneira a orientar o planejamento. [...] muitos planos diretores acabam trazendo uma réplica do portfólio de instrumentos sugeridos pelo Estatuto da Cidade, sem aderência à realidade dos municípios. O descolamento do conteúdo dos planos diretores é, em grande medida, fruto da fragilidade da participação democrática e, mesmo nos municípios em que está presente, esta nem sempre tem a força e a mobilização necessárias para se contrapor aos interesses dos setores produtivos, que possuem a primazia sobre as decisões locacionais de seus empreendimentos e ações. (Marguti et al., 2016; grifo nosso)
A intenção da proposta é de congregar os diversos grupos sociais na utilização da estratégia, buscando abarcar as visões contraditórias do setor público, agentes de mercado, instituições em suas diversas organizações e o indivíduo particular etc., com vistas à escuta atenta, sistematizada e espacializada enquanto base para a formulação de propostas efetivas de proposição de políticas públicas –daí o termo “Ouvidoria”–. O diferencial das OC se dá principalmente através da sistematização das informações, que no contexto municipal adquirem novas dimensões através da implementação do Mapa da Cidade, projeto que trouxe a possibilidade de coletar e georreferenciar quaisquer informações. Essa inovação tecnológica, permite, pela primeira vez de maneira abrangente, multiescalar e multidimensional, compilar dados distribuídos espacialmente na cidade.
Historicamente, não somente o acesso aos dados, mas principalmente sua obtenção e compilação em um ambiente multifinalitário específico, que permita a articulação e cruzamento de dados de maneira coesa, sempre se constituiu em um gargalo decisivo na apreensão das diversas realidades locais e um entrave para o (re)conhecimento do território. Em relação ao plano diretor, tanto hoje como na proposta que se apresenta, o setor público é central na formulação da estratégia, mas enquanto interface na relação entre a população e o mercado no sentido de atuar mais como uma ‘caixa de ressonância’ do que enquanto agente propositor exclusivo da das políticas (Figura 4).
Ainda que o aspecto da fragmentação socioespacial reste confirmado no tecido urbano do município, é possível perceber que a localização de estabelecimentos institucionais –privados e públicos– se encontra distribuída de maneira relativamente ubíqua em todas as localidades do perímetro urbano. Apesar da maioria dos equipamentos estar localizada no centro, destaca-se que todos os bairros da cidade se encontram contemplados com algum tipo estabelecimento institucional, dentre postos de saúde, escolas, igrejas, entidades de classe, etc.
A proposta pretende utilizar essa rede institucionalizada capilarizada no território enquanto interface de comunicação do cidadão com o setor público através do banco de dados do Mapa da Cidade. Para tanto é necessário um espaço físico existente (uma sala ou até mesmo apenas uma mesa em local adequado), um terminal de computador e um operador para coletar os dados. O objetivo é a coleta de informações de cada indivíduo e a alimentação dessa informação no banco de dados (Figura 4).
A proposta é alimentar o banco de dados com informações a ser definidas no escopo do projeto, tais como endereço, idade , gênero etc. e demandas específicas dos cidadãos, de maneira a se obter, ao longo do tempo, um mosaico com diferentes informações que indiquem tendências locais de necessidades, anseios e demandas da população que, uma vez mapeadas, possam auxiliar o agente público na formulação de políticas direcionadas às necessidades concretas de cada localidade, tendo em vista que o padrão se conforma em escala, ao longo do tempo, informado pelo próprio indivíduo.
Desta maneira, o agente público mantém sua centralidade em todo o processo, mas agora enquanto interface entre o indivíduo, a sociedade civil organizada e a academia –porquanto agente concentrador de informação através do BD– e não mais como detentor absoluto da elaboração das políticas públicas de maneira vertical. Um esquema conceitual de como se propõe articular as relações entre essas diferentes esferas é exposta na Figura 6.
A proposta prevê a atuação em sinergia entre 4 agentes, sem organização hierárquica: I. O indivíduo que alimenta a OC com informação (letra P); II. As entidades de classe e organizações do setor civil com suas pautas e demandas específicas; III. A Academia com aporte de conhecimento e demandas de projeto e pesquisa; IV. O setor público, representado pela Prefeitura Municipal, enquanto interface entre os agentes e gerenciadora do banco de dados. O desenho da proposta estabelece a PMSCS enquanto elemento central no processo, mas não necessariamente enquanto protagonista das decisões, tendo em vista que a gestão pode encampar a proposta enquanto programa de gestão territorial, mas também pode atuar de maneira acessória, somente fornecendo o acesso ao banco de dados para utilização das demais entidades. A coleta das demandas pode se dar tanto de maneira aleatória, de forma que ao longo do tempo se constatem tendências comuns a cada localidade, quanto de maneira dirigida ao público, seja por iniciativa do poder público, das entidades da classe ou da própria população.
É importante que a responsabilidade pela operação da obtenção dos dados seja compartilhada entre as diferentes instâncias, mas o essencial é que se formate também uma matriz de dados básicos específica, para que se obtenha, além das informações relativas a cada pesquisa ou campanha, outros dados que possibilitem a observação da emergência de padrões de demandas ou necessidades insuspeitas. De qualquer maneira, é essencial que o poder público assuma essa centralidade do processo, seja pelo protagonismo ou enquanto parceiro repositório dos dados e interface de diálogo entre as entidades e indivíduos envolvidos. Conforme exposto por Marguti et al.:
Pressupõe a edificação de um modelo democrático de governança, que reverta a lógica dos interesses dominantes em benefício do conjunto da sociedade, e que permita que governos e sociedade decidam conjuntamente sobre as decisões que impactam a vida de todos. O próprio documento Habitat III [...] (UN, 2016b) aponta nessa direção, ao afirmar que os governos locais possuem papel fundamental de fortalecer a interação entre todos os atores, oferecendo oportunidade de diálogo com atenção especial aos direitos, às necessidades e as potenciais contribuições provenientes de todos os segmentos da sociedade. (2016, p. 23; grifo nosso)
A proposta, portanto, se pretende utilizar da infraestrutura física já existente, da sinergia entre os distintos agentes no fornecimento de dados e das demandas destes agentes em relação as suas áreas específicas de atuação em uma iniciativa de baixo custo que busca a relação horizontal entre as esferas de participação que priorize e fomente a participação popular enquanto esteio para a tomada de decisão e formulação de políticas públicas ou campanhas institucionais no sentido de proporcionar e garantir o direito à cidade (Figuras 5 e 6).
Desta maneira, ao mesmo tempo em que a estratégia fomenta a articulação entre os diversos agentes envolvidos na produção do ambiente urbano, ela também proporciona múltiplas oportunidades de interação das comunidades e dá guarida ao surgimento de projetos diversos e a formulação de políticas públicas orientadas de acordo com a demanda popular local.
Tal proposta visa substituir a noção hegemônica de reprodução do meio urbano através da utilização dos conceitos de zoneamento e índice construtivo pela incorporação dos índices e indicadores em consonância com os modelos adotados pela NAU, possíveis de serem construídos localmente em virtude da coleta e cruzamento de dados através do georreferenciamento. Nesse sentido, a proposta converge com o entendimento da Organização das Nações Unidas, expresso em alguns pontos da Nova Agenda Urbana:
13. Vislumbramos cidades e assentamentos humanos que.
(b) sejam participativos; promovam a participação cívica; estimulem sentimentos de pertencimento e apropriação [...] priorizem espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis, [...] fortaleçam interações sociais e intergeracionais, expressões culturais e participação política e propiciem a coesão social, a inclusão e a segurança em sociedades pacíficas e plurais, nas quais as necessidades dos habitantes sejam satisfeitas, reconhecendo as necessidades específicas daqueles em situação de vulnerabilidade;
(d) estejam aptos a enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades de um crescimento econômico inclusivo e sustentável, utilizando a urbanização para transformação estrutural [...] uso eficiente de recursos, aproveitando economias locais, reconhecendo a contribuição de setores informais e apoiando sua transição sustentável para a economia formal. (Organização das Nações Unidas, 2019)
Finalmente, a ideia aqui delineada não se trata ainda de um projeto, mas da exposição de uma proposta de trabalho que leve em consideração as condições locais e demandas da população, em uma estratégia que fomente a inclusão popular em nível individual, como forma de promover o Direito à Cidade através de instrumentos que propiciem o encadeamento de dados acerca do território com vistas a embasar a tomada de decisão e a formulação de políticas públicas, em um paradigma que rompa com o status quo das práticas e dinâmicas urbanas que privilegiam a reprodução dos métodos de apropriação hegemônicos do mercado sobre o instrumental técnico-legislativo que regula o ordenamento e a gestão territorial.
Considerações teórico-metodológicas
A proposta apresentada neste artigo –as Ouvidorias Comunitárias– pretende constituir uma nova abordagem relacionada às estratégias de participação popular que busque propiciar nova compreensão sobre os processos de urbanização na cidade de Santa Cruz do Sul (e quiçá em outras cidades médias em nível regional). O pressuposto básico da proposta parte da constatação de que, apesar dos ritos legais e institucionais na elaboração e revisão do Plano Diretor serem cumpridos conforme o demandado pela legislação, a participação popular e o acesso da população às instâncias de debate e tomada de decisão ainda é precário e bastante deficitário, o que torna este instrumento legal ainda carente de representatividade e legitimidade.
Não se trata, entretanto, de um projeto já formatado ou em vias de implementação. A proposta foi apresentada em duas oportunidades para os gestores da Secretaria de Planejamento do município e foi elaborado orçamento para o desenvolvimento do projeto em conjunto com duas instituições acadêmicas (Universidade de Santa Cruz do Sul/Núcleo de Gestão Pública –UNISC/NGP– e Pontifícia Universidade Católica do Paraná/Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana –PUCPR/PPGTU–) e um coletivo autônomo que desenvolve projetos no campo da experimentação e prática em inovação social urbana (TransLAB.URB, de Porto Alegre/RS).
O objetivo de integrar estas organizações (bem como demais secretarias da PMSCS e órgão de entidades civis da cidade) é de tornar o processo o mais horizontal e multidisciplinar possível, sendo que para tanto se pretende adotar a metodologia do “Marco Lógico” ou “Método ZOPP”, utilizado para o planejamento participativo de projetos nas mais diversas áreas. O nome é uma sigla em alemão que significa Zielorientierte Projektplanung (Planejamento de Projeto Orientado por Objetivos). No entanto, por motivos políticos e/ou de administração pública, o projeto ainda não evoluiu para o campo prático.
Diante do exposto, portanto, não é possível ainda, neste momento, proceder à análise da efetividade da proposta, seus benefícios, dificuldades e contradições, tendo em vista a inexistência de dados empíricos que permitam uma reflexão mais acurada sobre a estratégia, que se trata ainda de uma abordagem conceitual que busca maneiras de ser implementada.
De igual maneira, a intenção do artigo não é de proceder à análise minuciosa dos instrumentos do Plano Diretor ou das diversas políticas públicas relacionadas a esta e outras legislações. A questão da Fragmentação Socioespacial igualmente é bastante extensa e complexa para ser problematizada de maneira mais detalhada. Por um lado, o espaço escasso não permitiria o aprofundamento de questões tão abrangentes e, por outro, o objetivo do texto é lançar as bases conceituais da proposta das Ouvidorias Comunitárias enquanto uma estratégia alternativa de fomento à participação popular nos processos decisórios de gestão territorial. Enquanto servidor público municipal vinculado à pasta do Planejamento e Gestão há aproximadamente quinze anos e pesquisador da área de Desenvolvimento Regional há mais de uma década, tais questões têm sido trabalhadas em outros artigos desenvolvidos ao longo do tempo e também em minha dissertação de mestrado.
A opção de utilizar dados secundários, por exemplo (como no caso da citação da matéria de jornal), ao invés de coletar os dados diretamente junto ao setor público, se deve à intenção de evidenciar um processo peculiar nas dinâmicas de urbanização da cidade, onde os principais veículos de imprensa atuam como uma espécie de “assessoria de comunicação” do poder público, onde as matérias jornalísticas possuem esse caráter enviesado, sem entrar no contraditório das informações fornecidas pela municipalidade. Os dados da reportagem, neste caso, são os dados fornecidos em primeira mão pela Secretaria de Planejamento para a elaboração da matéria.
Desenvolvo estes temas de maneira mais aprofundada em artigo inédito “Direito à Cidade e o Ecossistema de Desinformação - uma análise a partir de Santa Cruz do Sul-2021”, apresentado virtualmente no XIX ENANPUR em 2021 e em minha tese de doutorado “Gramática da Urbanização: Fragmentação Socioespacial e Dinâmicas de Urbanização – uma análise a partir de Santa Cruz do Sul” que se se encontra em desenvolvimento e produção.
A proposta abordada, portanto, não permite, neste momento, estabelecer uma relação concreta quanto ao objetivo de fornecer subsídio às políticas públicas de planejamento, gestão territorial e participação pública. Porém, tendo em vista a experiência adquirida enquanto profissional junto à municipalidade e pesquisador da área de desenvolvimento regional, entende-se que tal proposta, se um dia vier à fruição e realidade, pode se constituir em uma ferramenta bastante útil frente ao esgotamento e crise dos paradigmas de planejamento urbanos vigentes, considerando-se principalmente o universo das cidades médias.
Referências
Etges, V. E. (2017). Desenvolvimento regional sustentável: o território como paradigma. Redes, 10(3), 47-55. https://doi.org/10.17058/redes.v10i3.11050
Gazeta do Sul (dezembro 20, 2016b). O que diz a pesquisa sobre o Plano Diretor. https://www.gaz.com.br/o-que-diz-a-pesquisa-sobre-o-plano-diretor-de-santa-cruz/
Harvey, D. (2012). Condição Pós–Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Loyola.
Jannuzzi, P. M. (2009). Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. Alínea.
Kumm, A., Hennig, D., Deprá, B., Riss da Silva, P. J., Purper, V., Lopes Silva, P. y Schneider, L. C. (2020). Elaboração do mapa axial de Santa Cruz do Sul/Rs: Aplicação De Medidas Sintáticas. Capa, (1). https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/mostraextensaounisc/article/view/20660
Magalhães Júnior, A. P. (2007). Indicadores ambientais e recursos hídricos: realidade e perspectivas para o Brasil a partir da experiência francesa. Bertrand Brasil.
Marguti, B. O., Costa, M. A., & Pereira Galindo, E. (2016). A trajetória brasileira em busca do direito à cidade: os quinze anos de estatuto da cidade e as novas perspectivas à luz da nova agenda urbana. Em M. A. Costa (org.), O Estatuto da Cidade e a Habitat III: um balanço de quinze anos da política urbana no Brasil e a nova agenda urbana (pp. 11-25). Ipea. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9155
Município de Santa Cruz do Sul. (2019). Lei Complementar nº 741, de 12 de abril de 2019. Autor. https://www.santacruz.rs.gov.br/pd/
ObservaDR. (s. d.). Datos e Mapas de Santa Cruz do Sul. Autor. https://observadr.org.br/dados-e-mapas-de-santa-cruz-do-sul/
Organização das Nações Unidas (ONU). (2019). HABITAT III – Nova Agenda Urbana 2019. Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (ONU-Habitat). https://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Brazil.pdf
Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul. (1977a). Plano diretor de desenvolvimento urbano de Santa Cruz do Sul. Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul.
Santos, M. (2000). Por uma outra Globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record.
Silva, J. R. F. (2014). Zoneamento e forma urbana: ausências e demandas na regulação do uso e ocupação do solo [dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo, Brasil.
Notas
*
Artigo de reflexão.
Autor notes
a Autor de correspondência. Endereço eletrônico: pjriss.silva@gmail.com
Informação adicional
Como citar: Riss da Silva, P. J. (2023). Ouvidorias comunitárias: uma proposta de abordagem para a Gestão territorial sob a perspectiva da nova agenda urbana e o direito à cidade Santa Cruz do Sul-RS. Universitas Humanística, 92. https://doi.org/10.11144/Javeriana.uh92.ocpa