Por um pensamento aerífero: notas sobre o ar nos curtas-metragens de Cao Guimarães*

Por un pensamiento aerífero: notas sobre el aire en los cortometrajes de Cao Guimarães

For an Aeriferous Thought: Notes on Air in the Short Films of Cao Guimarães

Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, vol. 15, núm. 2, 2020

Pontificia Universidad Javeriana

Rafael de Almeida **

Universidade Federal de Goiás, Brasil


Recibido: 10 Noviembre 2019

Aceptado: 17 Marzo 2020

Publicado: 01 Julio 2020

Resumen: Habiendo reconocido la presencia difusa del elemento del aire en la producción de cortometraje del cineasta y artista visual Cao Guimarães, pretendemos investigar la manifestación del aire, como elemento poético, en la producción de cortometrajes del realizador con respecto a nociones como la ligereza, la inmaterialidad, la fluidez y el movimiento. Partimos de la hipótesis de que la recurrencia estilístico-temática del elemento aire nos permitiría reconocer en nuestro corpus la formación de un pensamiento poético aerífero. O sea, un pensamiento que de manera simultánea cede paso al aire y/o reserva, que acoge y se alimenta del soplo de lo real, sin impedir su paso o aprisionarlo. Realizaremos una investigación analítico-descriptiva de quince cortometrajes, para saber de qué manera cada uno de ellos maneja el aire como elemento poético. Nuestro corpus estará compuesto por las siguientes obras de Cao Guimarães: The eye land (1999); Between – inventário de pequenas mortes (2000); Sopro (2000); Hypnosis (2001); Volta ao mundo em algumas páginas (2002); Aula de anatomia (2003); Nanofonia (2003); Concerto para clorofila (2004); Da janela do meu quarto (2004); Atrás dos olhos de Oaxaca (2006); Peiote (2007); Sin peso (2007); El pintor tira el cine a la basura (2008); O sonho da casa própria (2008); O inquilino (2010). Finalmente, nuestra intención es señalar que la pertinencia de la comprensión del pensamiento poético aerífero en el trabajo de Cao Guimarães está relacionada tanto con la estética videográfica asumida por las obras, como con la capacidad de ceder y retener lo real.

Palabras clave:aire, Cao Guimarães, imagen video, pensamiento aerífero.

Resumo: Havendo reconhecido a presença difusa do elemento ar na produção curta-metragista do cineasta e artista visual Cao Guimarães, pretendemos investigar a manifestação do ar, enquanto elemento poético, na produção curta-metragista do realizador em relação com noções como a leveza, a imaterialidade, a fluidez e o movimento. Partimos da hipótese de que a recorrência estilístico-temática do elemento ar nos permitiria reconhecer em nosso corpus a formação de um pensamento poético aerífero. Ou seja, um pensamento que simultaneamente dá passagem ao ar e o reserva, que acolhe e se alimenta do sopro do real, sem impedir sua passagem ou aprisioná-lo. Realizaremos uma investigação analítico-descritiva de quinze curtas-metragens, de modo a perceber de que forma cada um deles agencia o ar enquanto elemento poético. O nosso corpus será composto pelas seguintes obras de Cao Guimarães: The eye land (1999); Between – inventário de pequenas mortes (2000); Sopro (2000); Hypnosis (2001); Volta ao mundo em algumas páginas (2002); Aula de anatomia (2003); Nanofonia (2003); Concerto para clorofila .2004 ); Da janela do meu quarto (2004); Atrás dos olhos de Oaxaca (2006); Peiote (2007); Sinpeso (2007); El pintor tira el cine a la basura (2008); O sonho da casa própria (2008); O inquilino (2010). Por fim, nossa intenção é sinalizar que a pertinência da compreensão do pensamento poético aerífero no trabalho de Cao Guimarães está conectada tanto à estética videográfica assumida pelas obras, quanto à capacidade de dar passagem e reter o real.

Palavras-chave: ar, Cao Guimarães, imagem-vídeo, pensamento aerífero.

Abstract: After recognizing the diffuse presence of the element of air in the short films by filmmaker and visual artist Cao Guimarães, we aim to investigate the manifestation of air, as a poetic element, in the production of short films by the director with respect to notions such as lightness, immateriality, fluidity, and movement. We start from the hypothesis that the stylistic-thematic recurrence of the air element would allow us to recognize, in our corpus, the formation of an aerial poetic thought. In other words, a thought that simultaneously gives way to the air and/or reserve, which welcomes and feeds on the breath of that which is real, without preventing its passage or imprisoning it. We will conduct an analytical-descriptive research of fifteen short films, to find out how each of them handles air as a poetic element. Our corpus will consist of the following Cao Guimarães works: The eye land (1999 ); Between – inventário de pequenas mortes (2000); Sopro (2000); Hypnosis (2001); Volta ao mundo em algumas páginas (2002); Aula de anatomia (2003); Nanofonia (2003); Concerto para clorofila (2004); Da janela do meu quarto (2004); Atrás dos olhos de Oaxaca (2006); Peiote (2007); Sin peso (2007 ); El pintor tira el cine a la basura (2008); O sonho da casa própria (2008); O inquilino (2010). Finally, our intention is to point out that the relevance of understanding aeriferous poetic thought in the work of Cao Guimarães is related both to the videographic aesthetics assumed by the works, and to the ability to yield and retain that which is real.

Keywords: air, Cao Guimarães, image-video, auriferous thought.

Introdução

A partir de um conjunto de curtas-metragens do cineasta e artista visual Cao Guimarães, pretendemos refletir sobre o ar, enquanto elemento poético, e suas formas de manifestação na obra do realizador. Nos questionamos se a presença difusa do elemento ar nos permitiria reconhecer na produção curta-metragista de Cao Guimarães a formação de um pensamento poético aerífero, um pensamento que simultaneamente dá passagem ao ar e o reserva. Partimos do pressuposto de que se “um filme é feito de brechas por onde sopra o vento do real, a corrente de ar do inconsciente” (Comolli 2007, 31), esse conjunto de obras seria capaz de revelar, em maior ou menor grau, que um pensamento poético aerífero de Cao Guimarães pode ser percebido em relação com noções como a leveza, a imaterialidade, a fluidez e o movimento.

Ou seja, tanto por permitir que sua produção curta-metragista atue como o lócus privilegiado para a experimentação formal, quanto por embasar sua produção artística em uma relação intrínseca com a realidade, por meio da contemplação, proposição e/ ou imersão, tendemos a notar a formação de um pensamento poético que acolhe e se alimenta do sopro do real, sem impedir sua passagem ou aprisioná-lo. Um pensamento aerífero, que se forma aos poucos pela condensação lenta do ar, como um vapor que paulatinamente garante a aparição de uma imagem distinta das coisas do mundo.

Metodologicamente nos ampararemos primordialmente em uma investigação descritivo-analítica de cada uma das obras, de modo a perceber de que forma cada uma delas agencia o ar enquanto elemento poético. O nosso corpus será composto pelas seguintes obras de Cao Guimarães: The eye land (1999); Between – inventário de pequenas mortes (2000); Sopro (2000); Hypnosis (2001); Volta ao mundo em algumas páginas (2002); Aula de anatomia (2003); Nanofonia (2003); Concerto para clorofila (2004); Da janela do meu quarto (2004); Atrás dos olhos de Oaxaca (2006); Peiote (2007); Sin peso (2007); El pintor tira el cine a la basura (2008); O sonho da casa própria (2008); O inquilino (2010).

Pretendemos realizar associações temático-estilísticas entre as obras, formando conjuntos que nos permitam refletir sobre a manifestação poética do ar, sobretudo em relação às noções de leveza, imaterialidade, fluidez e movimento. Após ter refletido em torno a cada conjunto de curtas-metragens, de forma singularizada, pretendemos estar capacitados a verificar a pertinência da proposição de um pensamento poético aerífero de Cao Guimarães.

Nota sobre o ar e a leveza

“O ar que sai do peito em vozes multiformes no comércio das ruas não é o mesmo ar que balança os toldos multicoloridos que protegem do sol e da chuva os donos das mesmas vozes”, diz a sinopse de Sin Peso, “dois pesos diferentes configuram o frágil equilíbrio da vida nas ruas da Cidade do México” (Guimarães 2007a). No plano sonoro, escutamos vozes em língua espanhola, que pela exaltação parecem tentar promover a venda de produtos, enquanto no plano visual, o olhar do diretor se volta para as formas geradas pelos utensílios que resguardam essas vozes do sol.

Por meio de explorações de composição com as formas geométricas de cores vivas geradas pelo encontro das coberturas de tecido, Cao começa a gerar verdadeiros quadros pintados pelo acaso e pela sensibilidade de seu olhar, os quais potencializam um encontro fecundo entre cinema e pintura. O plano fixo é privilegiado. Somente com o passar do tempo, e com a abertura paulatina do enquadramento dos planos, compreenderemos que estamos em uma feira livre.

Do ponto de vista da visualidade, é clara a referência ao movimento neoconcretista brasileiro, com a valorização da cor pura, a forma pura, e da expressividade que lhes é intrínseca. No Manifesto neoconcreto, publicado em 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Ferreira Gullar (1959) alertava que o neoconcreto havia nascido de “uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica”, alegando, deste modo, que “o racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica” (4). Isto significa dizer que os “conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura — que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva — são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência” (4). Ao se valer dessa citação, por meios de suas formas geométricas flutuantes, Cao faz uma apologia à expressividade dos materiais de composição que lida para compor sua narrativa.

Ou seja, esses materiais multicoloridos e que flutuam acima dos corpos desses feirantes são leves, desprovidos de peso, vibram ao sabor do vento, assim como seus donos, os quais também são desprovidos de peso, moeda, poder aquisitivo; e geralmente levados pela brisa da vida, dançando com ela e inventando a cada dia novos passos: formas de resistir ao que lhes é imposto pelas realidades cerceadoras de liberdade.

Sendo assim, em Sinpeso, Cao Guimarães faz um retrato não-rostificado desse homem comum, ordinário, pobre, mexicano e livre. Impulsiona-nos a imaginar esses rostos, a tentar estar abaixo daquelas “pinturas em movimento” junto a eles, a exprimir nossa resistência pelo ato de fala. Por fim, a experimentar, ao menos durante o tempo do filme, a liberdade da leveza garantida àqueles que se permitem levar pelas correntes de ar.

Em Peiote (Guimarães 2007b), acompanhamos um ritual indígena em praça pública. Todos estão repletos de ornamentos e dançam exibindo seus corpos e vestimentas. Mas o olhar de Cao não está voltado para ele e, por consequência, o nosso sofre um desvio. As imagens em super-8 mm, desaceleradas, prendem-se à figura de um garoto, de talvez quatro anos de idade, que se coloca entre os guerreiros e inicia uma espécie de luta imaginária, “uma criança possuída por entidade híbrida (luta livre mexicana e super heróis japoneses)” que “oferece aos índios ancestrais a contra-dança” 1 (Guimarães 2007b).

O menino, vestido com calça jeans, uma camiseta amarela de manga longa e um gorro preto — na qual é possível ver uma imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, na frente —, aos poucos altera as feições de seu rosto, contorce seu corpo, dá socos e chutes no ar.

É um acontecimento diante da câmera. Por um lado, os participantes do ritual ficcionalizam a dança. Por outro, a criança responde através de seu próprio corpo. Sua crença naquilo que vê a lança em um estado de puro devir, em que seus gestos físicos são desdobramentos da virtualização da realidade que está sendo operada naquele instante.

“Peiote” é um pequeno cacto utilizado culturalmente pelos seus efeitos alucinógenos como parte dos rituais religiosos tradicionais de determinadas tribos indígenas mexicanas, o que justifica o título dado ao filme, já que vemos e experimentamos um devir da ordem do agenciamento droga. As cores fortes e saturadas, a musicalidade rítmica e hipnótica, a rarefação da velocidade, o movimento giratório dos corpos que involuntariamente nos impede de acompanhar todos os gestos do nosso protagonista, tudo concorre para que nós também sejamos afetados por essa sensação estética.

No fim, potencializando ainda mais o falso, e paradoxalmente, garantindo mais veracidade aos seus gestos, o garoto deita-se no chão. Ficcionaliza talvez uma morte, simula a perda da batalha para, quem sabe, levantar no segundo seguinte e começar tudo novamente. Nos parece que, para Peiote, a leveza do ar surge como porta de entrada à invisibilidade que garante a virtualização de outros mundos possíveis.

Atrás dos olhos de Oaxaca é fotografado por Cao Guimarães e Marcos M. Marcos, o Canário do duo O Grivo. Aqui, acompanhamos, em um primeiro instante, as ondas se quebrando na beira da praia. Logo em seguida, a câmera acompanha a linha contínua amarela do chão da estrada e enquadra o retrovisor do carro. De maneira extremamente sutil, entre planos que exploram as paisagens naturais e personagens anônimos que estão na carroceria do veículo da frente na estrada, notamos que temos três personagens no carro, três amigos: Cao, Nelson e Canário, fazendo juntos um road-movie pelas estradas do estado mexicano de Oaxaca. Eles param para apreciar a paisagem. Uma nuvem de fumaça branca, que sai da mata, a cobre por completo, e lentamente se rarefaz. Em seguida, eles parecem ir à busca do local em que a fumaça é emitida.

Chegam a uma casa, que pode ser uma espécie de fornalha. Ao lado dela, uma outra, com uma família. O regime de imagens se altera; saímos do super-8 mm e vamos ao vídeo, que parece ter algum tipo de textura diante da lente. A câmera de vídeo é fixa e registra em um plano geral frontal a entrada da casa. É através dele que vemos Cao entrando em quadro, com uma câmera super-8 mm em mãos. O regime imagético passa a alternar entre as imagens do registro da ação de Cao junto aos moradores da casa, um pai de família e dois filhos pequenos — realizadas pelo Canário —, e as imagens feitas pela câmera super-8 mm de Cao enquanto estava sendo filmado. É tornado visível no próprio filme, a fonte do olhar: mise-en-abyme.

Cao permite que as crianças manuseiem sua câmera, e essas mesmas crianças são motivos de retratos em movimento. Pela imagem do vídeo, o diretor parece explicar ao pai de família a funcionalidade daquele aparelho. Elementos da natureza são explorados. Logo em seguida, ele aproxima-se do senhor, fotometra, enquadra um plano detalhe de seus olhos e, com um gesto, entendemos que ele pede ao senhor para que olhe para a lente da câmera. Pela imagem dos olhos desse homem comum, singular, um qualquer, sentimos um sorriso se abrir para além das bordas do quadro. Esses olhos são espelhos da alma, que refletem para além da imagem daquele que os filmam, um devir que se confunde com um povo.

A fumaça em Atrás dos olhos de Oaxaca parece surgir como um convite — não tão somente à descoberta do que se esconde por trás da cortina de vapor ou de sua origem, mas a uma experiência subjetiva com a volatilidade da leveza do ar. Por meio da inconstância e variabilidade, bem como da ausência de corpo ou matéria do ar, a volatilidade da fumaça nos remete à capacidade de voar, que se não é possível ao nosso corpo físico, é acessível ao nosso olhar.

Já em O sonho da casa própria (Guimarães 2008), percebemos, em um movimento simultâneo, por um lado, a exploração da plasticidade da imagem guiada pelo registro de telas que cobrem edifícios em construção, telas que se movem e dançam de acordo com o ritmo ditado pelo vento, e, por outro lado, da textura e semelhança formal do véu de uma noiva em um casamento. De início, estamos em uma igreja e um véu, posto diante da lente, garante uma outra configuração visual à imagem. Há uma disjunção visual e sonora, já que enquanto vemos a igreja, ouvimos o som de martelos se batendo contra a madeira, de serras trabalhando, de uma obra em construção. Em determinado instante, esse regime sonoro se mescla ao coral do casamento.

A relação metafórica entre o véu e as telas de proteção será alcançada pela alternância e as aproximações dos dois tipos de registros: ora a construção do edifício, com suas telas flutuantes, ora a consumação do casamento, com seu véu deslizante. Na igreja todos se levantam. Uma lenta fusão entre a textura do véu da noiva e da tela de proteção do edifício torna evidente a relação que existe entre um casamento e um canteiro de obras. A mão feminina, já com a aliança, segura o véu e alcança o edifício. É como se através de um discurso imagético-narrativo, destituído de verbalidade, Cao apontasse para a hipótese de que o sonho da casa própria estaria vinculado a um “bom” casamento.

Em certas ocasiões o regime de registro realista das imagens é abandonado para dar lugar à abstração das formas, anamorfoses, que o lançam profundamente nas categorias da videoarte. O vento que suavemente move as telas do edifício é o mesmo que sopra o véu da noiva. Alterado pelo movimento do ar, a imponderabilidade da leveza gera contornos e formas imprevisíveis para as imagens dos elementos que aparenta proteger: a casa e a mulher.

De um modo geral, o que aproxima Sinpeso, Peiote, Atrás dos olhos de Oaxaca y O sonho da casa própria é uma relação com o ar por meio da noção de leveza — leveza compreendida a partir de diferentes acepções, em especial: liberdade, invisibilidade, volatilidade e imponderabilidade. Mesmo que de uma maneira velada e não declarada, o ar, enquanto elemento poético compreendido enquanto leveza, expõe uma propensão à mescla, à entrega, à descoberta do eu que não está em mim, ao devir-outro.

Nota sobre o ar e a imaterialidade

No ano 2000, Rivane Neuenschwander, esposa de Cao naquele momento, torna-se artista residente do InternationalArtists Studio Program in Sweden (IASPIS), em Estocolmo (Suécia). Em parceria com ela, Cao Guimarães irá dirigir Volta ao mundo em algumas páginas (Guimarães e Neuenschwander 2002). A ação que deu origem à obra foi realizada na Biblioteca Pública de Estocolmo em agosto daquele ano. Depois de quatro imagens fixas e desfocadas de um mapa geográfico mundial, vemos mãos que o cortam, respeitando como podem as linhas geográficas imaginárias que talham o mundo, que o segregam em sua invisibilidade.

Na próxima sequência, a câmera registra as mãos que carregam as pequenas peças do mundo em uma caminhada, revela o corpo de quem as carrega, mas não o rosto. Adentramos a biblioteca. Dentro dela, por poucos instantes, o olhar se porta como maquínico, simulando uma câmera de vigilância, registrando os outros sem que eles saibam que estão sendo observados. Depois disso, a ação começa propriamente.

Ao acaso, pegam um livro, abrem-no e inserem um dos recortes do mundo entre aquelas duas páginas. Essa atitude será repetida por várias vezes. No entanto, entre elas outros tipos de imagem irão surgir. Fazendo oscilar o regime de imagens que operava até então, de registro simplesmente. Viagem em alto mar, estamos à deriva, assim como as relações possíveis entre os fragmentos de mundo e as páginas dos livros. Todas as sequências que se intercalarão ao registro da ação na biblioteca irão sugerir uma ideia de deslocamento, de desterritorialização, de viagem, de mudança. Entre viagens de trem, com paisagens douradas pelo sol que toca as árvores, de navio, cruzando um farol a flutuar sobre as águas, de canoa, em meio a cardumes de peixes e nuvens, e o manuseio dos livros e dos pedaços cartográficos na biblioteca, por fim, encontramos explorações de materiais que nos levam para espaços em deslocamento sem nome, distantes dali, imaginários em sua existência.

Surge, então, uma cartela de texto: “Os leitores da Biblioteca de Estocolmo continuam encontrando estranhos fragmentos de mapas entre as páginas de seus livros... isso pode lhes significar alguma coisa... ou não”. E enquanto um navio entra em quadro, uma citação de Albert Camus surge na tela: “O acaso é o deus da razão” (Guimarães e Neuenschwander 2002).

Um plongèe registra do alto de um navio, uma senhora, de cabelos curtos e brancos, com a mão direita no parapeito, olhando para o horizonte à esquerda, enquanto as águas vão sendo deixadas para trás. Talvez carregássemos dentro de nós o lugar que habitamos. Na próxima sequência, com imagens descoloridas, vemos agora o rosto de Rivane; e não somente suas mãos, ou o resto de seu corpo em deslocamento. Enquanto por uma legenda, lemos: “onde é mesmo a nossa casa?”. Enquadrada em um plano detalhe, com um lenço na cabeça, ela olha fixamente para a câmera, e ao mesmo tempo adorna seu cabelo com pequenas frutas redondas presas em galhos minúsculos. Sorri.

Mantendo o regime de imagens em super-8 mm preto e branco, vemos um braço masculino entrando pelo lado direito do quadro, que supomos ser o de Cao Guimarães, segurando algo nas mãos. Lemos na legenda: “vamos levar uns cogumelos?”. O próximo plano é muito semelhante ao anterior, com a diferença de que pelo segundo plano percebemos que não estamos fixos, presos ao chão, mas sim em movimento, nos deslocando sobre as águas. Por meio de uma lenta fusão, vemos paulatinamente um braço feminino surgir do lado oposto do quadro, também segurando cogumelos, mas desta vez, envoltos por um lenço, o mesmo que cobria os cabelos de Rivane, o tornando próximo a um buquê de flores.

Talvez fossemos cidadãos do mundo, folhas à deriva, sopradas pelo vento do acaso, que nos leva e nos traz, nos une e nos separa, e sobretudo, nos faz amar e sentir saudades. O vento que toca os corpos em Volta ao mundo em algumas páginas nos remete à eventualidade do caráter imaterial do ar. A incerteza dos caminhos do vento, metáfora do acaso, é capaz de transportar os corpos a circunstâncias acidentais: se por um lado esses caminhos podem nos fazer flutuar, por outro eles são capazes de nos golpear.

Já em Da janela do meu quarto (Guimarães 2004a) não se trata de criar aberturas para o acaso, mas de estar aberto para o seu acontecimento, “o acaso é quem domina”. Ou seja, não se trata de lidar com o real através de uma proposição, lançar um conceito que gere reverberações inesperadas. “Eu estava com um filme Super-8 e uma câmera na mão, indo embora de uma aula que eu dei no Pará”, descreve Cao Guimarães (2006), “estava chovendo muito, e, de repente, chegam aqueles meninos e começam aquela dança, aqueles negócios, aquela beleza. Na hora, alguma coisa detonou em mim, eu peguei a câmera e os 3 minutos de Super-8 que eu tinha e comecei a rodar.

Nesse sentido, o filme é assinalado por uma estética minimalista, que privilegia uma espécie de síntese artística marcada por uma seleção pontual de elementos essenciais para a narrativa, como forma de potencializar o efeito expressivo de cada um deles, em contraposição a uma tradição naturalista do documentário, por exemplo. “Acho que foram lembranças de quando eu era pequeno e eu pensava: só tenho 3 minutos, até onde eles vão com isso?” (Guimarães 2006). A restrita quantidade de materiais de composição permitirá uma percepção expandida da relevância poética de cada material em si e também da maneira que eles se organizam ao se relacionarem uns com os outros, durante a montagem. Da janela do seu quarto, Cao Guimarães (2004a) viu “uma rua de areia molhada e debaixo da chuva dois corpos de criança brigavam se amando e se amavam brigando” 2 , e a potência desse acontecimento casual gerou seu filme.

As imagens que possuem como marca de origem o hibridismo, perceptível pela dupla camada de referencialidade a que se submeteram — os pixels do vídeo sobrepostos aos característicos grãos do super-8 mm —, são embutidas de uma vagarosidade propositiva que nos despertam para uma delicada plasticidade do real. E quando, aqui, nos referimos a realismo, não o consideramos como uma adequação análogo-mimética entre signo e referente, mas por um viés deleuzeano à percepção da duração vivida. Esse efeito de lentidão, pensada segundo o diretor já durante a captação das imagens e manipulado durante a montagem, aos poucos dá-nos a sensação de estar em contato direto com o tempo, um tempo do acaso, apreendido em blocos e em distintas camadas. Um tempo que é deslocado, suspenso, de uma possível linha cronológica, que não é o presente e tampouco o passado ou o futuro. É o tempo do acontecimento, dessa imagem que não o representa, mas o é.

Em nossa análise, o acontecimento — esse virtual sempre incorporado no estado das coisas, porém que não se esgota nele, habitante de um “tempo morto em que nada se passa” (Deleuze 1992, 199), — que tenciona a rede do artista, e o permite traçar um plano sobre o caos, é do campo do trivial, do comum, do ordinário: duas crianças que brincam de brigar embaixo de chuva. É, em especial, a maneira que o documentarista organiza esses materiais (plano de composição) por intermédio de seu olhar, da escolha do plano à montagem, que nos garante sensações por meio de figuras estéticas que transbordam a realidade com poesia, e que ao invés de nos dar a ver um mero retrato do acontecimento, nos joga em uma realidade artística multiplicadora do caos.

Essa realidade, suspensa de um espaço bem demarcado, de uma temporalidade cronológica e circunscrita por uma lógica indiciária da imagem, é capaz de suscitar o aparecimento de outras imagens: vindas do pensamento, de lembranças, da memória. Portanto, em Da janela do meu quarto, é tudo muito menos uma busca por uma estética do observacional, do que fruto do acaso e da sensibilidade do documentarista em captar uma das esferas dessas realidades múltiplas que nos cercam a todo o tempo, variabilidades pulsantes constantemente se movimentando entre o mostrar e o se esconder em um mundo de variação universal. A imaterialidade do ar em Da janela do meu quarto surge, então, conectada à ideia de aparecimento. É por meio da duração impalpável que o espetáculo do ordinário aflora e os jogos de cena se manifestam.

“Corpos, partes de corpos. Carne, pele, poros. O pulsar da imagem na tela como o ir e vir do ar dentro do corpo”, 3 é o que nos oferece Aula de anatomia (Guimarães 2003a). Dentro de uma espécie de capela, através de um retroceder da imagem, presenciamos a ressurreição de um porco, um animal que poderia ter sido oferecido em sacrifício.

Na sequência seguinte, o porco é queimado e sua pele começa a ser retirada. Através de um corte vertical no tórax do animal, uma mão começa a revelar o que se esconde por debaixo da pele, as suas vísceras, seus órgãos. Um pedaço de pele do porco é usado para tampar o rosto de um homem, que exibe seu corpo para a câmera. À beira da praia, uma mulher tem o rosto tampado pelos cabelos ao vento, e por tentáculos que segura acima da cabeça. Uma mão expõe restos de uma ave, uma galinha, vísceras, pés, coração. Depois acompanhamos a morte do animal. Por fim, uma ema caminha na estrada.

Durante todo o tempo, camadas nos levam a outras, e parece sempre haver algo a ser descoberto, depenado. E por mais que se busque o que se esconde para além da superfície, as camadas são estratificadas e espessas ao ponto de duvidarmos ser possível chegar ao essencial. O essencial, talvez, já estivesse ali: na superfície. A presença do ar garante vitalidade e visibilidade aos corpos por meio da respiração. Logo, a incorporeidade explorada por Aula de anatomia evidencia que, para além da invisibilidade, a imaterialidade do ar parece suscitar a nossa percepção não dos corpos físicos que se desfazem diante dos nossos olhos, mas de sua dimensão espiritual que não podemos tocar.

Em El pintor tira el cine a la basura (Guimarães 2008), filmado em Burgos (Espanha), vemos em uma sala escura, um senhor que pinta de branco uma parede. Logo, imagens do curta Da janela do meu quarto começam a ser projetadas na parede, sobre a ação do pintor. A impressão que temos é de estar em uma galeria de arte ao fim de uma exposição, onde um senhor, após ter pintado por completo a tela fílmica de branco, a protege com uma película plástica com uma fita para então pintar de preto ao redor.

Feito isso, depois ele retira lentamente essa película da tela que garantia visibilidade àquelas imagens, e durante a ação nos resta a dúvida de até quando a imagem suportará, de até quando nossos olhos conseguirão vê-las. Em seguida, ele sai da galeria, a câmera apenas o registra, e dirige-se ao lixo de rua mais próximo, no qual deposita a pele da tela.

Nesse sentido, o que inferimos a partir dessa obra diz respeito à imaterialidade da imagem, ao fato de a imagem ser impalpável, apesar de o pintor tocar na tela da galeria. Logo, esse movimento dos corpos que vemos na tela também não é palpável. Acredito ser nesse sentido que Cao considera El pintor tira el cine a la basura como uma “nota irônica sobre os caminhos que o cinema pode tomar”. 4 O ar, enquanto elemento poético imaterial, está permeado por um caráter de insubstancialidade que permite ao cinema ser compreendido enquanto fábrica de sonhos.

De acordo com Philippe Dubois (2004), “a imagem cinematográfica pode ser considerada duplamente imaterial: de um lado, enquanto imagem refletida; de outro, enquanto imagem projetada”. Ou seja, segundo ele, “a imagem que vemos – ou que cremos ver – do filme na tela de cinema não passa, como se sabe, de um simples reflexo sobre uma tela branca de uma imagem vinda de outra parte (e invisível enquanto tal)” (61). Diante do exposto, nos parece que a relação com o ar por meio de sua imaterialidade é o que aproxima Volta ao mundo em algumas páginas, Da janela do meu quarto, Aula de anatomia e El pintor tira el cine a la basura. Pensada sob distintos prismas, — da eventualidade, do aparecimento, da incorporeidade e da insubstancialidade — a imaterialidade do ar guarda muitas semelhanças com a imaterialidade da própria imagem cinematográfica. Portanto, o que esses trabalhos suscitam é uma reflexão acerca do fato de que, essencialmente, a imagem cinematográfica não existe enquanto matéria, ela “consiste numa breve passagem, espécie de intervalo permanente que nos ilude enquanto o olhamos, mas se desvanece logo depois de entrevisto, para não mais existir senão na memória do espectador” (Dubois 2004, 63), assim como o ar. Sendo assim, conforme Dubois, ela se encontra próxima da imagem mental, quase na mesma medida em que está de uma imagem concreta.

Nota sobre o ar e a fluidez

Hypnosis (Guimarães 2001) seduz primeiro por meio do som, de um toque de piano forte e repetitivo. Um plano em movimento vertical de cima para baixo revela fortes luzes coloridas na escuridão. As fusões constantes entre um plano e outro reforçam a sensação estética que somos induzidos a ter. Por um plano geral, descobrimos que estamos em um parque de diversões. No entanto, a temporalidade é rarefeita. Abstrações de luzes, que correm pela tela deixando seus rastros, mesclam-se a linhas iluminadas em movimento, como teias que giram A exploração da luz e da cor como material plástico nos desloca de nosso estado habitual de percepção, e como o próprio título já sugeria, é como se uma ilusão lisérgica hipnótica nos tomasse. A montagem é rítmica e com ela somos levados, sem saber aonde iremos chegar. Em determinado plano, luzes parecem indicar um caminho possível com setas que piscam. Logo retornamos às fusões, às cores, às luzes, ao movimento, ao transe.

A experiência, de duração rarefeita, modifica a velocidade de nosso olhar. A paisagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se confunde com o próprio criador delas. Como uma espécie de alucinógeno absorvido pelos olhos, assim como Deleuze e Guattari descrevem acerca do agenciamento droga, Hypnosis nos conduz no sentido de, ao mesmo tempo, fazer com que “o imperceptível seja percebido”, que “a percepção seja molecular”, e, por fim, que “o desejo invista diretamente a percepção e o percebido” (Deleuze e Guattari 1997, 76). Como perceber a cor do ar aprisionado pelas lâmpadas?

Se consideramos o ar enquanto uma mistura de gases, a quantidade de pressão depositada sobre determinados gases presentes no interior das lâmpadas coloridas que vislumbramos em Hypnosis, associada à descarga elétrica, desvela a luminosidade enquanto característica intrínseca à fluidez do ar. Ou seja, a luminosidade surge enquanto uma habilidade decorrente dessa fluidez. A velocidade do movimento já está alterada, não há motivos para ter interesse em saber o destino. Estamos, assim como as imagens, em estado gasoso, em devir. Apenas nos entregamos ao devaneio, à viagem, aquilo que pode afetar ainda mais a nossa percepção das cores e dos movimentos do mundo através de nossas retinas. Por fim, um plano se repete — pontos vermelhos de luz tornam-se riscos contínuos que sobem aos céus. A obra, explorada por Cao Guimarães também como videoinstalação, foi “composta por uma projeção em loop, em tempo circular, contínuo, sem necessidade de início, meio e fim” (Mello 2008, 138). Nesse sentido, o transe, a experiência estética, o devir, se prolongava, podendo se tornar infinito. Hypnosis realiza, portanto, um convite à gaseificação do nosso olhar e nossos corpos, em virtude de uma percepção mais fluida e luminosa.

Concerto para clorofila (Guimarães 2004b) assume-se como “uma experiência da ordem do sensível, mais do que da ordem do vídeo ou da fotografia ou da pintura ou mesmo do cinema, uma forma de experiência estética, antes de ser experiência de mera pesquisa de linguagem” (Moraes 2006). O vídeo começa com uma câmera trêmula, que dá a ver a textura da estrada, como se fosse uma subjetiva de alguém que estivesse dentro de um carro em movimento. Os tons são saturados para o azul. Pela paisagem sonora, ouvimos o atrito dos pneus com pedras no chão. O próximo plano, fixo, igualmente saturado, apresenta uma paisagem de nuvens em tom áureo-alaranjado. O piano começa a tocar. Trata-se de um concerto, mas para além de musical ele é imagético-sonoro.

Em uma fresta entre nuvens, aponta um raio de luz do azul do céu. Às voltas de um lago somos convidados a perceber os elementos que o circundam de outro modo, sem olhá-los diretamente, mas por sua superfície espelhada. Nuvens, galhos de árvores, folhagem, tudo está de cabeça para baixo. Em breve essas imagens especulares ganham movimento, apesar do plano fixo. Pelo movimento das águas elas entram em um processo de metamorfose que relativiza a dureza de suas formas, bem como a realidade que ajudam a compor.

Em um plano detalhe, bolhas de ar sobrevivem na superfície desse lago. Diferentes tomadas de galhos retorcidos nos revelam a predominância e o alternar de cores. Vamos do verde ao azul, deste ao verde-amarelado, então retornamos ao verde e mais uma vez ao azul. Essa sequência inicia um alternar no regime de captação das imagens — ora são registradas pelo contato direto da câmera com o objeto, ora pelo reflexo gerado pela superfície de água.

Entre texturas, cores e linhas dos elementos naturais, ouvimos um trovão ao longe. Gotículas de água vindas do céu tocam a superfície de uma piscina azul. Igualmente tocam e se somam à superfície das folhas. Um fio de teia de aranha resiste ao vento. Por três vezes seguidas a câmera acompanha em um movimento vertical e desacelerado uma folha amarela que cai do topo de uma árvore. Uma linha de fumaça se forma no céu lentamente.

Em outro plano, a luz invade a lente da câmera, enquanto está voltada completamente para o céu. Ou o céu se movimenta, ou o corpo que segura o equipamento se move, sem alterar seu enquadramento. O movimento continua até que ao vívido azul se sobrepõe uma camada de folhas do alto de uma árvore que enegrece a tela. No entanto, o movimento não cessa. Diante da tela negra e silente, o fluxo ritmado de imagens visuais e sonoras continua a nos conduzir.

Imersos nas paisagens da obra, a sensação que temos é do artista Cao Guimarães ser tomado por um devir, um devir-vegetal. Há uma tentativa de “reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua zona de indiscernibilidade com outros traços” e entrar “na impersonalidade do criador” (Deleuze e Guattari 1997, 74). Deste modo, fibras levam de uns devires aos outros, “transformam uns nos outros, atravessam suas portas e limiares” (Deleuze e Guattari 1997, 74). O cineasta parece nutrir um desejo de se imprimir naquelas folhas, de vibrar juntamente com as pulsações daquelas plantas. De fazer com que seu devir-vegetal, que lhe é intrínseco, molecular, interno, se dê a ver no registro das imagens. Na maneira como ele percebe a clorofila que corre nas veias desses seres vivos, com suas formas, cores e texturas. “Então se é como o capim”: se fez do mundo um devir, “porque se suprimiu de si tudo o que impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas” (Deleuze e Guattari 1997, 74).

Nesse sentido, se “o movimento está numa relação essencial com o imperceptível, ele é por natureza imperceptível”. Sendo assim, como seria possível captar esse movimento? Como perceber “o movimento e os devires, isto é, as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afetos”, se eles “estão abaixo ou acima do limiar de percepção”? (Deleuze e Guattari 1997, 74). Deleuze e Guattari apontam para a relatividade dos limiares de percepção, “havendo sempre, portanto, alguém capaz de captar o que escapa a outro: o olho da águia...” (Deleuze e Guattari 1997, 74). É por possuir essa acuidade do olhar que Cao consegue fazer o registro desse movimento, ao mesmo tempo em que é tomado por esse devir-vegetal.

Devir responsável por conectar a fluidez quase imperceptível do ar de Concerto para clorofila à ideia de conversão. Por meio do processo de fotossíntese, a energia absorvida pela clorofila converte o gás carbônico em oxigênio: elemento químico fundamental à vida. Ao se entremear da efemeridade, pela exploração da temporalidade e do belo, Cao “nos convida a uma viagem pela memória da sua paisagem”, a “se plantar em frente às imagens e deixar-se levar por elas” (Moraes 2006), a oxigenar nossos corpos e visões por meio do devir.

The eye land (Guimarães 1999), que poderia ser traduzido como “a terra do olho”, faz referência sonoramente à palavra island (ilha). Ou seja, o título aglutina dois modos pelos quais o cineasta estava operando naquele momento: por um lado, ele estava na ilha, na Grã-Bretanha, e por outro, neste local, nesta terra, ele lançava seu olhar — o ver era como ele se relacionava com aquela realidade.

O curta-metragem começa com uma cartela, uma citação de Nathaniel Hawthorne:

Os anos, afinal, tornam-se meio vazios quando vivemos muito tempo em terra estrangeira. Nessas circunstâncias, adiamos a realidade da vida até o momento no futuro quando poderemos novamente respirar o ar nativo. Mas, à medida que o tempo passa, ou se eventualmente retornamos, constatamos que o ar nativo perdeu aquela qualida de revigorante. A vida transferiu o seu lugar para onde nos considerávamos somente residentes temporários. Assim, divididos entre dois países, acabamos sem nenhum. Ou somente com aquele pequeno pedaço de um deles… onde, finalmente, repousamos os nossos ossos descontentes. (Guimarães 1999)

O texto por si só já nos dá a tônica dos possíveis caminhos a serem trilhados por Cao Guimarães para compor sua narrativa — uma colagem de materiais visuais e sonoros, como notas imagético-sonoras em um diário filmado em super-8 mm, que confirmam tratar-se das sensações de desterritorialização de si, proveniente do deslocamento, da experiência de viver fora de seu país natal e, ainda assim, ser habitado por ele.

Entre pássaros que voam, janelas de avião, nuvens, luzes noturnas, viagens de trem e imagens abstratas — obtidas a partir de enquadramentos fechados, e ora desfocados, de um cardume de peixes, edifícios, janelas, texturas e silhuetas de plantas — ouvimos, além de Debussy e Schubert, ruídos e diálogos de toda espécie, inclusive recados deixados em sua caixa postal.

Cao aparece caminhando em um parque com os olhos vendados. Uma série de imagens fotográficas fixas de rostos, entre anônimos e conhecidos, nos leva a crer que se trata de amigos do artista, ou do casal, aqueles com quem, mesmo à distância, o cineasta nutre o desejo de partilha da existencia.

Pela secretária eletrônica ouvimos algumas mensagens, em línguas diversas, uma delas parecia ser destinada à Rivane — “Oi, Rivane, estou escutando Caymmi, e deu uma saudade de você...” (Guimarães 1999). Enquanto isso, ouvimos em planos sonoros sobrepostos, ruídos das ruas de Londres, um pequeno trecho de O bem do mar — “Um pescador tem dois amor / Um bem na terra, um bem no mar” (Guimarães 1999) —, diálogos.

As paisagens continuam em movimento constante, sempre se deslocando, levando de algum lugar para outro. Travelogues que tentam apreender o mundo que vai sendo deixado para trás, registrá-lo, guardá-lo, rico por seus aspectos mais ínfimos e cotidianos. Ora ou outra, somos surpreendidos por cartões postais que subitamente aparecem na tela. Por fim, vemos ruas da cidade, pessoas caminhando. São numerosas e apesar disso nos sentimos solitários, estrangeiros, ilhados — inclusive em nossos sentidos, ilhados no olhar.

Ao longo de The eye land, o caráter revigorante do ar nativo parece dar lugar a uma multiplicidade de experiências permitidas tão somente pela desterritorialização do artista. Assim, a fluidez do ar nos remete ao seu caráter de elasticidade como elemento primordial para que possamos respirar com mais tranquilidade, independente do país que habitemos e da duração da estadia. Between – inventário de pequenas mortes (Guimarães 2000) é iniciado com uma cartela de texto escrita por ele mesmo

Estamos acostumados a falar apenas de uma morte. Como se o limite de uma vida fosse marcado de um lado pelo nascimento e de outro pela morte. Se começássemos a ampliar o conceito de morte, deduziríamos vertiginosamente que ela está presente em tudo, em cada micropartícula de uma vida, e que os limites são expansivos. Os limites são justamente este lugar onde morte e vida se misturam na tênue expressividade de uma mudança. Em cada segundo morrem milhões de células em nosso corpo, em cada segundo enchemos e esvaziamos os pulmões de ar. Between é o lugar e o momento de passagem. O que separa o que está dentro do que está fora, o que passa do que fica, o que atravessa do que resta. (Guimarães 2000)

A disjunção visual e sonora é uma constante na montagem da obra. As primeiras imagens são planos abstratos em super-8 mm, acompanhados por ruídos domésticos e música clássica. Ouvimos a chuva. Entre silhuetas de árvores fortemente contrastadas em um jogo de claro-escuro, por vezes com repetição de planos, vemos a ausência de imagem — telas negras, que aqui “entram numa relação dialética entre a imagem e sua ausência, e adquirem valor propriamente estrutural” (Deleuze 2007, 239). A imagem também pode morrer ou simular sua morte. Quando ressuscitam, estão desaceleradas, rarefeitas.

O vento toca agressivamente as folhas das árvores, as fere. Ouvimos preces balbuciadas; luzes de velas acesas sendo carregadas passam pela câmera sem que tenhamos nenhuma nitidez, nem mesmo certeza dessa figurabilidade. Planos usados em The eye land reaparecem aqui, ressignificados. Gotas. A água da chuva que se desfaz em gotas presas nos fios e nas vidraças, ao sabor do vapor quente, aos poucos se evaporam deixando suas marcas: morte lenta.

Em sacos plásticos cheios de água, também vemos bolhas, sufocadas, sem terem para onde sair. O vento é interrompido e se converte em brisa pela interposição da cortina. Ouvimos suspiros, aparentemente femininos, pela segunda vez. Cabelos longos e pretos ao vento, sem rosto. Uma pequena morte, talvez. Flores que secam no vaso da sala se transmutam em formas abstratas, linhas em movimento, agonizantes. Insetos se debatem contra uma fonte de luz, tudo está desfocado.

Morremos aos poucos, e a todo tempo, em um movimento de deriva pelo qual o vento nos impulsiona, solitariamente. Assim como o dente-de-leão que Cao lança com as próprias mãos e inicia um passeio pelos cômodos de seu apartamento, até repousar no vaso sanitário. A imagem agora é colorida e vários dentes-de-leão voam próximos uns aos outros, soprados pelo vento.

Nuvens sobre o céu azul geram uma imagem abstrata pelo movimento de uma rápida e contínua panorâmica. Tudo é efêmero e transitório. Ou talvez seja possível, apesar de morrer-sozinho, o viver-junto em uma outra instância. A trilha eleva a alma para um ato de fé nesse sentido, enquanto as ondas do mar se jogam em rochedos violentamente, se fazendo e desfazendo permanentemente.

Por fim, vemos e ouvimos o fogo. O que se queima é convertido em fumaça, vaga pelo ar, como os espíritos. Em Between, a fluidez do ar brota associada à noção de transformação ocasionada pela morte. Se compreendida em sentido amplo, como propõe a obra, mais que o fim, a morte realiza a transformação de uma instância em outra: vivemos, mas também morremos, por meio do fluxo de ar que entra e sai de nossos pulmões.

Hypnosis, Concerto para clorofila, The eye land e Between – inventário de pequenas mortes associam-se pela relação que possuem com o ar por meio da noção de fluidez. Luminosidade, conversão, elasticidade e transformação são as dimensões da fluidez do ar que destacamos a partir do contato analítico com as obras. Em alguma medida, a fluidez do ar enquanto elemento poético nos remete menos ao que acontece com facilidade do que à capacidade de adaptação e flexibilidade das formas, sejam elas da imagem ou da própria vida.

Nota sobre o ar e o movimento

“Bolhas são como espelhos abaulados que dilatam o espaço exterior formando imagens. Bolhas são como as pupilas”, nos diz Cao Guimarães (2001, 7). Sopro (Guimarães e Neuenschwander 2000), Nanofonia (Guimarães 2003) e O inquilino (Guimarães e Neuenschwander 2010) são obras que colocam uma questão da ordem do olhar e do tempo: “o que acontece durante um olhar? Que relação entre o tempo do olhar e o tempo da representação? Entre o tempo do olhar e o espaço da representação?” (Aumont 2004, 65).

Sopro (Guimarães e Neuenschwander 2000) é um filme silencioso, destituído de camada sonora. No entanto, como diria Susan Sontag (1987), “assim como não pode existir ‘em cima’ sem ‘embaixo’ ou ‘esquerda’ sem ‘direita’, é necessário reconhecer um meio circundante de som e linguagem para se admitir o silêncio” (18). Ou seja, o silêncio sempre implicará e dependerá da presença do som para que exista.

Nesse sentido, Sopro gera no espectador um movimento de criação do som que emana daquela paisagem, em que o movimento impresso pelo ar nas bolhas comanda os movimentos de câmera. Assim, elas relacionam-se livremente: juntando-se, separando-se, multiplicando-se, sem jamais se desfazerem; ou melhor, sem jamais deixarem de aprisionar aquilo que contém, de ser aquilo que são.

O primeiro plano do filme revela uma bolha rente à câmera, de maneira tal que seus contornos extrapolam o pequeno enquadramento. Como uma superfície especular e metamórfica, ela reflete aquilo que está próximo de si e, apesar de ser difícil identificar do que se trata, sabemos que ela está próxima. A paisagem pela qual elas transitam, em preto e branco pelos grãos do super-8 mm, remete a um espaço bucólico — silhuetas de árvores, folhagens, o céu —, que reforça o caráter de virtualização da realidade apresentada.

Se “a bolha de sabão contém dentro o que tem fora” (Guimarães 2010), não poderia ser outra coisa senão tempo, tempo em estado puro, conquistado pelo ponto de indeterminabilidade alcançado pelas imagens: a virtualização do que nos é dado ver, e seu retorno repentino à atualidade, em um alternar incessante, permite-nos deixar ser levados pela fragilidade plástica dessas bolhas que se metamorfoseam. Não ouvimos, mas vemos o som que está preso no interior de cada uma delas: o som do tempo. Sentimos o som como “matéria e tempo. O tempo dos sonhos preso na realidade da bolha” (Guimarães 2001, 7)

Ao nunca se romperem, as bolhas de Sopro parecem evocar a sutileza em dupla perspectiva: a do movimento do ar, que com sua delicadeza garante que o glóbulo de ar continue aprisionando o tempo; e a da superfície da bolha, que com sua extrema fragilidade poderia se romper ao menor descuido. O movimento do ar, na forma de um sopro, nos é sugerido como metáfora para o fluxo da vida. Em Nanofonia (Guimarães 2003b) somos apresentados à outra instância do tempo aprisionado. Aqui, em um primeiro instante, ele se liberta da fina película que o sufocava, do cárcere da bolha. A paisagem é semelhante à presenciada em Sopro. Talvez, inclusive, se trate das mesmas bolhas, realizadas no mesmo rolo de super-8 mm, preto e branco; no entanto, operando em outro estado, adquirindo uma nova dimensão sensível: as bolhas não suportam a força imposta pelo movimento do ar. Sons produzidos por uma pianola de brinquedo ligam-se a determinados tipos de planos. Assim vemos surgir diante de nós uma sinfonia, em escala nano, gerada pelas imagens e seus sons correspondentes. Mosquitos saltam, trazendo cor ao regime das imagens que vigorava até então. Pode se tratar de um mesmo mosquito, de um mesmo salto, de planos e sons repetidos

Para acompanhar esses micro-acontecimentos, a câmera se faz trêmula, assim traz ainda mais magia ao jogo de som e imagem proposto, pois o tremido apreende “um efeito do real, sem nunca se passar pela realidade”, ao mesmo tempo em que não serve como testamento de realidade, também não se ausenta dela. Realidade duplicada. O tremido como “um signo de arte que procura exprimir uma pulsão do corpo inscrevendo-se no tempo que se tornou visível” (Bellour 1997, 105). A narrativa segue, assim, alternando entre explosão de bolhas, saltos de mosquito e telas pretas; entre notas agudas, médias e silêncio.

O último plano revela a cor dourada dos raios do sol que invadem o interior de uma bolha. Esta não estoura. O tempo, e seu som, continuam lá dentro. O movimento do ar parece associar-se à noção de intensidade em Nanofania. A intensidade da corrente de ar pode se tornar insuportável para a bolha: o que por um lado pode ser visto como libertação do tempo, também pode significar seu fim. O inquilino (Guimarães e Neuenschwander 2010), outra parceria de Cao com Rivane envolvendo bolhas, talvez seja o primeiro “filme de suspense” (Guimarães 2010) do cineasta. Uma bolha passeia por uma casa vazia em reforma. Carrega com ela, como sempre, o tempo. A camada sonora, misteriosa, aflige. A duração do passeio, lentamente, vai singularizando essa bolha pelos atos que empreende — paredes que toca, movimentos que realiza, escadas que sobe — sem nunca estourar.

Por outro lado, a duração aflige o espectador. Falta ar entre tantas paredes, mas ele está lá, no interior dela, garantindo sua existência. Ouvem-se sons de presença humana; talvez a bolha tenha companhia. Não encontramos janelas abertas. O tempo que está preso na bolha, que está preso na casa, que está presa no vazio de lembranças daqueles que já a habitaram. “Lembranças são como vertigens do tempo” (Guimarães 2001, 17). Assim, em O inquilino, o movimento do ar surge conectado à ideia de suspensão. Abrigada pela casa, a bolha retém o tempo em seu interior, mas não dança ao sabor dos ventos. Resta a ela tão somente flutuar pelo espaço em busca de vestígios que deem sentido à sua existência.

Por fim, o que aproxima Sopro, Nanofonia e O inquilino é uma substituição do “tempo vivido por um tempo sonhado” (Comolli 2008, 253). Se as bolhas são como pupilas para Cao, é porque elas, ora aprisionando o tempo, ora o libertando, ora o sequestrando durante a duração de seu próprio cárcere, se dilatam e ampliam a abertura de nossa viciada visão, de nossos modos de ver e sentir. Lançam-nos em outro tempo. É preciso alargar as bolhas, dilatar as pupilas, explodir o universo em imagens e sons, para ver o tempo, com outros olhos. Para isso, é necessário que nos permitamos ser perfurados pelos movimentos de ar, pelos fluxos que constituem a própria vida, assumindo os riscos que tal atitude implica.

Considerações finais

Por meio do caminho trilhado até aqui cremos ter evidenciado que há na produção curta-metragista de Cao Guimarães distintas formas de aproximação com o ar enquanto elemento poético. Havendo, portanto, realizado uma investigação analítico-formal das obras, interessada em compreender de que maneira cada uma lidava com o ar enquanto elemento poético, propusemos uma associação delas a partir de quatro categorias de análise: leveza, imaterialidade, fluidez e movimento. Tais categorias de análise foram proposições realizadas a partir do exercício analítico, por meio do reconhecimento das recorrências temático-estilísticas em nosso corpus.

Por meio desse agrupamento, partimos da análise dos filmes para tentar reconhecer, a partir de nossa experiência estética, que dimensão/característica de cada obra nos permitiu associá-la com cada uma das categorias. Tendo esse plano de fundo em vista, retornamos à nossa questão problema: a presença difusa do elemento ar nos permitiria reconhecer na produção curta-metragista de Cao Guimarães a formação de um pensamento poético aerífero? Circunstanciemos.

O tecido que constitui a parte mais significativa da massa celular dos vegetais, compondo o tecido vegetal fundamental, é nomeado de parênquima. Entre as diversas classificações dos parênquimas vegetais, nos interessa o parênquima aerífero: trata-se de um tecido que possui a função de reservar ar nos espaços entre as células, sendo comum em vegetais aquáticos capazes de flutuar. Portanto, o parênquima aerífero contribui tanto com a flutuação quanto, em menor grau, com a respiração desses vegetais. Nesse sentido, sinteticamente, refere-se à estrutura vegetal que possui ou conduz ar. Logo, o termo aerífero é usado, em especial, no contexto da anatomia e morfologia botânicas.

Dessa forma, entendemos por aerífero a capacidade de dar passagem ao ar e/ou reservá-lo. A laringe, por exemplo, é considerada um órgão aerífero. No contexto da arquitetura, as pequenas aberturas dispostas no revestimento do teto de certas construções com a finalidade de permitir a ventilação também são chamadas de “aeríferos”.

Assim, se metaforicamente compreendemos o ar como o real que tenciona a rede do artista em sua conexão com a realidade; tendemos a perceber a leveza, a imaterialidade, a fluidez e o movimento enquanto condições fundamentais do pensamento poético de Cao Guimarães para simultaneamente dar passagem, reservar e ventilar o sopro do real. Por consequência, reconhecemos na recorrência da manifestação do ar na obra de Cao Guimarães a formação de um pensamento poético que nomeamos como aerífero. Um pensamento que nos parece manifesto por uma nuvem de palavras reveladas durante o exercício de análise dos curtas-metragens.}

No contexto dos curtas-metragens de Cao Guimarães, ao refletir sobre o caráter poético-conceitual que o ar pode assumir para a construção narrativa das obras, chegamos às seguintes conclusões: a leveza do ar surge associada à ideia de liberdade, invisibilidade, volatilidade e imponderabilidade. A imaterialidade do ar aparece conectada à ideia de eventualidade, aparecimento, incorporeidade e insubstancialidade. A fluidez do ar nasce combinada à ideia de luminosidade, conversão, elasticidade e transformação. O movimento do ar desponta unido à ideia de sutileza, intensidade e suspensão.

Se por um lado nos parece evidente que poderíamos relacionar esse arcabouço conceitual tanto às características do ar quanto as do pensamento em si; por outro parece-nos que esse mesmo arcabouço se conecta a uma forma de expressão resolutamente contemporânea, que não deixa de ser uma forma que pensa (Dubois 2004): a imagem vídeo.

Trabalhos como The eye land, Between, Sopro, Nanofonia e Hypnosis, entre outros aqui analisados, são exemplares da incursão de Cao Guimarães no campo da videoarte, principalmente no início de sua carreira artística, que, no entanto, não deixa de reverberar em seus filmes posteriores de um modo geral. São obras que assumem “a tarefa de produzir uma iconografia resolutamente contemporânea, de modo a reconciliar as imagens técnicas com a produção estética de nosso tempo” (Machado 2007, 26) e, nesse movimento, são permeadas de um desejo de escapar, simultaneamente, da “onipotência da analogia fotográfica”, do “realismo da representação” e do “regime de crença da narrativa” (Bellour 1997, 176-177). O que, conforme Bellour, a aproxima de maneira mais significativa das artes plásticas e da poesia do que do cinema, da qual, no entanto, é parte constituinte.

Figura 1. Vento: ar emmovimento.
Figura 1.
Figura 1. Vento: ar emmovimento.


Sopro (Guimarães e Neuenschwander 2000)

A passagem do verso alexandrino para o verso livre na poesia, que instigou uma reflexão sobre o destino da literatura, é comparável, segundo o teórico francês, à transição do cinema para o vídeo, o que hoje gera outra reflexão — a do destino da imagem. “Em suma, nada mais lábil e fluido que a imagem de vídeo, que escorre por entre os dedos ainda mais certamente e finamente do que a imagem do cinema. Como o vento” (Dubois 2004, 64).

Sendo assim, se o vento nada mais é do que o ar em movimento, a estética videográfica explorada de forma profícua por Cao Guimarães em sua produção curta-metragista coloca o real em movimento por meio da construção de discursos imagético-narrativos que dão a ver um pensamento do cineasta que se experimenta. Um pensamento experimental tanto por afastar-se à analogia fotográfica, privilegiando a reinvenção das formas; quanto pela capacidade de ao mesmo tempo dar passagem ao real e retê-lo, explorando metaforicamente o ar enquanto elemento poético: um pensamento poético aerífero.

REFERENCIAS

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———. 2010. O inquilino. Brasil. HD.

Notas

1. Sinopse

2. Sinopse

3. Sinopse

4. Sinopse

* Artigo de investigação e reflexão.

Notas de autor

** Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-doutor em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Información adicional

CÓMO CITAR:: Almeida, Rafael de. 2020. “Por um pensamento aerífero: notas sobre o ar nos curtas-metragens de Cao Guimarães”. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 15 (2): 90-107. https://doi.org/10.11144/javeriana.mavae15-2.pupa

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