Teatro de grupo na Colômbia Parte II: pelas aldeias dos Andes*

Teatro grupal en Colombia Parte II: por los pueblos de los Andes

Group Theater in Colombia Part II: Through the villages of the Andes

Rosyane Trotta

Teatro de grupo na Colômbia Parte II: pelas aldeias dos Andes*

Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, vol. 18, núm. 2, 2023

Pontificia Universidad Javeriana

Rosyane Trotta **

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil


Recepção: 19 Dezembro 2021

Aprovação: 04 março 2023

Resumo: O artigo dá continuidade à sistematização do material colhido em pesquisa de campo realizada pela autora junto a grupos de teatro colombianos, com o objetivo de investigar seu modo de produção e criação. O estudo, concebido e preparado remotamente, teve suas primeiras questões de pesquisa e hipóteses publicadas pela revista Urdimento em 2022. No texto que agora apresentamos, parte se de uma análise comparativa do campo temático e metodológico dos espetáculos que estavam em cartaz, em fevereiro e março de 2022, nas cidades de Bogotá e Medellín. Em seguida, é abordado o Teatro Tespys, sediado na cidade de El Carmen de Viboral, a 50 quilômetros de Medellín. Além da observação direta, utilizaram-se entrevistas, consulta ao acervo do grupo e páginas virtuais, com o objetivo de reunir informações que permitissem uma análise sobre sua atuação a partir das práticas concebidas e realizadas pelo coletivo. O estudo se concentra sobre o projeto de circulação do Tespys pelas aldeias do interior de sua região, com obras e práticas criativas voltadas para a descolonização. A partir da crônica escrita por Flora Quijano Upegui, integrante do grupo, o artigo identifica as condições de produção e os procedimentos pedagógicos praticados pelo grupo junto a populações isoladas, a maioria com memória viva do terror vivido nos anos 1980, e reflete sobre a noção de teatro comunitário no Brasil.

Palavras-chave:s: teatro colombiano, modo de produção, decolonialidade, teatro de grupo.

Resumen: El artículo da continuidad a la sistematización del material recolectado en investigación de campo realizada por la autora con grupos de teatro colombianos, con el objetivo de investigar su modo de producción y creación. El estudio, concebido y preparado remotamente, consiguió publicar sus primeras preguntas de investigación e hipótesis en la revista Urdimento en 2022. En el texto que ahora presentamos, se parte de un análisis comparativo del campo temático y metodológico de las obras en cartelera durante febrero y marzo de 2022, en las ciudades de Bogotá y Medellín. A continuación, se aborda el Teatro Tespys, situado en la ciudad de El Carmen de Viboral, a 50 kilómetros de Medellín. Además de la observación directa, se hicieron entrevistas, consulta del acervo del grupo y de páginas virtuales, con el objetivo de reunir información que permitiera analizar su desempeño a partir de las prácticas concebidas y realizadas por el colectivo. El estudio se concentra en el proyecto de recorridos de Tespys por los pueblos del interior de su región, con obras y prácticas creativas orientadas a la descolonización. A partir de la crónica escrita por Flora Quijano Upegui, integrante del grupo, el artículo identifica las condiciones de producción y los procedimientos pedagógicos practicados por el grupo junto a poblaciones aisladas, la mayoría con memorias vivas del terror vivido en los años 1980, y reflexiona sobre la noción de teatro comunitario en Brasil.

Palabras clave: teatro colombiano, modo de producción, decolonialidad, teatro de grupo.

Abstract: The article continues the systematization of the material collected in field research conducted by the author with Colombian theater groups, with the aim of investigating their mode of production and creation. The study, conceived and prepared remotely, had its first research questions and hypotheses published by Urdimento magazine in 2022. The text we now present begins with a comparative analysis of the thematic and methodological field of the shows that were staged in February and March 2022 in the cities of Bogotá and Medellín. Next, the Tespys Theater, based in the city of El Carmen de Viboral, 50 kilometers from Medellín, is addressed. In addition to direct observation, interviews, consultation of the group’s collection and virtual pages were used, with the objective of gathering information that would allow an analysis of its performance from the practices conceived and carried out by the collective. The study focuses on Tespys’ project of circulation through the villages in the interior of its region, with creative works and practices aimed at decolonization. Based on the chronicle written by Flora Quijano Upegui, a member of the group, the article identifies the conditions of production and the pedagogical procedures practiced by the group with isolated populations, most of them with a living memory of the terror experienced in the 1980s, and reflects on the notion of community theater in Brazil.

Keywords: Colombian theater, mode of production, decoloniality, group theater.

O termo teatro de grupo só começou a circular pelo Brasil no final dos anos 1980, como consequência das seguidas visitas ao país do Odin Teatret e de outros grupos do chamado Terceiro Teatro, ligado às práticas de criação de linguagem e de dramaturgia a partir da corporeidade. Pode-se atribuir a este fator histórico o impulso, entre os grupos brasileiros, para percepção do isolamento e aban- dono público enfrentado pelo teatro feito por grupos. Os encontros promovidos pelos grupos na década de 1990 constituíram o cerne da minha formação teatral: comecei a acompanha-los em 1993, e foi assim que me tornei pesquisadora dos modos de organização e de criação em grupo e do teatro de grupo como movimento reivindicatório de políticas culturais descentralizadoras e capazes de atender a esse modo de produção em que uma obra permanece muitos anos em repertório e a circulação é tão primordial quanto à pesquisa artística. A pesquisa me levou ao estudo desse modo de criação em que não há texto prévio ao início do processo criativo, em que pesquisa e criação se conjugam, assim como a dramatur- gia e a encenação.

Meu interesse pelo teatro colombiano se deve à disseminação da prática da criação coletiva, baseada em temáticas nacionais, no estudo da realidade local e na expansão social do público. Durante 2020 e 2021, na vigência do isolamento social, me dediquei ao levantamento dos materiais que podiam ser acessados remo- tamente (Trotta, 2022). O teatro colombiano, desde a segunda metade do século XX, se caracteriza pelo desenvolvimento prático e teórico da criação coletiva, que daí se difundiu para toda a América Latina. Seus principais autores, Santiago García (1928-2020) e Enrique Buenaventura (1925-2003), fundadores respectivamente dos grupos La Candelaria e Teatro Experimental de Cali, fizeram de sua trajetória artística como encenadores, uma prática labora- torial de criação dramatúrgica a partir da experimentação em coletivo. O Nuevo Teatro, como foi chamado, difundiu a produção de textos oriundos de pesquisa sobre histórias e temas locais, criados a partir dos experimentos das atrizes, apresentados gratuitamente ou a ingressos baixos. Enrique Buenaventura recusava a ideia de que a criação coletiva fosse um método de escrita dramatúrgica e enfatizava que o foco da experimentação cênica era o discurso do espetáculo. Santiago García escreveu sobre este modo de criação, sistematizando-o no livro Teoría y práctica del teatro, que teve três edições feitas pelo próprio grupo, e como professor ensinou a criar em conjunto a partir de pesquisa temática. Também veio do Nuevo Teatro a busca de descentralização da criação, da produção e da circulação teatral, o que “conduziu a novos conteúdos e, em 15 anos, formou um público de operários e trabalhadores” (Britos 2009, 20), com espetáculos que circulavam por aldeias camponesas e bairros operários. Este modo de criação e concepção teatral implicou no surgimento e valorização de temáticas nacionais e das realidades locais. Estudos recentes sobre a prática da criação coletiva na América Latina apontam que o método, disseminado em diversos países, levou os grupos a “estudiar los procesos de producción de significado de la vida social y su relación con sistemas de poder, es decir recuperar la dimensión política de lo simbólico y de lo estético” (Jaramillo y Osorio 2004, 101).

No início de 2022, consegui finalmente ir até a Colômbia, onde assisti a espetáculos e visitei grupos, em busca de confirmar a afirmação dos historiadores de que o desenvolvimento da criação coletiva durante a década de 1980 foi o acontecimento mais relevante para a revolução estética que ocorreu no teatro do país. De fato, das 14 obras que assisti, todas eram compostas de textos nacionais e contemporâneos e, com exceção de uma, todas tinham dramaturgia construída para aquele espetáculo e por aquela equipe. Ao final de dois meses de estada no país, concluo: mais de noventa por cento dos espetáculos feitos por grupos se constitui de textos inéditos. Entre eles, apenas o Teatro Petra e o Umbral Teatro têm a encenação de dramaturgas que, mesmo escrevendo a partir do processo de criação da sala de ensaio, assinam individualmente seus textos e os publicam em livros. Nos demais grupos, a dramaturgia está inserida no trabalho da encenação, geralmente sem assinatura, mesmo quando os textos são considerados obras autônomas a ponto de serem publicados, como o Teatro Matacandelas, que tem um livro com quatro peças de autoria coletiva. Não vi em nenhum grupo a função de dramaturgia exercida por alguém que se ocupasse apenas dela (embora saiba que Carolina Vivas costuma se ser exclusivamente dramaturga, no espetáculo que assisti em março de 2022 ela era também a diretora). Esta constatação me leva a concluir que, dife- rentemente do Brasil, onde há predominância do chamado processo colaborativo (em que a dramaturgia, criada no decurso dos ensaios, é assinada individualmente por alguém que não exerce nenhuma outra função no espetáculo, ou seja, é uma função exclusiva), na Colômbia há predomínio absoluto da criação coletiva, empreendida por atores e diretores, sendo a dramaturgia uma função compartilhada por todos os artistas da cena.

Nos anos 1980 diversos grupos se fixam em casas e ali constroem seus teatros – leis como Salas Concertadas, embora não custeiem a compra ou o aluguel, permitem equipar e subsidiar parte dos gastos com as salas. Dos 13 teatros que visitei, apenas 2 são edifícios construídos para esta finalidade. Quase 80% das salas de espetáculo e das sedes dos grupos foram reformadas a partir de casas antigas, algumas coloniais, com pátio interno cercado de corredores. São salas muito simples, chão de cimento onde se coloca uma arquibancada e, às vezes, um tablado. Em todas as salas o palco está no nível do chão ou próximo a ele e a plateia se ergue de um lado só (apenas em uma delas havia arquibancadas em dois lados).

Rosyane Trotta. Colagem em cerâmica feita no chão da sede, fotografia.
Figura 1.
Rosyane Trotta. Colagem em cerâmica feita no chão da sede, fotografia.


Corporación Cultural Nuestra Gente, Teatro Tespys, Teatro Matacandelas, Pequeño Teatro, Teatro El Trueque, Teatro La Hora 25, Teatro La Candelaria Santiago Garcia, Teatro Petra, Teatro Tierra, Teatro Libre Candelaria, foram instalados em casas compradas e reformadas pelos grupos que dão nome ao espaço. Como identifiquei anteriormente (Trotta 2022), na Colômbia o grupo de teatro se funde ao espaço que ocupa, em uma tendência histórica, apoiada anual- mente por editais de manutenção e equipamento de salas, que recentemente começou a ser quebrada: a impossibilidade de manter o grupo em sistema de dedicação exclusiva e de custear a manutenção de uma casa antiga gerou a categoria “grupos sem sala” como movimento de reivindicação. A maioria dos grupos vem tendo reduzida sua jornada e seus componentes, substituindo o sistema de trabalho cotidiano pelo sistema de trabalho por projeto – fenômeno que se espalha em muitos países. Passa a haver uma diferença entre aqueles que estão sempre – e que o grupo precisa sustentar – e aqueles que vem para os projetos – e precisam ter outras fontes de sobrevivência. Esse segundo grupo impõe restrições de horário: mesmo no período de processo de criação e produção não pode haver dedicação integral.

O termo teatro de grupo, difundido na década de 1990, identificava a prática de grupos que ampliavam seu campo de ação para além da cena. No Brasil, o teatro de grupo encontrou um clímax político com a criação da Lei de Fomento ao Teatro na cidade de São Paulo e com o reconhecimento da especificidade do modo de produção dos grupos nos editais que contemplam a formação técnica, a pesquisa de criação ou a circulação do grupo (levando não apenas seu produto, mas o compartilhamento dos processos).

Raúl Cortés, pesquisador do teatro latino-americano, recupera em seu mestrado a história dos grupos que, dos anos 1960 até início de 1980, conjugaram teatro e política.

La concepción del teatro de grupo surge al abrigo de aquella efervescencia política; es la correspondencia, en el medio teatral, de los movimientos revolucionarios. Desde una perspectiva independiente, el teatro de grupo nació como alternativa a los teatros comerciales, al teatro oficial, contra los regímenes autoritarios y para abrazar la gran utopía de la transformación, en una América Latina unida (Cortés 2018, 21).

O antropólogo teatral Piergiorgio Giacchè que, no início dos anos 1990, toma como objeto de análise os grupos ligados ao chamado Terceiro Teatro, define o teatro de grupo por sua prática extra cênica:

O teatro dos grupos (ou de experimentação, ou de pesquisa) [...] se revela como a zona de máximo intercâmbio, discussão e abertura, a primeira a recolher os ensinamentos dos maiores exemplos da pesquisa teatral internacional, a última a desdenhar dos experimentos das menores e mais difusas formações de teatro de base. Mas, sobretudo são os grupos teatrais [...] os únicos a levar adiante, ainda que de modo inadequado, o debate sobre o papel e o sentido do teatro [...] (Giacchè 1991, 157).

Não se trata de uma técnica, de um método ou de uma estética, mas de uma prática de compartilhamento. Entre os dois termos – grupo de teatro e teatro de grupo – haveria “o espaço de uma pequena revolução copernicana” (Giacchè 1991, 157), a passagem da Terra como centro do universo (grupo) para a Terra em movimento com os demais planetas (teatro de grupo). A condição de existência de um teatro de grupo seria o movimento dos grupos, o espaço criado por eles e sua mútua consciência, interação e interdependência.

Na primeira parte da pesquisa, realizada de modo remoto, reconheci nas páginas de grupos e entidades teatrais colombianas quatro aspectos que me pareceram identificadores do teatro colombiano: grupos longevos; fixação do grupo em uma sala; apoio oficial às salas; função social do espaço/grupo. Tais aspectos adquirem maior relevância na pesquisa em função do contraste com a realidade em que me encontro. O fato de, no Brasil, existirem pouquíssimos grupos longevos e esses raros conjuntos não contarem com nenhuma ajuda regular do Estado, o fato de a maioria das centenas de grupos nacionais não contarem sequer com espaço de ensaio, o fato de se tratar a cultura como perfumaria e não como alimento, tudo isso seguramente está nos olhos da pesquisadora quando tenta enxergar uma realidade distinta. É possível que o estranhamento dê a ver o que, para os estudiosos imersos naquele contexto, se torna invisível pelo hábito.

Os espetáculos que estavam em cartaz nos meses de fevereiro e março em salas de grupos de teatro em Medellín e em Bogotá abordavam esta realidade de diferentes modos – do lirismo metafórico à narrativa mais direta. A morte, a injustiça, a impotência e o renascimento estavam em 100% dos espetáculos para adultos que assisti. Vou apresentar, de modo bem resumido, a sinopse, a linguagem e a autoria dramatúrgica. Parto das obras de abordagem histórica e social explícita e finalizo com as obras em que a alusão à violência se faz por uma via metafórica. Sublinho que não selecionei essas obras com base em sua temática: esses foram os espetáculos apresentados pelos grupos de teatro no período em que estive na Colômbia.

Em Pan-de-mía o el barrio de la señal de la cruz, a Corporación Cultural Nuestra Gente, traça um paralelo entre a pandemia do vírus e a “pandemia do chumbo”. Em Yosotros, Carolina Vivas, do Teatro Umbral, dirige turma formanda em atuação cênica. O título, que em português seria eunós, associa história social e vida pessoal. Yocasta, do Teatro El Trueque, livremente inspirado na personagem de Sófocles, coloca mãe e filho como traficantes perseguidos por um grupo rival que dominou a comunidade. Em La resurrección de los condenados, Teatro Tierra e Ensamblaje Teatro contam a ressurreição da personagem Úrsula, de Cem Anos de Solidão, como mãe que chora as cidadãs assassinadas. Las suplicantes o la fiesta de la muerte, do Teatro Renovación, se baseia em As Troianas para pedir o fim da guerra aos senhores que a fomentam. La caída de los discursos, Teatro La Hora 25, parte do poema Prometeu, de Goethe, e com teatro físico e acrobático encena o debate entre os poderosos mantenedores da ordem e o espírito ousado que a contesta. Kokoro, da Casa del Silencio, é um espetáculo sem texto que aborda o cotidiano de um casal formado por uma mulher e um homem que um dia desaparece. A viúva gera uma criança e, através dela, o pai volta à cena, como memória de ancestralidade. Histeria, solo de Rafael Giraldo, do Teatro La Candelaria, aborda a violência pelo viés de um personagem vaidoso e autoritário. Hécuba, do Teatro Tierra, encena a tragédia da personagem que assiste à morte dos filhos, do marido e dos netos. Sara Dice, do Teatro Petra, é uma comédia sobre uma família que, em uma faxina aleatória ordenada por um big brother, tem que escolher e eliminar um dos seus membros. A la diestra de dios padre é uma remon- tagem, pelo Pequeño Teatro, do clássico de Enrique Buenaventura que conta as aventuras de um camponês que engana a morte. Cadaver exquisito, solo do autor do texto que explora o caso do fotógrafo que flagrou um abutre rondando uma menina esfomeada e semimorta. Pieles que habita, do Teatro La Candelaria, é um solo em que uma atriz luta para tirar de si a opressão moral e histórica ao feminino para renascer.

Os treze espetáculos têm textos contemporâneos e nacionais, doze deles feitos para aquela encenação. Mesmo os projetos que buscam na cultura universal inspiração e referência para a metáfora política constroem seu próprio texto. A dramaturgia colombiana nasce com seus espetáculos, elaborada no processo criativo por atores e diretores.

Pelos Andes

A pesquisa de campo que origina este artigo, realizada em fevereiro e março de 2022, se orientou pela interrogação sobre o modo de produção teatral dos grupos colombianos e sua relação com a política cultural do poder público. Como o modo de produção não se enuncia, estando disperso no conjunto de todas as práticas coletivas, a metodologia consistiu em visitar os espaços de trabalho, conhecer os projetos, observar as obras e atividades públicas, estudar as condições e os meios de produção do teatro em cada contexto. Foi na sede do Teatro Matacandelas, em Medellín, que ouvi pela primeira vez a história do grupo de teatro que reergueu uma cidade.

O município colombiano de El Carmen de Viboral, situado na Cordilheira dos Andes, a dois mil metros de altitude, tem cerca de 40 mil habitantes espalhados em 500 quilômetros quadrados de aldeias, fazendas e florestas. A cultura combina as tradições indígenas com a colonização carmelita dos espanhóis que fundaram a cidade em 1752. A cerâmica pintada à mão, desenvolvida desde o século XIX, se tornou protagonista de seu turismo e desenvolvimento econômico no século XX e foi tomada pela municipalidade como adorno urbano.

Nos anos de 1980, a crise política e econômica levou ao fechamento da maior parte das oficinas de cerâmica e a cidade entrou em decadência: a agricultura familiar voltou a ser a única ativi- dade para a geração de riqueza, o empobrecimento foi se agravando, os jovens começaram a ir embora. No final da década, seis estudantes fundaram o grupo de teatro Tespys. Como não houvesse nenhum teatro na cidade, eles se dedicavam ao teatro de rua e viajavam pelos municípios vizinhos. Em 1993, o grupo realiza a primeira edição do festival El Gesto Noble. Com verba mirrada, contaram com a ousadia juvenil e a camaradagem dos artistas vizinhos: quando ligava para os grupos sediados em Medellín para fazer o convite, Kamber, produtor do festival, explicava que o único transporte que podia oferecer era um caminhão de obras da Prefeitura. O evento foi se repetindo anualmente. Surgiram novas pousadas para abrigar artistas e espectadores; restaurantes para alimentá-los; ceramistas para abastecer as novas lojas de cerâmica; surgiram também novos grupos locais de teatro, formados nas oficinas do festival. A economia da cidade aqueceu. A Casa de Cultura virou Instituto de Cultura. Hoje o Festival Internacional El Gesto Noble está na vigésima sétima edição e o município abriga mais de dez grupos de teatro (o que, proporcionalmente ao número de habitantes, coloca Carmen à frente de todas as outras cidades). Quem me contou pela primeira vez essa história foi Cristóbal Peláez – do Teatro Matacandelas – que, em 1993, atendeu à chamada de Kamber.

Hoje o Teatro Tespys ocupa uma casa, onde fez sua sede e construiu a primeira sala de espe- táculos de El Carmen de Viboral. Além dos nove integrantes1, o grupo aglutina as alunas de seu laboratório permanente e da escola de teatro do município. Na foto abaixo, estão sentados na arquibancada, olhando para a câmera, o fundador Argiro Gómez (canto direito da foto) e a aprendiz Flora Upegui (canto esquerdo). Eles aguardam a chegada dos demais para o início dos trabalhos. A luz que se vê no teto vem do sol das nove horas da manhã. No chão do palco, enfileiradas, oito canequinhas de cerâmica para o café.

Desde que surgiu, o grupo mantém o projeto La Carreta de Tespys por las veredas, que leva espetáculos e oficinas aos povoados mais distantes da cidade, percorrendo a pé ou de mula caminhos como o cânion do Rio Santo Domingo e o cânion do Rio Melcocho. Nas aldeias, além das atividades preparadas pelos integrantes, fazem almoço em comunidade, apresentação musical, contação de histórias e dança. Segundo o grupo, o objetivo do projeto é descentralizar os processos artísticos do grupo e “incluir a la población que se encuentra más alejada del casco urbano, abarcando (…) los lugares de más difícil acceso y más afectados por las secuelas de la violencia” (https://teatrotespys.org/la-carreta-de-tespys/).

Abro um breve parêntesis para não deixar de mencionar a violência no país que viveu mais de cinco décadas de guerra. Em pesquisa finalizada em 2018 e realizada pelo Centro de Memória Histórica, foram comprovadas 262 mil mortes em sessenta anos, contados a partir do final dos anos 1950. Estima-se que os números reais, uma vez que muitos corpos desapareceram, passem de 300 mil. O relatório entregue à Comissão da Verdade (https://centrodememo-riahistorica.gov.co/262-197-muertos-dejo-el-conflicto-armado/) informa que mais de 1/3 das execuções foram feitas por paramilitares e que a grande maioria dos mortos, mais de 82%, eram civis. A maior parte desta violência ocorreu no interior, onde a população de povoados inteiros foi obrigada a deixar suas casas, em um fenômeno conhecido como “deslocamentos forçados” que criou milhares de “desplazados”. Por isso, quando o grupo Tespys, ainda no final dos anos 1980, concebe seu plano de circulação, tem em mente fazer e manter contato com as populações de risco.

O meio de transporte do grupo é uma chiva (foto acima), caminhão muito usado no interior da Colômbia para o transporte de carga, frequentemente pintado de cores vivas e com ilustrações. O grupo não tem veículo próprio e contrata o transporte quando há uma ação no interior. Não são eventos extensos, embora os deslocamentos possam chegar a dez horas de duração: o grupo visita um povoado por vez e organiza atividades que começam pela manhã e se estendem até a noite. Descreveremos a seguir uma dessas viagens, com duração de três dias, sendo dois deles apenas para o deslocamento de ida e de volta.

Em 2021, a primeira viagem após a pandemia foi à vereda El Porvenir, em trajeto parcialmente feito em mulas, para levar, além do espetáculo Caminorrial, duas oficinas e uma apresentação musical. A programação, como veremos adiante, também inclui apresentações e propostas de artistas locais. Os integrantes saíram da sede, no centro de El Carmen de Viboral, de caminhão até El Retiro – separado do destino final por mais de duas horas de estrada não pavimentada por dentro de florestas e formações rochosas – onde tomaram mulas e cavalos para percorrer o trecho seguinte. Como não havia animais para todos, quatro das doze pessoas seguiram a pé. Flora Quijano Upegui, que participava da comitiva e integrava a programação do evento como oficineira, descreve aquela viagem na crônica “En el cañón del Río Melcocho: periplo anecdótico de tres días”:

Rosyane Trotta, Sala de espetáculos do Teatro Tespys, fotografia.
Figura 2.
Rosyane Trotta, Sala de espetáculos do Teatro Tespys, fotografia.


Rosyane Trotta, Cartaz na parede do Teatro Tespys, fotografia.
Figura 3.
Rosyane Trotta, Cartaz na parede do Teatro Tespys, fotografia.


Pegamos uma estrada descoberta pela entrada de La Aurora, e de lá chegamos à estrada para El Santuario. O ar frio que entrava na caçamba do caminhão era um alívio em contraste com o calor opressivo produzido pelos raios do sol na lona preta que nos cobria. No entanto, ao chegar a Cocorná, o ar frio tornou-se morno, e de morno tornou-se quente quando chegamos a La Piñuela. Ali fizemos uma pequena paragem para comer o icónico chouriço de punta (Upegui 2021, tradução nossa)2.

Em sua crônica, Flora descreve os incidentes com as mulas, que às vezes desembestam pela trilha, tomam a direção errada ou simplesmente voltam, obrigando os tropeiros a sair do caminho para recuperálas. O desconforto do meio de transporte, do calor do sol e da força da súbita chuva não impede que haja minutos de prazer em meio às horas de viagem, como mostram alguns trechos da crônica, como estes: “nossas risadas iam acompanhadas do silêncio dos bosques e do eco do rio batendo nas pedras”; “o canto dos pássaros harmonizava com o rugido do rio e os sons variados usados pelos camponeses para pastorear as mulas”.

Quando finalmente chegam à aldeia, a autora acompanha dois fundadores do grupo em uma rodada de cerveja com Alexis, funcionária da pousada de El Porvenir, em que relembram a primeira viagem à aldeia, em 1995, e o choque entre o plano idealizado e a realização: as crianças fugiram quando os atores surgiram sobre pernas-de-pau, pois nunca tinham visto aquilo. Alexis era uma das crianças. Depois da cerveja, o jantar é servido na escola do povoado e em seguida as esteiras e os colchonetes são postos no chão lado a lado, no mesmo cômodo, para o descanso da trupe.

No dia seguinte, depois do café da manhã e de um mergulho no rio, uma parte do grupo vai preparar a apresentação do espetáculo enquanto outros ministram oficinas: Laura reúne as mulheres em uma oficina sobre gênero e Flora reúne as crianças para ensinar a técnica de fazer origamis. Todos são meninos, de diferentes faixas etárias. Ela conta suas impressões e a emoção das crianças que “ensinaram suas mãos calejadas a dobrar papel e de lá tiraram pássaros que batiam asas, borboletas, pombas da paz e sapos que pulavam” (Upegui, 2021, 3, tradução nossa). Depois das atividades da manhã, os integrantes e membros da comuni- dade comem juntos o sancocho (caldo em que se cozinham carne, milho, batata, banana e temperos) com arroz e salada. Em seguida, as esteiras e os cobertores usados durante a noite são encostados à parede do quarto e a atriz Martha toma a personagem Carmelita Parra, la boyaca, para contar histórias. Depois, nessa mesma sala, o grupo Tespys se apresenta para a comunidade de El Porvenir.

O espetáculo Caminorrial foi criado a partir de um jogo de improvisações guiado pelos integrantes do Tespys com a comunidade de El Porvenir, em 2019. O processo de criação obra, que se seguiu apenas com o grupo, em El Carmen de Viboral, consistiu em elaborar dramatúrgica e cenicamente as histórias contadas e performadas pelos aldeões, que dramatizavam tanto experiências pessoais quanto lendas da tradição tropeira ainda vigente na região. Na apresentação realizada na aldeia dois anos depois, a experiência dos espectadores tinha como emoção principal o reconhecimento da memória comum: os fatos e os personagens reais ou lendários, humanos ou animais, que estão no imaginário da comunidade.

Depois da apresentação de teatro, há apresentações de danças típicas (bullerengue, currulao e mapalé) e de música, com artistas da região, e da banda composta por integrantes do Tespys. As danças folclóricas são geralmente executadas por mulheres, que colocam em movimento suas saias – tão largas que suas pontas devem poder ser erguidas pelos braços esticados até o alto da cabeça, formando um círculo cujo centro é a dançarina. Na apresentação realizada por ocasião da visita de 2021, o desempenho de um menino, surpreendeu a autora da crônica e à plateia:

Juan José, menino quieto, alto e de feições andróginas, assumiu a vestimenta com tanta naturalidade que quase parecia uma extensão do seu corpo. A arte mais uma vez se viu confrontando os códigos morais de uma sociedade machista como pode ser a comunidade rural. Um jovem que questionava as identidades de gênero através da dança, nu diante dos olhos de indivíduos, com novas questões, com a cabeça erguida diante de sussurros e olhares estranhos, com a cabeça erguida ante qualquer julgamento (Upegui 2021, tradução nossa).

Reli várias vezes este trecho da crônica, descobrindo camadas. De um lado, a teatralidade da cena que destaca o menino na dança das mulheres e que contrapõe o dançarino à comunidade. No entanto, não há relato de conflito – a plateia, ao que parece, acolhe o jovem dançarino, sua singularidade e seu enfrentamento. De outro lado, o olhar da espectadora-narradora que não esconde seu espanto e seu fascínio, não tanto pela dança quanto pela forma como a executa o bailarino.

Rosyane Trotta Foyer do Teatro Tespys, fotografia.
Figura 4.
Rosyane Trotta Foyer do Teatro Tespys, fotografia.


Mas o momento de maior impressão causada pelo jovem veio com a terceira dança, de movimentos impetuosos, fortes, sedutores como a dança de namoro de um pássaro: o mapalé, embora tenha um ritmo bastante alegre, pôs a sala em silêncio quase total. Os longos membros de Juan José serpenteavam ao som da música, assim como as fitas coloridas penduradas em sua vestimenta. E lá você podia vê-lo, suando profusamente e com um lindo sorriso de orelha a orelha. Ele estava em seu próprio mundo (Upegui 2021).

Percebi também que a qualidade da escrita e do olhar da narradora contestavam minha própria visão pré-concebida sobre uma artista do interior da Colômbia. Deste ponto de vista, não importa se a descrição da autora corresponde à realidade, mas o que o texto nos revela sobre a integrante do Tespys que, ao narrar, não avalia nem opina, mas persegue e enaltece o exercício pleno do corpo afinado ao prazer do dançarino, o exercício pleno de si mesmo.

Ainda nesse mesmo dia, a artista Natalia Zuluaga apresenta, no corredor da escola, um espetáculo de lambe-lambe, em que um espectador por vez observa a história que se encena dentro de uma caixa. Novamente a comunidade, que formou fila em frente à caixa, é provocada em sua moralidade: o trabalho trata do assédio às mulheres. No final, a banda Little Animals, formada por atores do Tespys, anima a noite e convida à interação entre os aldeões e os viajantes. O dia seguinte é todo dedicado ao retorno.

Tespys foi, dentre os 14 grupos que visitei, o único sediado em um município pequeno, composto por artistas locais, que fizeram sua formação no próprio grupo. Foi também o único grupo que me propôs uma troca prática, em que eu guiava um exercício de técnica e de criação com os atores enquanto o diretor assistia. Contrariamente ao que eu esperaria de um grupo brasileiro isolado das escolas de teatro dos grandes centros, não havia na linguagem daqueles corpos nenhum código ligado ao naturalismo da televisão nem ao teatro de melodrama. O grupo se lançava à cena com vitalidade física e com apostas criativas baseadas no jogo, na imaginação e na plasticidade. Notei também que os integrantes de Tespys não se veem como periféricos e não se pensam em tensão com um suposto centro. Eles não pensam que lhes falta algo, não lutam pelo sucesso junto ao público que não frequenta seu teatro. Provavelmente porque não lhe falta trabalho. Além dos projetos de evento e de circulação, o que o grupo planeja são os estudos que possam contribuir para o seu teatro e aos quais dedica algumas manhãs da semana. Quando estive lá, estavam estudando a linguagem das crônicas, o que incluía produzir textos. Desse estudo teórico-prático veio a crônica de Flora Upegui – e Kamber me explica que estão estudando os gêneros literários porque lhes faltam dramaturgos no grupo.

Busquei as ferramentas conceituais do teatro comunitário para entender se seria pertinente ler o grupo por esta perspectiva. Encontrei no campo definições restritas ao teatro destinado à conscientização política e uma certa moralidade em sua categorização. Muito resumidamente, as categorias medem o grau de abertura da cena à participação das moradoras. Se a obra apenas se apresenta na comunidade e vai embora, esse teatro “para” a comunidade, seria necessariamente autoritário porque feito com desconhecimento sobre a realidade das pessoas a quem pretenderia levar uma mensagem. Se a obra extrai da cultura do território parte de seus elementos cênicos, ganharia o status de teatro “na” comunidade. E o teatro comunitário mais evoluído seria aquele feito “por” comunidades. Note-se que, embora a preposição “por” signifique um teatro criado e realizado pelas pessoas da comunidade, conceitualmente ele significa apenas que os moradores participam do projeto trazido de fora. Se “a ideia de vinculação a uma comunidade específica estaria ligada à ampliação da eficácia política do trabalho” (Nogueira 2007, 3), o teatro comunitário, seja nas comunidades ou por comunidades, se baseia no princípio de que os atores/moradores precisam ser transformados – tarefa que cabe à pessoa que conduz o trabalho pedagógico e cênico. “Em vez de fazer peças dizendo o que os outros devem fazer, passou-se a perguntar ao povo o conteúdo do teatro, ou dar ao povo os meios de produção teatral” (Nogueira 2007, 3). A ideia de povo formata uma massa uniforme. Quem pergunta ao povo não é do povo, quem formula “povo” subjuga o povo. Quem seria aquele que “dá” os meios de produção do teatro? O detentor do saber e da consciência política. A teoria entende que o teatro comunitário nasce pelas mãos dos pedagogos teatrais que saem a campo em missão revolucionária. “A participação dos membros da comunidade na escolha do conteúdo, na análise de seu significado e na própria encenação teatral passou a indicar um referencial fundamental para um teatro que não se vê como domesticador” (Cruz 2016, 116).

A relação do grupo Tespys com as comunidades do entorno agrega a este viés formador uma tarefa de prestação de serviço, de atendimento a um público alijado dos bens culturais e dos valores progressistas que circulam nas cidades. A política cultural colombiana, que subvencionou a construção e o equipamento de salas de espetáculos de grupos e que fomenta a circulação do Tespys, valoriza o teatro como agente cultural socializador, o que compõe a concepção do termo comunitário na Colômbia como prática de grupo articulada em redes de representação política. A Red Colombiana de Teatro en Comunidad e a Red Medellín en Escena (associação das salas subvencionadas) publicam livros, jornais, realizam eventos que não se caracterizam por uma linha estética, reunindo obras de sala e de rua em teatro, dança, circo, boneco e performance.

Na Argentina, por sua vez, o teatro comunitário constitui uma modalidade apartada das políticas públicas e seu viés político, quando existe, se situa nos problemas urbanos de um bairro: sem a perspectiva da prestação de serviço, da conscientização ou da inclusão, o Teatro de Vizinhos se caracteriza como atividade amadora que prioriza a celebração (Borba 2018) e que não está marcada pelo trabalho decolonizador de uma pedagogia que vem do centro. Já no trabalho relacional do Teatro Tespys junto às comunidades do entorno, a distância entre as pessoas da aldeia e as pessoas da cidade, mesmo que essa cidade tenha 40 mil habitantes, está sempre impressa nos papéis de cada atuante.

Don Cucu juntou-se a nós, mostrando-nos, não sem um certo orgulho, suas façanhas como o Homem Elástico, tocando os dedos dos pés com as mãos sem esforço, levando a cabeça aos joelhos sem dobrá-los. Ao mesmo tempo em que nos dava essas demonstrações, ele nos contou que em sua fazenda (uma quintinha com uma linda casinha amarela que brilha va em meio ao verde dos bosques), há um sapotizeiro que dá frutas sem parar e que ele vive sozinho, não tem como aproveitar os frutos e por isso muitos se estragam. Ele queria que nós, as pessoas da cidade, o visitássemos em sua casa e que ele compartilharia seus sapotis conosco (Upegui 2021).

Considerou-se que “cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos” (Santos 2013, 139), entendo que a fala de Don Cucu evidencia a diferença entre os integrantes de Tespys, que passam, e a comunidade, que fica. Entendo também que o morador aprecia essas visitas e que as desejaria tão frequentes a ponto de ajudá-lo a dar conta dos sapotis, que dão o ano todo. Me parece então que a noção de teatro comunitário, aquele em que a fusão entre cultura e território cria um campo comum entre os atuadores, dependerá tanto da configuração interna do grupo quanto de um diretor que, por ser estrangeiro, identifique essa identidade pelo contraste, pelo não pertencimento. A função do estrangeiro coincide com a função do diretor que, neste contexto, consistirá em conduzir os conterrâneos a reconhecer o que lhes é próprio e tomar sua cultura como fonte de criação.

Do ponto de vista de uma pesquisadora brasileira temporariamente sediada na cidade de Medellín, seria possível pensar o próprio Tespys como um grupo comunitário cujos integrantes são naturais da região e moradores da comunidade. Distante do grande centro urbano, sem acesso à produção artística metropolitana, ele necessita do compartilhamento para alimentar a si mesmo. Neste sentido, ele seria o raro exemplo de um grupo de comunidade que faz seu próprio teatro, sem necessitar de um facilitador ou de um pedagogo, sendo ele mesmo seu decolonizador. Esse entendimento aproximaria o grupo do teatro contemporâneo como “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (Bourriaud 2009, 19). De fato, o Tespys não tem público, mas espectadores que ele conhece pelo nome e que são também parceiros na estrada das relações do aprendizado, do jogo e da festa.

O Teatro Tespys pratica teatro de grupo e talvez por isso não se sinta isolado: ele interage com seu público, reúne em sua casa grupos de fora e os coloca em circulação pelo interior para oferecer oficinas sobre seu modo de criação e apresentar espetáculos. Ele mantém um laboratório de atuação contínuo, aberto às pessoas da cidade, por onde entram seus novos integrantes. O Teatro Tespys se mantém em aprendizado contínuo, teórico, técnico e prático. Conhece as principais teorias e técnicas do teatro moderno e do teatro contemporâneo. Participou da fundação da Red Carmelitana de Teatro, formada pelos grupos da região, e atua em sua organização. Faz parceria com a Escuela de Teatro del Instituto de Cultura da cidade, principalmente no sentido de abrir seu trabalho à colaboração dos alunos. Seu festival é chancelado pelo Plano Municipal de Cultura e apoiado pelo Ministério da Cultura do país e pelo Governo do Estado de Antioquia. O grupo cria boa parte dos textos dos espetáculos que encena, ocupan- do-se também da criação e execução de todos os componentes da cena.

Retomo a definição de Piergiorgio Giacché, que entende o teatro de grupo como prática de “máximo intercâmbio, discussão e abertura, a primeira a acolher os ensinamentos dos maiores exemplos da pesquisa teatral internacional, a última a desdenhar dos experimentos das menores e mais difusas formações de teatro de base” e a única “a levar adiante, ainda que de modo inadequado, o debate sobre o papel e o sentido do teatro” (Giacché 1991, 157-158). Nesse sentido, o teatro de grupo emergiria da ação de grupos que, como Tespys, estabelecem redes de troca e de ação com outros grupos, direcionam os projetos de circulação para o interior, mantêm estudo conjunto e compartilham saberes.

REFERÊNCIAS

Borba, Juliano. 2018. Teatro de vizinhos: comunidade, convívio e celebração. Programa de Pós-graduação em Teatro. Tese de doutorado. Universidade do Estado de Santa Catarina.

Bourriaud, Nicolas. 2009. Estética Relacional. São Paulo: Martins.

Britos, Marlene Cristiane Gomes. Arte e cultura popular na América Latina: o teatro político do MST (Brasil) e o teatro comunitário do Nuestra Gente (Colômbia). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, PROLAM/ Universidade de São Paulo, 2009.

Cortés, Raúl. Teatro Experimental Fontibón: poética, resistencia y mistério (1979-2019). Medellín, Fundación Teatro Experimental Fontibón/ MinCultura, 2018. https://issuu.com/experimentalfontibon/docs/maqueta_libro_final_dic_7. Acesso em: 13/01/2022.

Cruz, Hugo (org). 2016. Arte e comunidade. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian.

Giacchè, Piergiorgio. 1991. Lo spettatore participante: contributi per un’antropologia del teatro. Milano: Guerini.

Jaramillo, María Mercedes y Osorio, Betty. Teatro en Colombia. ¿Qué papel le asigna al método de la creación colectiva en la historia del teatro colombiano? In: Revista de Estudios Sociales n.17, fevereiro 2004.

Nogueira, Marcia Pompeo. 2007. “Tentando definir o teatro na comunidade”. Revista DAPesquisa, Centro de Artes da UDESC, 2, 4, 77-81. https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/15973. Acesso em 10/12/2022.

Santos, Milton. 2013. O espaço da cidadania e outras reflexões. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães.

Trotta, Rosyane. 2022. Grupo de teatro e teatro de grupo na Colômbia Parte I – um estudo remoto em Medellín. In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.43, 2022. https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/21410. Acesso em: 06/11/2022.

Upegui, Flora Quijano. 2021. En el cañón del Río Melcocho: periplo anecdótico de tres días. El Carmen de Viboral. Arquivo pessoal da autora, não publicado.

Notas

* Artículo de investigación. O artigo apresentado é resultado parcial de pesquisa realizada em 2022.

1. Kamber, Elkin Argiro Estrada Gómez, Lila Bronlet, Ángela Valencia Mejía, Norvey Alejandro López Ramírez, María Camila Ríos Vélez, Guillermo Vásquez Duque, Estefanía Muñoz Giraldo, Aleida Betancur Ramírez (https://teatrotespys.org/el-grupo/).

2. Arquivo pessoal de Flora Upegui, cedido para a autora.

Autor notes

** É professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde está vinculada ao Departamento de Direção Teatral e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Orienta pesquisas em nível de doutorado e pósdoutorado. É pesquisadora bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com bolsa Produtividade de Pesquisa.

Informação adicional

CÓMO CITAR: Trotta, Rosyane. 2023. «Teatro de grupo na Colômbia Parte II: pelas aldeias dos Andes» Cuadernos De Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 18 (2): 34-47 https://doi10.11144/javeriana.mavae18-2.tcpa

Contexto
Descargar
Todas