O oboé lírico de Osvaldo Lacerda: um olhar sobre seu conjunto de obras para oboé

El oboe lírico de osvaldo lacerda: una mirada desde su conjunto de obras para oboe

The lyric oboe of osvaldo lacerda: a look from his set of works for oboe

Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, vol. 13, núm. 2, 2018

Pontificia Universidad Javeriana

Resumo: Neste artigo, foram estudadas pela primeira vez todas as obras contidas no catálogo de Osvaldo Lacerda escritas para oboé. Ao considerar em conjunto as obras de um compositor, vislumbra-se com maior profundidade como o mesmo concebe a escrita idiomática de um instrumento em particular (Mota e Louro 2014; Tokeshi 2002; Zorzetti 2008). O objetivo do artigo é argumentar que para Lacerda a característica mais importante do oboé é o lirismo e que ele buscou explorar essa particularidade do oboé acima das demais. Os procedimentos metodológicos incluíram análise e comentários de onze obras para oboé de Osvaldo Lacerda interpretadas sob a ótica do conceito de identidade cultural do oboé (Burgess e Haynes 2004).

Entre os resultados discutidos estão questões sobre o idiomatismo, demandas técnicas e possibilidades de uso didáticos do conjunto. A análise das obras sugere que, para Lacerda, o oboé era um vocal na sua essência, razão pela qual, em sua abordagem do instrumento, optou por se manter próximo a certos princípios ligados à técnica e identidade do oboé desde o século XVIII. O artigo avança para além de discussões sobre a forma e a adesão de Lacerda ao nacionalismo musical brasileiro, buscando dar uma interpretação ao conjunto desde uma ótica do oboísta. As obras de Lacerda para oboé quase sempre são peças características cujos títulos remetem a gêneros típicos do nacionalismo musical brasileiro. Por outro lado, os títulos das obras fazem referências a arquétipos do nacionalismo brasileiro através das referências musicais e geográficas, remetendo-se ao Sertão, Interior e a espaços urbanos.

Palavras-chave escrita idiomática, música brasileira do século XX, identidade cultural do oboé.

Resumen: En este artículo se estudiaron por primera vez todas las obras del catálogo de Osvaldo Lacerda escritas para oboe. Al considerar en conjunto las obras de un compositor, se puede ver a mayor profundidad cómo el mismo concibe la escritura idiomática de un instrumento en particular (Mota y Louro 2014; Tokeshi 2002; Zorzetti 2008). El objetivo del artículo es argumentar que, para Lacerda, la característica más importante del oboe es el lirismo y que él buscó explorar esa particularidad del oboe por encima de las otras. Los procedimientos metodológicos incluyeron el análisis y los comentarios de once obras para oboe de Osvaldo Lacerda interpretadas desde la perspectiva del concepto de identidad cultural del oboe (Burgess y Haynes 2004). Entre los resultados discutidos se encuentran cuestiones sobre el lenguaje, las demandas técnicas y las posibilidades de uso didáctico del conjunto. El análisis de las obras sugiere que, para Lacerda, el oboe era vocal en su esencia, motivo por el cual, en su abordaje del instrumento, optó por mantenerse cerca de ciertos principios ligados a la técnica e identidad del oboe desde el siglo XVIII. El artículo va más allá de discutir la forma y la adhesión de Lacerda al nacionalismo musical brasileño, buscando dar una interpretación al conjunto desde la perspectiva del oboísta. Las obras de Lacerda para oboe casi siempre son piezas características, cuyos títulos remiten a géneros típicos del nacionalismo musical brasileño. Por otro lado, los títulos de las obras hacen referencia a arquetipos del nacionalismo brasilero a través de referencias musicales y geográficas, remitiéndose al Sertón, al Interior y a los espacios urbanos.

Palabras clave: escritura idiomática, música brasileña del siglo XX, identidad cultural del oboe.

Abstract: This paper studies for the first time all the works from Osvaldo Lacerda’s catalogue written for oboe. When considering the works of a composer together, it is possible to see, in greater depth, how it conceives the idiomatic writing of a particular instrument (Mota and Louro 2014; Tokeshi 2002; Zorzetti 2008). The purpose of the article is to argue that, for Lacerda, the most important characteristic of the oboe is lyricism, and that he sought to explore that particularity of the oboe over the others. The methodology included the analysis and commenting of eleven of Osvaldo Lacerda’s works interpreted from the perspective of the concept of cultural identity of the oboe (Burgess and Haynes 2004). The results discussed include questions about language, technical demands, and the possibilities of didactic use of the works as a whole. The analysis of the works suggests that, to Lacerna, the oboe was vocal in essence, which is why, in his approach to the instrument, he chose to stick close to certain principles linked to the technique and identity of the oboe since the 18th century. The paper goes beyond discussing Lacerda’s form and adhesion to Brazilian musical nationalism, aiming to interpret the work as a whole from the point of view of the oboist. Lacerda’s works for oboe are almost always characteristic pieces, whose titles refer to typical genres of Brazilian musical nationalism. On the other hand, the titles of the works refer to archetypes of Brazilian nationalism through musical and geographical references to the Sertão, the Inland, and urban spaces.

Keywords: idiomatic writing, 20th century Brazilian music, cultural identity of the oboe.

Introdução

Osvaldo Lacerda (1927–2011) escreveu ao longo de sua carreira onze obras originais para oboé, além de dois arranjos de Ponteios de Camargo Guarnieri (ver Tabela 1) e uma Invenção para Oboé e Clarone. De acordo com o catálogo do compositor (Peixoto 2013), a primeira delas foi composta em 1968, quando ainda era aluno de Guarnieri; a última, Variações e Fugueta, em 2010, próximo ao fim de sua trajetória. 1 Suas obras estão entre as mais interpretadas por oboístas brasileiros.

Há vários trabalhos acadêmicos dedicados à música de Lacerda; porém, até o momento, apenas um trata de sua obra para oboé, um artigo de Gustavo Napoli Villalba (2000) que realizou uma análise formal do Aboio para oboé e piano. Neste artigo, procurarei tratar de todas as obras de Lacerda escritas para oboé. Ao considerar em conjunto as obras de um compositor, vislumbra-se com maior profundidade como o mesmo concebe a escrita idiomática de um instrumento em particular; além disso, tal discussão pode servir de referência a possíveis intérpretes e professores na seleção de repertório (Mota e Louro 2014; Tokeshi 2002; Zorzetti 2008).

Farei comentários às obras, obedecendo a ordem cronológica das composições e, ao final, discutirei o conjunto como um todo e procurarei demonstrar que para Lacerda a característica mais importante do oboé é o lirismo e que buscou explorar essa particularidade do oboé, priorizando-a em detrimento de outras.

O lirismo, ou a escrita lírico-vocal, é um conceito fundamental para a discussão proposta. Entende-se aqui que, nesse conjunto de obras, o compositor privilegia melodias por graus conjuntos ou com pequenos saltos, ou uma linha melódica que emula a escrita vocal. Entendo que esse é o elemento unificador das obras para oboé de Lacerda.

Burgess e Haynes (2004) argumentam que o oboé, ao longo de sua história, esteve e ainda está associado a algumas características recorrentes, as quais ganhariam o status de categorias de identidades culturais. Segundo eles, os compositores ao longo do tempo conectaram o timbre do instrumento a circunstâncias particulares, que podem ser detectadas diretamente quando se tem um texto, como numa aria de ópera, ou através do título, ou a outras associações extra musicais.

Entre as categorias propostas de identidade cultural destacam-se o estilo pastoral, o estilo melancólico, o estilo exótico ou oriental, e o estilo feminino (Burgess e Haynes 2004, 214). Os autores citam como exemplo de estilo pastoral o diálogo entre oboé e corne inglês no movimento lento da Sinfonia Fantástica de Berlioz, na qual oboé e corne inglês sugerem o diálogo entre dois pastores; a melancolia, ou mesmo a tragédia, pode ser observada no Cisne de Tuonela de Sibelius, ainda que ali se trate do corne inglês, o oboé tenor, nesse caso, o cisne nada no rio do mundo dos mortos da mitologia nórdica; no caso do estilo oriental, Burgess e Haynes (2004) citam o solo de oboe na Dança dos Sete Véus, de Salomé de Richard Strauss.

Estas identidades são de certa forma reforçadas em tratados de orquestração, tais como o de Casella e Mortari (1950) dizem que “la fisionomia esencial del instrumento, que es ser el principal medio patético del grupo de las maderas” (26) e que “el oboe tiene un timbre más bien mordente, um poco nasal, emparentado con el de la cornamusa: es dulce, expresivo, casi femenino, una especie de ‘soprano melancólico’ de la orquestra” (Casella e Mortari 1950, 26).

Uma vez que todos os instrumentos podem ser “líricos” e outros instrumentos também poderiam ser caracterizados como o “soprano da orquestra”, mas nem sempre tal característica esta associada a eles ou não são tão enfatizadas como no caso do oboé, compreendo que essa também é uma associação de caráter cultural, contribuindo para a formação de uma identidade cultural do oboé construída ao longo do tempo.

Também procurarei classificar as obras por nível de demanda técnica, seguindo a tabela de classificação elaborada por Silva (2003), que propõe três níveis de dificuldade: básico, intermediário e avançado.

Seresta

O gênero Seresta é a versão brasileira da serenata. A Seresta de Lacerda foi composta em 1968, na fase final de estudos de Lacerda com Guarnieri. O próprio título da obra sugere o caráter vocal da obra. A versão original é para oboé e cordas, mas há uma redução para oboé e piano realizada pelo autor.

A textura da obra se constitui de uma linha melódica do solista com acompanhamento homofônico. Estruturalmente, a Seresta apresenta a forma ternária. A última seção é uma versão modificada da primeira, na qual, já próximo ao fim da peça, é inserida uma breve cadência para o solista. O nível de dificuldade é intermediário.

Aboio

A segunda obra para oboé de Osvaldo Lacerda e a primeira composta após seu período de formação, é o Aboio para oboé e piano, de 1972. Lacerda escreve sobre as primeiras notas do oboé a expressão “Ê bôi” [sic], certamente com o objetivo de caracterizar o gênero aboio que foi definido como “Um dos mais conhecidos entres os cantos de trabalho rural, é canto monocórdio, sem palavras, geralmente calcado na prolongação de vogais (o, e, a). São lentas melodias improvisadas” (Marcondes e Alvarenga 1977, 142).

Segue-se a essa interjeição inicial uma linha em tercinas descendentes e a exploração da tessitura do oboé em diversos registros confere um interesse particular à peça, no que concerne a escrita idiomática. A medida que a obra se desenvolve, torna-se mais e mais cromática. Piano e oboé estão em constante diálogo; cabe ao piano ora um suporte rítmico-harmônico, ora uma “resposta” ou comentário ao tema proposto pelo oboé. Aboio flerta com virtuosismo, algo que não se vê nas outras obras para oboé de Lacerda.

Após um primeiro período apresentado nos onze primeiros compassos, ocorrem dois trechos de desenvolvimento do tema. A seção contrastante explora os registros grave e agudo do oboé. Da mesma forma que na seresta, a primeira seção “A”, quando retomada, é variada e uma cadência do oboé conduz à conclusão da peça. A forma da obra é estrófica, como numa canção, e poderia ser representada como A1A2A3BA4. Lacerda voltará a utilizar a mesma estrutura em outras obras para oboé. O nível de dificuldade é intermediário.

Canto lírico

O ano de 1974 foi, por assim dizer, o ano do oboé para Osvaldo Lacerda. O compositor escreveu seis obras para o instrumento nesse ano: Canto Lírico, Toada, Improviso, Primeira Valsa, Segunda Valsa e Variações sobre Carneirinho, Carneirão.

Se a veia lírico-vocal já estava presente na seresta, ela é a essência do Canto Lírico. A linha melódica do oboé desenvolve-se como numa canção sem palavras. Formalmente, como no Aboio, a peça tem uma estrutura estrófica na qual o tema é variado a cada nova seção. Outra vez, a última delas é modificada e uma cadência é introduzida. O nível de dificuldade é intermediário.

Toada

Na Toada, de outubro de 1974, mais uma vez a forma é estrófica. Se no Canto Lírico o “afeto” explorado é a melancolia, nessa poderia ser o “humor” a forma de expressão retórica predominante. Autores divergem quanto ao caráter do gênero toada. Para Renato Almeida, trata-se de um “romance lírico brasileiro” de caráter melancólico, para Oneyda Alvarenga não há uma característica única que a defina, podendo ter tanto o caráter cômico, lírico ou sentimental, e Guerra-Peixe afirma que “toada” se caracteriza por seu texto poético, sendo a música “a melodia sobre a qual se apoia a toada” (Marcondes e Alvarenga 1977, 754). Em ambas as definições fica claro que se trata de um gênero que une texto e música.

Audi (2006) observa que Lacerda adota o contorno melódico descendente que, segundo Behague, seria uma característica da música nacionalista brasileira:

Lacerda’s Toada for oboe and piano offers a good example of this Brazilian melodic trait. […] the melody in the oboe part is composed of four descending sections, conferring an overall downward contour to the theme. The first descending melodic section starts on the first note of measure 1 and ends on the first note of measure 3 (F#). The second section starts on D in measure 3 and ends on the second F in measure 5. Another descending section starts on the note Bb of measure 5, ending on F# in measure 7. This is a variation of the first section. The fourth section is a variation of the second one. It goes from the note D in measure 7 to F in measure 9. (Audi 2006, 52)

Pequenos deslocamentos rítmicos na melodia criam interesse e variedade à peça. O acompanhamento do piano ora dialoga com o solista, ora emula o estilo violonístico de acompanhamento da música popular. A tonalidade geral da obra é Si bemol maior. Apenas no final da obra o acorde da tônica é utilizado em forma fundamental, mas com a nona menor e décima primeira aumentada acrescidas. Seria o Canto lírico e a Toada um par que formaria um pequeno ciclo? A questão será retomada adiante. O nível de dificuldade é intermediário.

Improviso para oboé solo

Improviso é a única obra para oboé solo do compositor. Sob o ponto de vista do estilo, Lacerda procura captar o espírito do prelúdio, ou, no caso de um compositor de fortes vínculos nacionalistas, um ponteio, a maneira dos violonistas. Em se tratando de um ponteio, a obra explora arpejos em diversas tonalidades e pequenas variações rítmicas insinuam a liberdade do músico em seu preludiar. Como é característico da escrita de Lacerda, o compositor se atém à região média do instrumento. O nível de dificuldade é intermediário.

Há duas versões da obra, nas quais se observam profundas diferenças. Na versão original de 1974, toda a primeira parte traz a articulação non legato, na edição revista de 1980, esta seção é escrita em legatos, além de outras alterações melódicas e harmônicas. Qual das duas utilizar?

A primeira versão é mais rara; circulou apenas em cópia do manuscrito. Porém, ainda é possível ter acesso à mesma. Provavelmente o compositor preferiria a segunda, muito posterior à primeira e a única que publicou em vida. Lacerda era muito rigoroso com relação a notação de sua música, o que reforça a hipótese de que a versão revista deve ser considerada oficial. Do ponto de vista da escrita idiomática para oboé, a segunda versão permite uma maior fluidez, mais próxima ao estilo improvisatório.

Dwight Manning (2005) realizou gravação da obra, optando pela primeira edição, provavelmente desejando ser mais fiel à ideia original do autor. Apesar de não utilizar a versão revista, Manning (2005), em sua interpretação, soube capturar o espírito improvistório da obra.

Primeira Valsa e Segunda Valsa

Nessas duas peças, ambas de outubro de 1974, Lacerda aborda um gênero arquetípico da música nacionalista. O número de valsas brasileiras é vastíssimo, e essas duas são um exemplo raro de valsas brasileiras para oboé e piano. 2

A Primeira Valsa tem estrutura formal ternária, em tonalidade de Ré menor. A primeira seção tem caráter lírico, a seção central é mais rápida, em Fá maior, com a indicação “dansante” [sic]. Em contraste com a anterior, a Segunda Valsa, na tonalidade de Sol Menor, é mais rápida, também com a indicação “valsa dansante” [sic]. A forma mais uma vez é ternária, a seção central, também em andamento rápido, é em Dó maior. O nível de dificuldade de ambas é intermediário.

Sobre uma aspecto característico da música popular urbana presente na Segunda Valsa, Audi observa que:

In his Segunda Valsa for oboe and piano, for example, Lacerda makes use of this polyphonic Brazilian constant. […] the left hand of the piano provides a melodic counterpoint to the oboe melody, as a Brazilian popular guitarist would do. In all the measures, the bass line connects to the following measure by stepwise motion. (Audi 2006, 92)

Outra vez cabe a pergunta se essas obras podem formar um ciclo se tocadas juntas. Se sim, quais elementos unem as duas peças? Não há indicação explícita do compositor sobre o fato das peças serem ou não um pequeno ciclo. Todavia, o contraste entre elas, bem como os elementos rítmicos e melódicos presentes em ambas sugerem que a hipótese é plausível. A tonalidade das valsas: Ré e Sol menor, as indicações de andamento: Lento, para Primeira Valsa, rápido, para Segunda Valsa; o caráter lírico da primeira e dançante da segunda sugere que o compositor escreveu as duas valsas propositalmente contrastantes entre si, deixando aos intérpretes a escolha de unir ou não as peças.

Variações sobre tema infantil “Carneirinho, Carneirão”

No prefácio desta obra, a mais longa do conjunto, são apresentadas as duas melodias que selecionadas para suas variações, a primeira, “Carneirinho, Carneirão”, a segunda, “Sapo Cururú”. A segunda melodia será apresentada de forma breve e apenas um vez ao final da obra. Apesar da linguagem um pouco mais complexa que as anteriores, o nível de dificuldade é intermediário.

O tema do “Carneirinho, Carneirão” é harmonizado em Si bemol maior, sendo esse tema seguido por cinco variações. Do ponto de vista do gênero, tema e variações, estas são variações características em que cada uma das variações remete a um estilo em particular (Stein 1979). Por exemplo, a terceira variação é uma marcha e, a última, uma valsa. A duração da obra, mais longa que as demais, permite mais facilmente sua inserção num recital.

Sonata

Após o frutífero ano de 1974, retorna ao oboé apenas em 1986 agora para escrever sua única Sonata para Oboé e Piano, que recebeu o prêmio de melhor obra de música de câmara do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte (Audi 2006, 9).

Desde o século XIX, o ciclo de sonata é uma forma ambiciosa, que conta entre suas características mais marcantes uma certa dramaticidade. Todavia, no século XX observa-se uma grande liberdade no que tange à forma e ao conteúdo da sonata. Assim, cada compositor compreenderá à sua maneira o que entende do gênero. A Sonata para Oboé e Piano de Lacerda não possui certamente a amplitude temporal ou dramática característica da música novecentista.

O primeiro movimento da sonata é escrito na tradicional forma sonata com dois temas contrastantes na exposição, sendo o desenvolvimento substituído por uma fuga, a recapitulação reprisa os temas com poucas alterações. O segundo movimento retoma a escrita lírica das obras anteriores e, por fim, o terceiro movimento se assemelha a um dobrado, ou uma marcha militar. De forma geral, a escrita para oboé é mais contida do que nas obras anteriores. O nível de dificuldade é intermediário.

Ponteios

Em março de 1993, Lacerda realizou o que classificou de “transcrições” dos Ponteios 39 e 44 de Camargo Guarnieri. As transcrições se limitam a extrair da parte original a melodia, destinando-a ao oboé. As obras são muito breves o que torna difícil incluir num recital. O nível de dificuldade é básico.

Concerto para oboé e orquestra

Desde a última década do século XX houve um expressivo aumento no número de obras para oboé e orquestra no Brasil. O concerto de Lacerda se juntou a essas novas obras em 2004. Dedicado a Alex Klein, o concerto foi estreado em 2005. A orquestração é transparente, a escrita do oboé explora a região média com raras incursões na região da terceira oitava, o que torna a peça, quanto ao nível técnico, entre o nível intermediário e avançado. No concerto, Lacerda utiliza a escala de tons inteiros de forma mais frequente do que em outras obras para oboé.

A obra possui a forma tradicional do gênero em três movimentos: o primeiro em forma de sonata, o segundo em forma ternária, e o terceiro é um tema com variações. Uma vez mais, o tema é baseado em uma canção folclórica. Sobre esta melodia, Lacerda diz no prefácio da partitura que se trata de uma canção folclórica recolhida em Minas Gerais, cujo primeiro verso é “Morena roda, morena linda”.

Como é usual no gênero concerto, o compositor explora aspectos técnicos num nível ligeiramente acima do que nas obras camerísticas. Porém, Lacerda fez uma observação sobre a cadenza: “o solista poderá elaborar uma cadência sua, desde que, nela, use um ou mais elementos da exposição e não abuse do virtuosismo”. Sua restrição ao virtuosismo certamente poderia ser estendida a todas as suas obras para oboé.

Quatro variações e fugueta sobre tema infantil

Em sua última obra para oboé, dedicada a Isaac Duarte e Mônica Kato 3 , Osvaldo Lacerda retorna a um gênero que praticou desde os tempos de estudante. Mais uma vez a melodia é retirada do cancioneiro folclórico, nesse caso “O pirulito que bate, bate”.

Do ponto de vista harmônic,o a tonalidade principal é Fá maior. Da mesma forma que no concerto, a escala de tons inteiros está presente de forma acentuada. Após a apresentação do tema, a primeira das variações é ornamentativa; a segunda transforma o tema ao ponto de deixa-lo quase irreconhecível; a terceira, em Fá menor, é outra vez ornamentativa, e uma vez mais explora as qualidades líricas do oboé; a última variação, em andamento vivo e em compasso ternário, é um breve scherzino, cujo clímax é alcançado após uma série cromática de hemíolas. Segue-se a fugueta, escrita a duas vozes. Curiosamente, o piano fica restrito a uma melodia na mão esquerda em contraponto com o oboé.

Alguns procedimentos utilizados pelo compositor garantem a unidade da obra. O final da segunda e terceira variações é o mesmo. Semelhantemente, as conclusões da quarta variação e da fugueta são similares. As cadências conclusivas das três primeiras variações é a mesma: Si natural – Fá.

Sob o ponto de vista da técnica do oboé, essa obra é a mais acessível do conjunto, com exceção da Seresta.

A guisa de conclusão

Ao longo desse texto busquei demonstrar que a maioria das obras de Osvaldo Lacerda para oboé estão de alguma forma ligada a gêneros vocais da música brasileira, como é o caso de Seresta, Aboio, Toada; ou fazem uso de canções folclóricas como tema para variações; ou ainda sugerem o estilo lírico diretamente no título da obra, como no Canto Lírico. Mesmo quando não se tratam de gênero genuinamente vocais, como nas Primeira Valsa e Segunda Valsa, ou o Improviso o compositor se atém à região média do instrumento.

Quanto ao nível técnico do conjunto, a maioria das obras são nível intermediário. Quanto à tessitura, a escrita se restringe à região média-aguda, sendo a região super-aguda da terceira oitava bem como a região grave pouco exploradas. A Seresta e Quatro Variações e Fugueta sobre um Canto Infantil são as mais acessíveis da série.

A brevidade das peças para oboé e piano do compositor tem levado aos intérpretes a agrupar algumas delas na tentativa de formar um ciclo. A mesma sugestão foi feita por uma oboísta americana, Keri McCarthy, ao escrever uma resenha sobre o Aboio, Toada, Segunda Valsa, e as Variações sobre o Tema Infantil “Carneirinho, Carneirão”, na revista da International Double Reed Society. Para a resenhista, a junção de Aboio, Toada e a Segunda Valsa, “formariam uma boa suíte (ou sonata modificada)”, por outro lado, “as Variações possuem duração e fôlego suficiente para ser considerada como uma peça independente” (MacCarthy 2013, 166).

MacCarthy (2013) comenta que as obras tem uma harmonia em estilo jazzy. A linguagem harmônica de Lacerda amiúde apresenta acordes de sétima, nona e décima primeira; acordes menores com sétimas maiores são marcas de sua música. Como dito anteriormente, há algumas gravações de obras de Lacerda (ver Tabela 2). Nos registros realizados por três diferentes duos, os intérpretes selecionaram obras com o intuito de “montar” um ciclo. Os músicos Ricardo Rodrigues e Luiz Senise (Rodrigues e Senise 1978), e Isaac Duarte e Mônica Kato (Duarte e Kato 1999) optaram por unir Aboio, Canto Lírico e Toada, nessa ordem; Alexandre Barros e Miguel Rosselini (Barros e Rosselini 2011) agruparam a Segunda Valsa e Toada.

A reunião das peças em ciclos pode ser problemática. Concebidas como obras isoladas, cada uma delas é um todo em si mesma. Quando reunidas, mantêm sua individualidade e não formam uma obra coerente, como no caso de uma suíte, ou ciclo de sonata, originalmente concebidos como tal. Talvez seja possível para alguém que, não conhecendo as obras individualmente, ao escutá-las juntas pela primeira vez, possa compreendê-las como uma obra única em vários movimentos?

Teria o próprio Lacerda deixado pistas de possíveis ligações entre as obras? Acima se observou que a Toada e o Canto Lírico têm elementos em comum e contrastantes entre si. O caso das duas valsas, que além do título, possuem elementos estruturais propositalmente contrastantes, pode insinuar a possibilidade de um pequeno ciclo.

As obras de Lacerda para oboé quase sempre são peças características cujos títulos remetem a gêneros típicos do nacionalismo musical brasileiro. Se os títulos são arquétipos nacionalistas, quando se busca a referência geográfica a que os termos remetem, outros arquétipos da nacionalidade brasileira são encontrados: o Aboio, um canto de tanger o gado, está ligado ao universo nordestino e ao Sertão; a Toada ao mundo caipira; as Valsas ao espaço suburbano; o Canto Lírico ao universo dos saraus e salões.

Neste conjunto de obras para oboé de Lacerda é possível perceber uma associação a aspectos culturais associados ao oboé. O estilo pastoral pode ser percebido no Aboio, a melancolia na Primeira Valsa. Por outro lado, a Seresta, a Toada, o Canto Lírico, são gêneros essencialmente vocais, ligados ao estilo lírico. As duas variações para oboé e piano, e o último movimento do concerto, são variações “sobre um canto infantil”. Estes fatos, aliados à estrutura formal estrófica, ou em forma ternária, fazem refletir sobre a possibilidade de que para Osvaldo Lacerda o oboé é um instrumento essencialmente vocal (Burgess e Haynes 2004, 214). Quem sabe por esta razão, tenha limitado sua paleta sonora ao registro médio-agudo, aquele no qual o instrumento melhor “canta”, deixando de lado a terceira oitava, mais incisiva, e a região grave, mais sonora e mesmo, quando necessário, grotesca (Rimsky-Korsakov 1946, 19).

Ao se contemplar o conjunto das obras para oboé de Osvaldo Lacerda, observa-se que o compositor permaneceu fiel a certos princípios que estão ligados essencialmente à visão que se tem do oboé desde o século XVIII. A recorrência desses elementos, cujo principal elemento defendo ser o lirismo, faz com que as obras, mesmo distanciadas no tempo, apresentem uma coerência estilística e formal.

O estudo das obras através do conceito de identidade cultural do oboé permite uma alternativa à abordagem puramente analítica, ou que leva em conta o caráter nacionalista da música do compositor, tratando de um aspecto iminentemente ligado ao próprio oboé e sua identidade cultural. Em outras palavras, oferecendo uma interpretação da perspectiva do oboísta.

Tabela 1
Conjunto de obras de Osvaldo Lacerda para oboé

Conjunto de obras de
Osvaldo Lacerda para oboé

Comunicação oral*.


Fonte: elaboração própria.

Tabela 2
Relação de gravações de obras para oboé de Osvaldo Lacerda

Relação de gravações
de obras para oboé de Osvaldo Lacerda


Fonte: elaboração própria.

Referências

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Barros, Alexandre e Miguel Rosselini. 2011. Música para oboé e piano. Belo Horizonte: Independente.

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Casella, Alfredo, e Virgilio Mortari. 1950. La técnica de la orquestra contemporanea. Roma: Ricordi.

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Peixoto, Valéria. 2013. Osvaldo Lacerda: catálogo de obras. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música. http://abmusica.org.br/downloads/catalogo_o.lacerda_v2_web.pdf. (Acesso em 25 de abril de 2016).

Rimsky-Korsakov, Nicolas. 1946. Principios de orquestracion: con ejemplos sacados de sus propias obras. Tomo I. Buenos Aires: Ricordi Americana.

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Notas

1 Não tive acesso a Invenção para Oboé e Clarone ou Fagote, provavelmente fruto de um exercício de composição. Sobre essa obra em particular, é possível deduzir algo do texto que Lacerda escreveu sobre seu período de estudo: quando era aluno de Guarnieri, deveria compor invenções com temas folclóricos e combinação de instrumentos escolhidos por seu professor (Lacerda 2001, 58).

2 Lenir Siqueira tem um ciclo de dez Valsas-Serenata para oboé solo.

3 Agradeço aos músicos a seção de cópia digital da obra.

4 Ryon, James, Mark George, e Regina Mushabac. 2002. Songs of innocence and experience: 20th century Brazilian Chamber Music for oboe, cello and piano. Ham Lake, MN: Jeanné Digital.

Autor notes

a Universidade Federal de Santa Maria
ORCID: 0000-0002-7260-4546
Autor de correspondencia

Informação adicional

Cómo citar: Batista Lúcius, Mota. 2018. “O oboé lírico de Osvaldo Lacerda: um olhar sobre seu conjunto de obras para oboé.”. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 13 (2): 175-187. http://doi.org/10.11144/javeriana.mavae13-2.oold

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