Ocupar e desconstruir — a derrubada simbólica de estátuas colonizadoras através da série Devolta, de Diambe da Silva*

Ocupar y deconstruir — el derrocamiento simbólico de las estatuas colonizadoras a través de la serie Devolta, de Diambe da Silva

Occupying and Deconstructing — the Symbolic Toppling of Statues of Colonizers Through the Devolta Series, by Diambe da Silva

Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, vol. 17, núm. 1, 2022

Pontificia Universidad Javeriana

Julia Baker **

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil


Recepção: 01 Julho 2021

Aprovação: 06 Setembro 2021

Publicação: 01 Janeiro 2022

Resumo: O presente artigo busca articular o movimento de derrubada de estátuas, símbolos da colonização e escravidão, com a performance coreográfica da artista Diambe da Silva na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2019 e 2020. Primeiro é contextualizado o papel social e simbólico das estátuas no espaço público, e como a arte é vetor de mudança através de uma breve revisão bibliográfica de artigos e textos, que colocam em evidência a problemática de estátuas de personalidades controversas que ainda são preservadas e mantidas em espaços públicos e como o poder público e os cidadãos vem lidando com essa questão nos últimos anos. Depois, a obra de Diambe é analisada, a partir da escolha das estátuas e sua localização no Rio de Janeiro. O artigo selecionou três coreografias da série Devolta que ocorreram nas estátuas das figuras históricas de Dom Pedro I, Dom João VI e Princesa Isabel, personalidades recorrentes nas narrativas da história colonial brasileira e que exerceram papéis centrais e controversos quando revisitamos a narrativa construída de um país que, de colônia, se tornou império para, por fim, ser reconhecido como república. Através das coreografias, um novo sentido simbólico é dado às estátuas, localizadas em espaços de destaque da cidade, conhecidas áreas nobres, o bairro de Copacabana e o centro comercial da cidade, sendo o último espaço de moradia da monarquia portuguesa no Brasil. Relacionando os conceitos de coreopolícia e coreopolítica de Andre Lepecki com a obra de Diambe em conjunto com pensamentos de Achille Mbembe sobre o destino das estátuas representantes de um passado opressor colonial, o artigo faz uma leitura crítica do lugar das estátuas na atualidade a partir da obra da artista.

Palavras-chave:decolonial, coreopolítica, monumentos, derrubada, artes do corpo.

Resumen: Este artículo busca articular el movimiento de derrocamiento de estatuas, símbolos de colonización y esclavitud, con la actuación coreográfica de la artista Diambe da Silva en la ciudad de Río de Janeiro entre 2019 y 2020. Primero se contextualiza el papel social y simbólico de las estatuas en el espacio público, y cómo el arte es un vector de cambio a través de una breve revisión bibliográfica de artículos y textos, que destacan el problema de las estatuas de personalidades controvertidas que aún se conservan y mantienen en los espacios públicos y cómo las autoridades y la ciudadanía han abordado este tema en los últimos años. A continuación, se analiza la obra de Diambre, a partir de la elección de las estatuas y su ubicación en Río de Janeiro. El artículo seleccionó tres coreografías de la serie Devolta que ocurrieron en las estatuas de los personajes históricos de Dom Pedro I, Dom João VI y la Princesa Isabel, personalidades recurrentes en las narrativas de la historia colonial brasileña y que jugaron papeles centrales y controvertidos cuando revisamos la narrativa construida de un país que, de colonia, se convierte en imperio y, finalmente, se reconoce como república. Por medio de las coreografías, se les da un nuevo sentido simbólico a las estatuas, localizadas en espacios destacados de la ciudad, conocidas áreas nobles, el barrio de Copacabana y el centro comercial de la ciudad, siendo el último espacio habitacional de la monarquía portuguesa en Brasil. Relacionando los conceptos de Andre Lepecki de coreopolice y coreopolítica con el trabajo de Diambe junto con los pensamientos de Achille Mbembe sobre el destino de las estatuas que representan un pasado colonial opresivo, el artículo hace una lectura crítica del lugar de las estatuas hoy basada en la obra del artista.

Palabras clave: decolonial, coreopolítica, monumentos, derrocamiento, artes del cuerpo.

Abstract: This paper aims to articulate the movement of toppling statues, symbols of colonization and slavery, with the choreographic performance of artist Diambe da Silva in the city of Rio de Janeiro between 2019 and 2020. First, we contextualize the social and symbolic role of statutes in public space and how art is a vector of change through a brief bibliographic review of articles and texts, which highlight the problem of statues of controversial personalities that are still preserved and maintained in public spaces and how authorities and citizens have addressed this issue in recent years. Next, we analyze Diambre’s work, based on the choice of statues and their location in Rio de Janeiro. For the paper, we selected three choreographies from the Devolta series that took place by the statues of the historical figures of Dom Pedro I, Dom João VI, and Princess Isabel, recurring personalities in the narratives of Brazilian colonial history and who played central and controversial roles when we review the constructed narrative of a country that, from a colony, went to become an empire and, finall , was recognized as a republic. Through choreography, a new symbolic meaning is given to the statues, located in prominent areas of the city, well-known noble areas, the Copacabana neighborhood, and the commercial center of the city, which was the last residential space of the Portuguese monarchy in Brazil. By linking Andre Lepecki’s concepts of choreopolice and choreopolitics to Diambe’s work, together with Achille Mbembe’s thoughts on the fate of statues that represent an oppressive colonial past, the paper does a critical reading of the role of statues today, based on the artist’s work.

Keywords: decolonial, choreopolitics, monuments, toppling, body arts.

No ano de 2020, mais precisamente entre os meses de maio e junho, foram noticiados a derrubada de estátuas e monumentos associados ao colonialismo, tráfico de pessoas escravizadas e ao racismo. Tal ação não aconteceu apenas em uma cidade ou país. Através de busca por “monumentos derrubados” no portal de notícias da BBC, é possível encontrar dezenas de matérias no mês de junho de 2020 relatando estátuas sendo derrubadas em cidades dos Estados Unidos, Europa e África do Sul. Quando não era possível derrubá-las, eram decapitadas ou pintadas com frases contra o racismo, assim como marcadas com tinta vermelha, simbolizando o sangue que tais imagens ajudaram a derramar em séculos passados.

Cristovão Colombo, Cecil Rhodes, Edward Colston, Leopoldo II, Jefferson Davis e Padre Antônio Vieira são alguns dos personagens históricos eternizados nos monumentos alvos das ações descritas. Tais sujeitos representam, alguns de forma mais pungente que outros, momentos em que políticas racistas e coloniais se sobrepuseram na história. Seja realizando a catequização dos povos ameríndios ou traficando seres humanos do continente africano para serem vendidos como produtos, os homens citados acima participaram ou ajudaram a implementar uma lógica que ainda é perpetuada de dominação e exploração de indivíduos marginalizados por questões ligadas à raça, etnia ou origem.

O fato desencadeador da derrubada de monumentos no período citado foi o assassinato de George Floyd em maio de 2020 na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos. Floyd foi vítima da brutalidade e racismo da polícia local. Sua morte levou a manifestações nas ruas, mesmo no período pandêmico em que o mundo inteiro se encontrava recolhido em suas casas. Entretanto, esse revisionismo histórico, de derrubada de monumentos e estátuas ligadas a personagens opressores, não foi algo que surgiu apenas no ano em questão. Em artigo de 2019, no site Café e História, Carolina Silveira Bauer detalha a retirada da estátua de Antonio López y López, traficante de escravos, da cidade de Barcelona em 2018. No mesmo site, em artigo de Vitor Izecksohn de 2017, é feita uma análise da retirada do pedestal de monumentos confederados nos Estados Unidos. Identificamos, assim, como algumas revisões históricas estavam sendo realizadas. Porém, a retirada dos monumentos era feita pelo próprio poder público e não da maneira presenciada em 2020, na qual a sociedade civil tomou para si o movimento de retirada, marcando tais ações dentro de protesto contra o racismo e reverberando o movimento Black Lives Matter, movimento antirracista iniciado em 2013 pelas ativistas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi.

A derrubada dos monumentos corrobora para que outras histórias sejam visibilizadas, e não apenas a história do vencedor ou dos sujeitos hegemônicos. Escovar a história a contrapelo, como dito por Walter Benjamin, faz com que tais movimentos se levantem para que outras vozes sejam ouvidas. Conservar símbolos de dominação no espaço público, através de monumentos e estátuas acaba por perpetuar, através da força imagética, uma relação de colonização. A derrubada precisa ser realizada em diferentes níveis, no plano do simbólico e da ação efetiva. Quando não se é possível a derrubada física, a simbólica ganha espaço e, neste contexto, as ativações artísticas se tornam protagonistas, criando dispositivos para ressignificar os monumentos, derrubando-os através de experimentos poéticos.

O presente artigo irá apresentar uma discussão sobre as estátuas e monumentos no espaço público e sua simbologia, enquanto representantes de momentos de colonização e de marcos de apenas uma história contada, a história dos dominantes, e como intervenções artísticas nestas obras públicas auxiliam na derrubada de seu poder simbólico. A partir do uso, como exemplo de tal ação, a série Devolta (2020/2021), da artista brasileira Diambe da Silva, busca vislumbrar a potência política das intervenções artísticas e como essas são gestos decoloniais e importantes de serem realizados em espaços públicos. Diambe cria sua ação criando uma relação com os monumentos. Mesmo sem efetivamente encostar neles, a artista os circunda com fogo, criando uma coreografia (classificação dada pela própria para suas ações de intervenção) que ressignifica e problematiza aquele personagem histórico. A queima simbólica e real de um símbolo pertencente ao Brasil, país que já foi classificado enquanto colônia, assim como império, mas que nunca deixou de ser governado pelos mesmos sujeitos coloniais.

O artigo analisa três coreografias da série em torno das estátuas de Dom João VI, Dom Pedro I e Princesa Isabel, localizadas na cidade do Rio de Janeiro, residência da artista. Não apenas as estátuas, mas o local onde estão instaladas acaba por ser questionado com o ato artístico. As ruas e praças onde estão as estátuas estão embebidas de referências à história brasileira através da óptica portuguesa. Cada coreografia será relatada no artigo, assim como as repercussões do fazer artístico. Outro dado importante para a realização da obra é que corpos estão atuando nela. Diambe é um corpo não binário que se identifica pelos pronomes femininos e como “bixa”1. Ela conta, para a realização da coreografia, com outros corpos não binários e femininos. A permanência delas na rua, mesmo que em uma ação artística, acaba por causar riscos à sua própria segurança. Entender como uma coreografia potencializa uma nova luz sobre a história contada, revela a colonialidade e imperialismos daquelas estátuas faz parte da intenção deste artigo.

O simbolismo e a prática colonial dos monumentos

A criação e instalação de um monumento não é casual. A escolha do espaço público a ser ocupado, o material da escultura, a altura de seu pedestal, as dimensões finais, tudo o que envolve a criação desta obra pública é absorto de significados. De acordo com Duncan, Livingstone e Harrison (citados em Corrêa 2005), as estátuas podem ser vistas como textos repletos de figuras de linguagem que comunicam mensagens em forma simbólica, geralmente associado a temas ligados ao poder e identidade. Incluir um sujeito que é comemorado ou conhecido pelos seus feitos históricos, não apenas nas narrativas literárias, mas na presença física das cidades, é um mecanismo para garantir que a sua permanência esteja na memória e vivência cotidiana dos ocupantes do espaço público. Através das estátuas, é esperado que aquele sujeito histórico seja conhecido nominalmente pois se torna espaço de referência ou de convívio. Se está localizado em uma praça, pode ser um ponto de encontro — “Vamos nos encontrar na hora do almoço na estátua de D. João VI” —, se está no espaço de uma via pública, é lá à sua esquerda ou direita que o carro deve virar, fazer o retorno. A estátua passa a atuar na geografia e mobilidade dos indivíduos.

Com isso, o personagem histórico está sempre presente, sua forma de estar vivo perpassa a literatura e se torna permanência física e cotidiana. Com tais significados, o monumento se torna mais um símbolo do poder público, já que sua instalação depende das forças e desejos de prefeituras ou estados que, através de negociações e trocas concedem a existência de tal indivíduo perpetuado em bronze.

A estátua está lá marcando quem foi aquele sujeito, marcando uma relação de poder e de criação de identidade a partir da história e lembrança por ela evocada. Assim, não apenas na sala de aula a história é repetida e mantida, mas também através dos símbolos de poder espalhados pela cidade. Um monumento não apenas informa quem foi aquele por ele representado, mas cria uma relação de força e de identidade. Nossa identidade nacional é forjada através da invenção de heróis que lutaram em guerras, nos protegeram de perigos e desbravaram terra selvagens. Tais heróis têm suas histórias eternizadas em um mar de símbolos escultóricos que ocupam o espaço público.

A força da arte pública, aqui representada por esses monumentos e estátuas, está no acesso. Qualquer um que caminhe naquela avenida ou precise passar em determinada praça vai vivenciar um encontro com o monumento. Este encontro forçado não ocorre em instâncias culturais como um museu ou uma galeria, pois tais espaços não são impostos nas rotinas de todos os habitantes, assim como também criam mecanismos de distanciamento e de acesso como, por exemplo, a cobrança de ingressos ou estarem localizados em espaços da cidade não presentes nas rotas dos transportes públicos. Ao incluir monumentos em espaços públicos de grande circulação, a relação é feita de forma quase obrigatória, é forçado algum tipo de relação, seja de reconhecimento ou de escolha consciente de não olhar aquele monumento, que as pessoas têm que passar toda vez que passam perto da obra pública instalada. Ao criarem um consumo obrigatório, forjam relações de identificação e repudia obrigatórias. Mas, por vezes, também criam relações de indiferença. Se pensarmos a cidade do Rio de Janeiro, as estátuas e monumentos servem, muitas vezes, não como referência para trajetos, mas sim como cama para moradores de rua, local para se sentar e repousar. Local para guardar seus pertences.

O fato é que as estátuas pertencem à paisagem e às relações sociais dos sujeitos que transitam na cidade e suas escolhas, em especial em países cuja história foi fundada por guerra e imperialismos, não são arbitrárias. Reforçar um passado e a relação com seus personagens é um trabalho cotidiano. É necessário a criação de mecanismos para manter viva a ideia de um passado e de sujeitos que traduzem tais histórias. Com isso são criados rituais para perpetuar uma narrativa dominante e todas as etapas da vida cotidiana passam a contar com ações ritualísticas que perpetuam a ideia de submissão (Mbembe 2020) entre colonizador e colonizado. Por vezes são ações mais demarcadas, por vezes mais sutis, como a de relacionamento com personagens históricos forjados no bronze e na história oficial. Porém continuam a representar ações de colonização de corpos.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, espaço que foi capital do país durante a época da colônia e império, palco de eventos históricos, porto de chegada de milhares de corpos escravizados e terra de diferentes etnias ameríndias, a violência simbolizada nas estátuas é diária. A cidade continua apresentando marcos de desigualdade, e tais relações foram construídas devido à reprodução de práticas coloniais. A expulsão de corpos marginalizados para as favelas e espaços em que poderes paralelos ao estado mantém uma relação de dominância, a remoção de sujeitos de suas casas para construção de vias mais largas, da revitalização de espaços, mostra como a relação entre sujeitos se mantém desigual. Em um espaço urbano de disputas constantes, em que certos corpos são marginalizados e não podem circular livremente, a necessidade de reforçar a dominação parece constante. A dominação se faz presente, seja na geografia dos espaços, seja nos corpos dos sujeitos que a vivenciam. O ir e vir não é permitido para todos, apenas para os que se encaixam na lógica da dominação imposta. Assim, o cenário das ruas se torna cenário de violência, de colonização.

Não somente por deixar apenas alguns corpos livres para usufruir de suas possibilidades, mas por recriar imagens de violência no cotidiano dos sujeitos. As imagens de exclusão são eternizadas tanto nas relações com as ruas quanto em relação com o que é escolhido estar nas ruas. Ao se decidir por certas representações de políticos, reis ou princesas, a exclusão é visível. Quais são os corpos dos monumentos? A quem representam as estátuas? No caso da cidade aqui selecionada, o Rio de Janeiro, existem, de acordo com informações no site da prefeitura da cidade, 1.100 monumentos e chafarizes espalhados na cidade, sendo que homenagens à personalidade são 391 obras que consistem em estátuas e bustos. As figuras retratadas são, em sua maioria, reis, rainhas, militares e outros que simbolizam uma elite que perpetuava as relações de desigualdade social. É interessante reparar que uma parcela considerável das estátuas não foi instalada no período colonial e sim em momentos posteriores. Durante o século XX, tais monumentos continuavam a ser criados e instalados, como estratégias para manter viva uma história de dominação e submissão. Assim a memória do período da escravidão vai se mantendo viva, a memória da dominação branca e portuguesa continua impregnada nas ruas e nunca deixamos de ser colônia.

Achille Mbembe (2020) pontua que as estátuas e monumentos coloniais pertencem ao duplo universo da necromancia e geomancia. No universo da adivinhação, entre o plano dos espíritos e da fisicalidade do solo, as estátuas vão remarcando e evocando o racismo colonial. Não é explícita a sua função, de aparato de dominação, porém ao evocar o espírito dos que por elas são retratados e, ao criar uma relação forte com o espaço das ruas e da cidade em que estão aterradas, tais imagens deixam de ser alegorias e se tornam a dominação literal ao estarem com toda a sua oponência presentes nas praças e vias públicas.

As estátuas não irão se mover sozinhas. Suas memórias e histórias não são desconstruídas apenas porque desejamos. Mbembe sugere que, no caso dos países africanos, todos os monumentos que marcam uma história de colonização, dominação e racismo fossem recolhidos e levados para um parque museu panafricano. Neste espaço, eles não seriam destruídos ou queimados, mas restariam lá, para que gerações futuras pudessem ter acesso a estas imagens dentro de um contexto não mais de opressão, e sim histórico, para que nunca fosse esquecido o colonialismo sofrido pelos países. Mas, ao reuni-las em um espaço, sem grau de hierarquização, elas estariam sepultadas naquele espaço, representando um passado não a ser esquecido, mas a ser combatido. O autor continua com uma sugestão, do que construir como símbolo em cada país e, para ele, no lugar de estátuas, o poder público deveria criar bibliotecas, teatros e espaços culturais em geral, pois tais edificações nutririam a criatividade cultural do amanhã (Mbembe 2020). No entanto, enquanto este amanhã ainda não chega, outros dispositivos de transformações são possíveis.

O fazer artístico pode se apresentar como um dos mecanismos de ressignificação de tais monumentos. Mesmo que não os derrube literalmente, através de intervenções em ou no entorno dos símbolos de bronze que seguem impregnando nossas cidades, é possível derrubar a hegemonia e criar novas relações com o espaço e os sujeitos retratados em bronze.

Apesar do ato artístico na rua estar protegido por lei, no Rio de Janeiro, o poder público, por vezes, o associa com vandalismo e tenta impedir sua realização. Em uma cidade com disputas frequentes no território das ruas, território compartilhado, a disputa pelo fazer artístico também se faz presente. Até para performar é necessário estar sob algum tipo de tutela do Estado como a supracitada lei. Estando protegido ou não, sendo considerado ato de vandalismo ou não, os artistas seguem nas ruas executando transformações. Com a visibilidade da pauta pelas grandes mídias do que é representado pelas estátuas, alguns artistas se voltaram para esse material. Artistas que questionam o colonialismo e o lugar que seus corpos ocupam na sociedade viram tal embate como espaço de criação e, mesmo que não promovam a derrubada física dos monumentos, criam obras, ações que desconstroem o simbolismo das estátuas presentes nas praças e avenidas.

Ações efêmeras ou permanentes fazem os transeuntes repensar as suas relações com o espaço e com os monumentos. Questionar é a palavra de ordem. Por que aceitar tal monumento no meio da rua? Por que a estátua de um homem montado em um cavalo, simbolizando poder sob outros povos merece destaque no centro de uma praça, no meio da cidade? Ao evidenciar e problematizar tais símbolos, o fazer artístico começa a transformar a identidade e dominância de símbolos históricos que nos são dados e, poucas vezes, são questionados. Por vezes a falta de questionamento acontece pois acreditamos que não temos o direito de nos levantar contra o que nos está dado como certo, o que, na realidade, está imposto desde o começo. A arte cria rupturas, sejam rupturas dentro do próprio fazer artístico como rupturas dentro da lógica da sociedade, e, em um momento como o atual, no qual vozes oprimidas não podem mais se calar, no qual extremismos se apresentam de forma perigosa e disfarçada de direitos, a arte tem como dever transformar e revelar.

O artista se expõe, toma as lutas e reivindicações populares e as transforma em matéria. As estátuas começaram a cair, o povo foi às ruas para derrubar memórias da colônia, mudar um fluxo de dominação histórica simbolizado por monumentos em homenagem a personagens escravagistas ou heróis da colonização do hemisfério Sul. Como derrubar as estátuas e monumentos através das intervenções artísticas? Diambe da Silva criou um trabalho para derrubar as estátuas, para colocar em evidência o colonialismo ainda existente na cidade do Rio de Janeiro, nos espaços públicos que não é percebido, mas que mantém viva a memória de uma cidade dominada, de uma cidade colonial em que os heróis são sempre salvadores de um hemisfério distante no nosso. Diambe realiza sua série Devolta em torno de símbolos de dominação europeia no Brasil; a artista, em entrevista realizada para o projeto expositivo Imersões Digitais, menciona que, mesmo tendo realizado sua ação em mais de dez monumentos, ainda poderia continuar atuando em novos, já que as marcas da colonização, simbolizada pelas estátuas, estão por todas as partes da cidade.

Devolta — coreografias de Diambe da Silva

Diambe da Silva é uma jovem artista do Rio de Janeiro. Em sua biografia, ela se apresenta como artista, comunicóloga e pesquisadora brasileira. Suas práticas artísticas não se limitam a apenas um suporte; ela transita entre instalações, fotografias, vídeos e coreografias. O termo coreografias, como Diambe o utiliza, nomeia suas ações performáticas no espaço da rua. Não é porque são baseadas em alguma movimentação específica, ou ensaiadas previamente, mas porque a artista entende que a movimentação de corpos no espaço público promove política, cria rupturas em espaços dominados por códigos de raça, gênero e sociabilidades. No artigo “Coreopolítica e corepolícia” (2011), André Lepecki relaciona a política com a coreografia, entendendo o espaço urbano como lugar não isento de sentidos e, quando ocupado por indivíduos, capaz de produzir novos sentidos e novas possibilidades para aquele chão. Para o autor, a política representa uma operação coreográfica de ruptura do espaço público como vazio ou livre de acidentes de terreno (Lepecki 2011). O acidente, a rachadura, revela a cidade, os espaços e suas construções. É através de ações cotidianas ou práticas artísticas que estes espaços revelam histórias e memórias camufladas no ir e vir robotizado dos indivíduos ao seguirem rotineiramente com suas vidas.

A coreografia que este artigo busca refletir sobre, não é apenas uma e sim a série intitulada Devolta (2020/2021). No trabalho, Diambe convoca um grupo de artistas e parceiras para realizar a movimentação. No período da noite, elas chegam no espaço público no qual estão as estátuas e monumentos que farão parte da coreografia. As artistas carregam em suas mãos roupas, tecidos e garrafas cheias de líquido inflamável. O local selecionado é palco de monumentos ligados à colonização do Brasil — estátuas de bronze, homenageando sujeitos marcados como principais na história contada como única nos livros de escola. Os monumentos são símbolos da colonização portuguesa e de uma ruptura feita na base de negociações entre os poderes dominantes. A ação busca questionar o porquê de aqueles monumentos se encontrarem com destaque no espaço público, como podemos rever a história contada e como corpos não dominantes são recebidos no mesmo espaço compartilhado pelas figuras. Entre 2020 e 2021, Diambe realizou seis coreografias da série; dentre estas, destacam-se três para análise dos símbolos escolhidos e de como a ação transcorreu.

Nos três trabalhos, as ações se repetem de forma similar. Conforme informado anteriormente, acontecem no período noturno; um grupo junto com Diambe chega no local onde o monumento está instalado e começa a circundá-lo, colocando roupas retorcidas no chão ao seu redor. Na sequência, as participantes pegam garrafas repletas de líquido inflável e seguem circulando o monumento, encharcando as roupas. O ato final é realizado por Diambe, ateia fogo nas roupas, envolvendo aquele monumento em um círculo de fumaça e chamas. Apesar da ação não levar a finitude daquele monumento, questiona a função e espaço daquele símbolo colonial. Diambe faz coreopolítica, pois sua ação revela o entrelaçamento profundo entre movimento corpo e lugar (Lepecki 2011).

Devolta - monumento Dom Pedro I

Em janeiro de 2020, Diambe realizou Devolta em torno do monumento dedicado a Dom Pedro I. Tal estátua foi erguida em 1862, sendo a primeira escultura pública do Brasil, inaugurando o período conhecido como estatuamania no final do século XIX (Knauss 2010). A revelação da estátua foi sinônimo de festa e matérias no jornal, como representa a Figura 1.

Programada para ser inaugurada no dia da Constituição brasileira, sofreu um remanejo de datas devido às fortes chuvas que aconteciam no mês de março (Knauss 2010). Mesmo com a alteração, a sua inauguração foi composta por cerimônia na qual estavam presentes poderes militares, imperiais e a população em geral. A sua construção foi feita na França, pois, na época, o Brasil não dispunha de material e equipamento para criar um monumento de bronze com tais proporções. Para além das questões práticas de sua elaboração, houve uma mobilização social para que sua existência fosse completada, pois é “no processo de ritualização que a escultura se apresenta ao olhar” (Krauss 2010). Krauss relata como, anteriormente à inauguração, uma movimentação intensa se deu, primeiro, sobre o local na cidade onde ela seria instalada. Pensaram em praças, espaços mais fechados, porém, ao final, foi decidida sua residência na Praça Tiradentes (nome de um dos principais personagens que lutou, durante a Inconfidência Mineira, pela libertação do Brasil, colônia de Portugal, e que foi capturado e morto em 1792). Cercando a praça, ruas com nomes de imperadores e imperatrizes, assim como efemérides ligadas à história da independência brasileira, fazem a estátua estar localizada em um espaço-tempo repleto de narrativas que contribuem para a construção de um Brasil pós-colonial e que tentam amenizar as disputas ligadas aos indígenas e povos escravizados trazidos ao país.

A escolha do desenho da estátua foi através de um concurso público, no qual o projeto de João Maximiniano Mafra (professor de pintura da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro) foi selecionado para ser executado. A promoção da obra como algo importante para a cidade começa a partir de sua origem, ao engajar artistas para sua construção, anunciar nos jornais possibilidades de locais para sua instalação e, no dia de sua inauguração, ser realizada uma cerimônia com toda a pompa da época. O simbolismo do monumento permeia não apenas o que ele representa, mas como sua construção é criada junto à população e à imaginação de um grande evento que está por vir. No dia de sua apresentação a todos, chegava à cidade do Rio de Janeiro uma obra de grande representação simbólica dos poderes atuantes da época.

Gravura da estátua de Dom Pedro I
Figura 1.
Gravura da estátua de Dom Pedro I


Fonte: Semana Ilustrada, 6 de abril de 1862.

A composição escalonada se organiza a partir de um gradil de proteção, uma base de cantaria, um pedestal e a estátua, propriamente dita. O gradil de ferro compõe um octógono que cerca a escultura e traz em cada coluna, a inscrição de uma data que demarca os principais fatos da história da independência e da afirmação do Estado nacional; o pedestal em granito apresenta em cada um de suas faces laterais alegorias de bronze que representam os rios do país — Amazonas, Madeira, Paraná e São Francisco — associando a imagem de índios e animais esculpidos em bronze; no alto do pedestal, antes da estátua, contorna a peça os brasões das vinte províncias imperiais, e, finalmente, encimando o conjunto, a estátua equestre do imperador em trajes militares sem insígnias monárquicas, com um braço esticado que traz na mão um livro, que representa a primeira Constituição nacional, outorgada em 1824. Mesmo o livro sendo de proporções pequenas, chama atenção pelo fato de ser o único elemento fora do eixo principal da composição simétrica, destacando-se do conjunto. Na face principal, na cimalha do pedestal, abaixo da estátua, aparece um escudo com a inscrição D. Pedro I, gratidão dos brasileiros. (Krauss 2010)

Monumento a D. Pedro I do Brasil, praça Tiradentes, centro histórico da cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, Brasil
Figura 2.
Monumento a D. Pedro I do Brasil, praça Tiradentes, centro histórico da cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, Brasil


Fonte: Wikipédia Brasil.

Apesar da comoção para a realização e inauguração da primeira estátua em solo brasileiro, sua chegada, mesmo na época, foi questionada. No dia da inauguração, o jornal Diário do Rio de Janeiro, publicou um texto questionando que a independência do país não deveria ser representada como obra de um único homem assim como suas movimentações políticas não eram apenas para libertar o país e encaminhá-lo para o processo democrático e sim, formas de manter sua família no poder e deter certa dominação sob as riquezas e solo brasileiro. No ano seguinte, Homem de Mello também publicou um texto questionando o papel de D. Pedro I e sua representação como figura chave da libertação do país. Mesmo com tais questionamentos na época, a estátua se manteve em seu espaço e não foi alvo de maiores debates públicos. Sua permanência simboliza uma relação para sempre mal resolvida entre Brasil e Portugal, de uma independência forjada por acordos de elites para manter o poder e controle socioeconômico do país. É uma estátua que reproduz relações de dominação, coloca o colonizador em um cavalo e o transforma em salvador, desbravador das terras selvagens (Figura 2).

“Não serei bixa presa por causa de arte” eram as palavras na camisa de Diambe no dia de sua coreografia em torno da estátua de D. Pedro I. Ela e suas companheiras realizaram todas as etapas de sua coreopolítica naquele espaço. Levaram as peças de roupas, colocaram no chão cercando a estátua, espalharam gasolina e atearam fogo, circulando a figura histórica. Seus corpos não eram representados no monumento. A ideia de um Brasil independente, livre e integrado é ilusória. Diambe sabe e vive isso. Na frase que carregava no dia estava presente esta discrepância de Brasis. Seu corpo pode ser preso a qualquer momento, não só pelas suas práticas no espaço público, mas também pelo que representa: uma pessoa não binária, não branca, não pertencente a classes de grande poder aquisitivo. A ação não causa danos à estátua, mas o rito do fogo, a derrubada, ocorre no plano simbólico. Apesar de não a retirar do espaço público, questiona seu pertencimento e o porquê daquele símbolo colonial, representante da narrativa hegemônica, em um espaço público transformado ao decorrer dos séculos. Os ocupantes atuais daquelas ruas, na praça, em nada se relacionam com o monumento, carregam marcas do trabalho compulsório, de uma vida apressada ou do descaso do Estado com seus corpos. O rompimento com os ideais que a estátua representa se fazem no cotidiano, mas é com Devolta que os olhos se voltam à estátua e desejam sua derrubada (Figura 3).

Importante dado para a realização do trabalho e que facilita seu entendimento enquanto obra artística perante a polícia e estado é a Lei Municipal Número 5.429, sobre apresentação de artistas de rua no espaço público. De acordo com esta lei, não é necessário a solicitação de licenças ou alvarás para trabalhos artísticos com certas especificações sendo, as principais: não atrapalhar na circulação de pedestres ou de veículos e que sejam gratuitos. Diambe sempre carrega esta lei consigo para provar que tem assegurado performar nas vias públicas. Através do aparato jurídico, ela garante sua possibilidade de representação da derrubada dos solenes monumentos.

Fotografia da série Devolta, Dom Pedro I
Figura 3.
Fotografia da série Devolta, Dom Pedro I


Fonte: Lorena Pipa. Acervo da artista Diambe da Silva.

Devolta — estátua Dom João VI

Em fevereiro de 2021, o monumento alvo foi uma estátua, também símbolo do império, a imagem feita em bronze de Dom João VI, monarca português que trouxe a corte para o Brasil em 1808 e, com a chegada, reproduziu relações de superioridade dos colonizadores mediante os brasileiros nativos. Fugindo de uma Europa conturbada, D. João VI chegou no Brasil colônia com o desejo de reproduzir a lógica da corte portuguesa. Ao encontrar um país com fartura de bens, seguiu explorando as terras diretamente na capital, o Rio de Janeiro. Acreditava trazer a civilização e, assim, fundou escolas de artes e de ciências, convidou pintores, arquitetos, botânicos e outros investigadores para retratar o país que conhecia, sua fauna e flora e para estruturar prédios, ruas e avenidas aos moldes europeus. Quando voltou para Portugal, deixou seu filho, D. Pedro I, no comando e juntos arquitetaram a transformação da colônia em império para assim continuar a dependência e exploração das terras sul-americanas.

Sua estátua foi um presente de Portugal, para celebrar o IV centenário da cidade do Rio de Janeiro, em 1965. Assim como a estátua de seu filho, D. João está montado em um cavalo e segura, em sua mão direita, um globo terrestre, símbolo de dominância e poder. Localizada na Praça XV de Novembro, seu espaço foi selecionado por ter sido o local de chegada da corte em 1808 e onde está localizado o Paço Imperial, morada de D. João e sua família. O nome da praça marca a data da Proclamação da República, em 1889. É um espaço repleto de memórias da construção da nação brasileira.

Fotografia da série Devolta, Dom João VI
Figura 4.
Fotografia da série Devolta, Dom João VI


Fonte: Jessica Senra. Acervo da artista Diambe da Silva.

Diambe utiliza uma túnica branca e, embaixo, uma regata com a mesma frase da ação anterior: “não serei bixa presa por causa de arte”, para sua coreografia. O cenário da praça é vazio, é um espaço de circulação apenas diurna, pois o centro da cidade não é espaço de morada e sim do trabalho. Os poucos que ficam na praça no período da noite são moradores de rua, seguranças e, por vezes, a polícia. A ação foi registrada no formato de fotos e vídeos, como a imagem a seguir exemplifica (Imagem 4).

Devolta — estátua da Princesa Isabel

A terceira coreografia foi em Copacabana, bairro residencial localizado em área nobre da cidade. Em um ponto de frente para a praia, entre dois sinais de trânsito, está a estátua da Princesa Isabel, creditada como a principal responsável pela abolição da escravatura no Brasil, em 1888, ao assinar a Lei Áurea. A estátua representa este momento em sua vida, pois carrega, em uma de suas mãos, uma pena, como se acabasse de assinar a lei. A estátua é recente, de 2003, e está situada em uma avenida com nome homônimo. Sua instalação foi uma solicitação à prefeitura do Rio de Janeiro pelo grupo de Mulheres Empresárias, representado por Marilda de Sá. Possui 2,5 metros e é de bronze.

Fotografia da série Devolta, Princesa Isabel
Figura 5.
Fotografia da série Devolta, Princesa Isabel


Fonte: Bleia Campos. Acervo da artista Diambe da Silva.

O exato local onde a estátua está instalada não tem muita circulação de pessoas, mas, como fica de frente para a praia, na proximidade de hotéis, há um ativo policiamento na região. Na ocasião desta coreografia, Diambe e suas companheiras de ação foram abordadas pela polícia e presas. As imagens foram registradas por uma pessoa não envolvida na ação e, depois, vieram a integrar o vídeo com registros da coreografia (Figura 5).

A ação da polícia foi quase imediata; assim que as chamas em volta da estátua aparecem, a viatura da polícia chega. O vídeo mostra, ao longe, a conversa de Diambe com os policiais; ela parece mostrar papéis com a lei do artista de rua, mas, mesmo assim, ela e suas companheiras terminam algemadas no vídeo. Mesmo com a interferência policial, a coreografia foi realizada em todas suas etapas. Lepecki atribui um papel à polícia em suas ações cotidianas e de repressão, ao parar corpos e direcionar seus trânsitos pela cidade, os representantes da força, criam movimentações possíveis, uma coreografia direcionada por impossibilidades de livre uso da cidade. A coreopolícia (Lepecki 2011) executada nesta edição da série Devolta, revela como alguns espaços da cidade possuem maior vigilância que outros. Na derrubada do pensamento colonial, aqui representado como marca monumental em bronze de três personalidades na história escolhida como a brasileira, barreiras de dominação se apresentam. Quando a força policial prende corpos por realizarem uma ação artística reflexiva, amparada pela lei, vemos que a hegemonia e desejo de manter uma ordem se vale de outras desculpas para retirar os proponentes da ação do espaço.

Assim, a rua é para todos? O bronze não derrete, não é derrubado fisicamente. Mas, mesmo quando ações simbólicas de queima de poderes imperiais são postas em prática, o receio da ocupação das minorias se torna visível. Em Copacabana vemos o resultado de tal ação.

Considerações finais

Dom Pedro I, Dom João VI e Princesa Isabel, três símbolos de um Brasil colônia transformado em império para garantir o poder das elites, são apresentados nas narrativas dos livros de história como personalidades que ajudaram a instalar a democracia no país, porém é preciso revisitar tais personagens e suas ações que não eram feitas sem que muitos fossem oprimidos e como manobra para garantir que revoltas não insurgissem junto com a população brasileira pertencente às classes menos privilegiadas e os sujeitos que eram escravizados. As três estátuas, produzidas em séculos e momentos históricos distintos, podem representar fatos singulares, mas são lidas na mesma chave de submissão e colonização. Diambe é uma artista que questiona o colonial; em outro trecho de sua biografia se coloca como artista anticolonial e, assim, questiona o que essas estátuas ainda representam em um país que carrega marcas coloniais constantes. Os nomes de ruas, os espaços públicos escolhidos, todos representam uma ideia de Brasil abundante e justo, algo comprovadamente fictício. Os homens em seus cavalos, simbolizando poder e dominância perante as riquezas e povos originários, a mulher sendo a sola responsável pelo fim da escravidão. São essas as únicas narrativas dos fatos passados? Recontar a história não é apagá-la, é tornar visível outras narrativas, a narrativa dos oprimidos, dos que tiveram suas vozes apagadas dos escritos oficiais. Ao colocar fogo nas estátuas, Diambe ilumina novas possibilidades de narrativa, evidencia o espaço, o corpo desenhado naquele bronze e questiona a narrativa inventada por aqueles monumentos.

Não é necessário a derrubada física, mas a queima acaba por representar a extinção de um fato único derruba a ideia de uma única verdade, uma única narração. Ao colocar seu corpo e o de suas companheiras em evidência junto com marcos coloniais, Diambe discorre também das hierarquias dos corpos nas ruas, quem pode ou não estar naquele espaço público e qual ação é possível ou não.

A relação de imponência é alterada, as chamas tomam para si a força e poder simbolizados nas estátuas, despindo os símbolos da ideia de permanência e imutabilidade que nos transmitem. .

“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”, diz um provérbio africano. A movimentação, nos últimos anos, pela derrubada de estátuas e monumentos que retratam apenas um lado da história, o da hegemonia colonial, revela o desejo por novos símbolos de uma realidade escondida. A necessidade de colocar à luz as feridas e não verdades de narrativas com heróis forjados permitiu que o espaço público fosse ressignificado pelos atos anticolonialistas. Porém a derrubada não se faz apenas no âmbito físico; é necessário derrubar as ideias propagadas e representadas pelos sujeitos representados nas praças e espaços públicos. Identificar as histórias apagadas e reconstruir narrativas é uma necessidade para que não fiquemos à mercê apenas dos contos dos caçadores.

Dentro do campo das artes, a crítica da narrativa colonial se faz cada vez mais visível. A presença de artistas decoloniais que buscam temas caros às suas identidades permite que trabalhos com novas perspectivas sobre gênero, raça, sexualidade e narrativas se apresentem. Diambe faz parte destes artistas que carregam sua identidade e sua voz e as colocam em sua poética artística. Uma artista bixa, que vive e faz arte suburbana e vê seu corpo ameaçado pela sua simples existência, carrega as marcas das políticas de eliminação implantadas tantas vezes em nossa sociedade.

A artista escolhe ações na cidade do Rio de Janeiro que colocam em evidência os traços que a cidade carrega de espaço colônia. Não apenas evidencia as estátuas e a personificação do que são, mas também ilumina com questionamento os espaços e as ruas em que estão instaladas. Espaços que recontam uma história brasileira forjada para os livros de histórias, com heróis portugueses, onde indígenas e afrodescendentes não tem espaço, não aparecem nobremente fundidos no bronze. Enquanto as chamas sobem, Diambe não propõe um apagamento de uma narrativa criada e sim que repensemos e revelemos as demais histórias do período.

Mesmo que a derrubada não seja física, Diambe promove, com suas coreografias, derrubadas ideológicas. Faz uma dança em que saem das labaredas possibilidades de novas histórias, de novas memórias e a necessidade de revermos as figuras públicas que rodeiam a cidade.

Assim, as estátuas são derrubadas, são destituídas de sua solenidade, de seu poder de dominância. O questionamento do porquê de sua existência se evidencia.

Retirá-las não é o que Diambe propõe e sim ressignificá-las e evidenciar, cada vez mais, as disputas anticoloniais diárias de corpos não normatizados. A ação da artista derruba e transforma, não apenas os monumentos, mas a relação das pessoas com as ruas e com os símbolos coloniais. As transformações podem ser graduais, mas quando a artista se dispõe a colocar seu corpo em perigo, no espaço da rua, para abater símbolos perpetuados, vemos que coreografias transformam, mudam realidades impostas.

REFERENCIAS

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Notas

* Artigo de pesquisa.

1 Termo usado negativamente para denominar um sujeito homosexual. Atualmente tem sido retomado como termo de empoderamento.

Autor notes

** Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC/RJ) e é mestre em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/ FGV/RJ. Atualmente cursa o doutorado em Artes da Cena no Instituto de Artes da UNICAMP. ORCID: 000-0002-2223-1163 Correio eletrônico: juliabvp@gmail.com

Informação adicional

CÓMO CITAR: Baker, Julia. 2022. “Ocupar e desconstruir — a derrubada simbólica de estátuas colonizadoras através da série Devolta de Diambe da Silva”. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 17 (1): 58-73. https://doi.org/10.11144/javeriana.mavae17-1.odds

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