Mudanças pessoais e profissionais a partir da pandemia da covid-19: desigualdades sociais vivenciadas por profissionais da saúde em São Paulo, Brasil*

Cambios personales y profesionales a partir de la pandemia de la covid-19: desigualdades sociales vivenciadas por profesionales de la salud en São Paulo, Brasil

Personal and professional changes from the Covid-19 pandemic: social inequalities experienced by health professionals in São Paulo, Brazil

Fabiana Albino Fraga, Maria Amélia de Sousa Mascena Veras, Yuri Bassichetto Tambucci, Katia Cristina Bassichetto, Gabriela Furst Vaccarezza, Daniel Dutra de Barros, José Luis Gomez Gonzalez Júnior, César Augusto Inoue, Lenice Galan de Paula, Fabíola Rocha, Cláudia Barros, Ferdinando Diniz de Moura, Celina Maria Turchi Martelli, Maria de Fatima Pessoa Militão de Albuquerque, Lígia Kerr, Luana Nepomuceno Costa Lima, Luciane Nascimento Cruz, Carl Kendall, Nivaldo Carneiro Júnior

Mudanças pessoais e profissionais a partir da pandemia da covid-19: desigualdades sociais vivenciadas por profissionais da saúde em São Paulo, Brasil*

Revista Gerencia y Políticas de Salud, vol. 21, 2022

Pontificia Universidad Javeriana

Fabiana Albino Fraga a

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Maria Amélia de Sousa Mascena Veras

Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo, Brasil


Yuri Bassichetto Tambucci

Universidade de São Paulo, Brasil


Katia Cristina Bassichetto

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Gabriela Furst Vaccarezza

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Brasil


Daniel Dutra de Barros

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


José Luis Gomez Gonzalez Júnior

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


César Augusto Inoue

Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, Brasil


Lenice Galan de Paula

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Fabíola Rocha

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Cláudia Barros

Universidade Católica de Santos, Brasil


Ferdinando Diniz de Moura

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Celina Maria Turchi Martelli

Instituto Aggeu Magalhães, Brasil


Maria de Fatima Pessoa Militão de Albuquerque

Instituto Aggeu Magalhães, Brasil


Lígia Kerr

Universidade Federal do Ceará, Brasil


Luana Nepomuceno Costa Lima

Universidade do Estado do Pará, Brasil


Luciane Nascimento Cruz

Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde, Brasil


Carl Kendall *

Tulane University, Estados Unidos de América


Nivaldo Carneiro Júnior

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil


Recepção: 09 Dezembro 2021

Aprovação: 23 Junho 2022

Publicação: 30 Outubro 2022

Resumo: A pandemia ocasionada pela Coronavirus disease (covid-19) tem impactado a sociedade como um todo, exigindo adaptação a um novo contexto, tanto pessoal quanto profissional. As condições de trabalho dos profissionais de saúde têm sido objeto de interesse de pesquisas atuais, com ênfase no risco de transmissão e da sua repercussão na saúde mental. Nesse sentido, o presente estudo analisa as diferentes implicações dessa pandemia nas esferas privada e de trabalho entre médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que atuam na Região Metropolitana de São Paulo, Brasil. A partir de uma abordagem qualitativa e quantitativa, foram exploradas as entrevistas realizadas principalmente a distância, com o auxílio de mediação tecnológica, com a aplicação de um roteiro semiestruturado. Verificou-se que as adaptações para viver e trabalhar na pandemia se expressaram de forma heterogênea entre as diferentes categorias de profissionais da saúde, identificadas na intersecção entre gênero e classe social, sendo as mulheres as grandes responsáveis pela articulação de novas formas de apoio em rede. As intervenções a serem implementadas para a recuperação dos efeitos da pandemia não poderão abstrair as iniquidades já presentes na sociedade que se reproduzem no ambiente profissional.

Palavras-chave:Covid-19, Desigualdades sociais, Pandemia, Profissional de saúde.

Resumen: La pandemia ocasionada por la Coronavirus disease (covid-19) ha impactado la sociedad como un todo, demandando adaptación a nuevo contexto, tanto personal como profesional. Las condiciones de trabajo de los profesionales de salud han sido objeto de interés de investigaciones actuales, con énfasis en el riesgo de transmisión y su repercusión en la salud mental. En este sentido, el estudio analiza las diferentes implicaciones de esta pandemia en los entornos privado y profesional entre médicos, enfermeros y técnicos de enfermería que actúan en la Región Metropolitana de São Paulo, Brasil. Desde una aproximación cualitativa y cuantitativa, se exploraron las entrevistas realizadas principalmente la distancia, con el auxilio de mediación tecnológica, con la aplicación de un guión de entrevista semiestructurado. Se verificó que las adaptaciones para vivir y trabajar en la pandemia se expresaron de forma heterogénea entre las diferentes categorías de profesionales de la salud, identificadas en la intersección entre género y clase social, siendo las mujeres las grandes responsables de la articulación de nuevas formas de apoyo en red. Las intervenciones para implementar para la recuperación de los efectos de la pandemia no podrán abstraer las inequidades ya presentes en la sociedad que se reproducen en el entorno profesional.

Palabras clave: covid-19, desigualdades sociales, pandemia, profesional de salud.

Abstract: The pandemic caused by Coronavirus disease (covid-19) has impacted society as a whole, demanding adaptation to a new context, both personal and professional. The working conditions of health professionals have been the subject of current research interest, with emphasis on the risk of transmission and its impact on mental health. In this sense, the study analyzes the different implications of this pandemic in the private and professional environments among physicians, nurses and nursing technicians working in the Metropolitan Region of São Paulo, Brazil. From a qualitative and quantitative approach, interviews conducted mainly from a distance were explored, with the aid of technological mediation, with the application of a semi-structured interview script. It was verified that the adaptations to live and work in the pandemic were expressed heterogeneously among the different categories of health professionals, identified at the intersection between gender and social class, with women being largely responsible for the articulation of new forms of network support. The interventions to be implemented to recover from the effects of the pandemic will not be able to abstract the inequalities already present in society that are reproduced in the professional environment.

Keywords: covid-19, social inequalities, pandemic, health professional.

Introdução

A pandemia ocasionada pela Coronavirus disease (covid-19) trouxe enormes implicações para a sociedade como um todo e exigiu que a população, em maior ou menor grau, se adaptasse a um novo contexto, o que também se reproduz na vida profissional, em especial entre os que atuam diretamente no atendimento e cuidado a sintomáticos respiratórios ou infectados pela covid-19. Especificamente, as condições de trabalho e saúde desses profissionais têm sido objeto de estudo (1). No Brasil, uma revisão publicada pela Rede CoVida — Ciência, Informação e Solidariedade revelou que os principais problemas a que estão submetidos esses profissionais são carga adicional de estresse psicológico, condições de trabalho frequentemente inadequadas, exposição cotidiana ao risco de adoecer pelo coronavírus, cansaço físico exacerbado, insuficiência com relação às medidas de proteção e cuidado à própria saúde.

Desigualdades sociais nas relações de gênero e trabalho em saúde

As situações de exposição e atitudes no contexto da pandemia não afetam de modo semelhante as diversas categorias, uma vez que a força de trabalho em saúde não é homogênea (2). Há especificidades de gênero, raça e classe social, estruturantes do acesso aos diversos níveis e cursos de formação profissional, que são reproduzidos tanto nas oportunidades de inserção no mercado de trabalho quanto no cotidiano das relações no âmbito dos serviços de saúde (3).

Com o prolongamento da pandemia, os fatores estressores foram se exacerbando, trazendo como repercussões mentais o medo da própria morte e de pessoas próximas, o medo de ser infectado e de infectar os outros, o enfrentamento de medidas de isolamento social, que podem facilitar o surgimento de estresse pós-traumático, sintomas depressivos e ansiosos e de comportamento suicida (4). Além das repercussões negativas, tais sentimentos podem ter sido mobilizadores de mudanças, tanto na esfera pessoal quanto na profissional, devido aos desafios da adaptação ao contexto da pandemia da covid-19.

Considerando esse cenário, o presente artigo tem como objetivo caracterizar as diferentes implicações nas esferas privada e profissional, no contexto da pandemia da covid-19, entre médicos/as, enfermeiros/as e técnicos/as de enfermagem que atuam na Região Metropolitana de São Paulo, Brasil.

Método

O presente estudo é parte do projeto de pesquisa “Avaliação dos riscos de profissionais de saúde que cuidam de pessoas com covid-19 — Fique seguro”, estudo multicêntrico desenvolvido nas Regiões Metropolitanas de Belém, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e São Paulo (5). Aqui são utilizados os resultados da pesquisa desenvolvida em São Paulo, que contou com a participação de médicos/as, enfermeiros/as, técnicos/as de enfermagem.

O referido projeto utilizou métodos quantitativo e qualitativo. Para o recrutamento de participantes no componente quantitativo, uma adaptação para o ambiente virtual do método Respondent-Driven Sampling (RDS) foi usada. Técnica amostral é uma variante das amostragens baseadas em cadeia e, como tal, assume que membros de uma população de difícil acesso são melhores em recrutar pares de sua população do que outros indivíduos (6). Neste estudo, em que cada participante foi convidado a responder a quatro questionários distintos no total, com intervalo de dois meses cada um. A formação das coortes, em cada região metropolitana, foi precedida por uma etapa formativa, com vistas à seleção de potenciais “sementes” para a sua constituição.

Especificamente para o presente estudo, com profissionais da Região Metropolitana de São Paulo, analisamos os dados coletados das entrevistas com profissionais de saúde a partir de uma abordagem mista, com o componente quantitativo descritivo e, em seguida, uma análise de conteúdo qualitativa (7). Nesse caso, ambas as formas de análise são complementares e buscam dar conta da riqueza, diversidade e nuances apresentadas nas respostas. Entre as possíveis formas de organização dos resultados, optamos por apresentar as distinções entre as ocupações, levando à desagregação dos dados entre categorias profissionais.

A fase inicial da pesquisa consistiu na seleção de informantes-chave para as entrevistas individuais em profundidade e a identificação das sementes iniciais do RDS. Para essa seleção, foram considerados os perfis definidos no estudo multicêntrico: profissionais da medicina e da enfermagem (enfermeiros/as e técnicos/as de enfermagem), com experiências no atendimento de síndromes respiratórias e/ou infecção com covid-19, além da experiência em organização e gestão de hospitais de campanha. Em São Paulo, essas entrevistas foram realizadas remotamente, em decorrência da pandemia da covid-19, utilizando-se WhatsApp ou Google Meet. As entrevistas tiveram duração médica de 40 minutos, foram gravadas em meio digital e transcritas posteriormente para a leitura e a análise. Na oportunidade, foi utilizado roteiro semiestruturado, em que se abordaram dados sociodemográficos (idade, sexo, raça/cor), categoria profissional, quantidade de vínculos empregatícios e respectivos locais de trabalho, uso e acesso a equipamentos de proteção individual (EPI), exposição ao risco de infecção pelo novo coronavírus, capacitação profissional específica, mudanças no trabalho e na vida pessoal, entre outros.

Análise das informações

Para descrever a amostra e características do trabalho, foram utilizadas frequências relativas e absolutas. Adicionalmente, foram analisadas perguntas relacionadas à vida pessoal e profissional: remanejamento de atividade/setor de trabalho para a atuação na assistência a pacientes com covid-19; risco de contaminação atribuído ao local de trabalho; manifestação de sintomas ou diagnóstico de covid-19; sentimentos diante do trabalho na pandemia e mudanças na dinâmica familiar.

Para os dados qualitativos, foi realizada análise de conteúdo, segundo a proposta de Bardin (2016), a qual buscou encontrar regularidades e contrastes nos discursos (8,9). Essa análise se pautou nos dois principais temas de interesse da investigação: as mudanças na vida pessoal e na vida profissional percebidas pelos entrevistados a partir da pandemia. As preocupações, emoções e estratégias adotadas pelos entrevistados mobilizaram seus depoimentos e permitiram a criação das categorias de análise. Uma vez realizada essa organização, os casos específicos foram trazidos para uma análise detida que buscou explicitar, a partir do ponto de vista dos profissionais de saúde, as maneiras sutis e particulares de se lidar com questões compartilhadas por muitos deles.

Resultados

Perfil dos entrevistados/as

Os dados quantitativos obtidos a partir das entrevistas da etapa formativa, desagregados segundo categorias profissionais, estão apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas, aspectos relacionados ao trabalho e sentimentos dos/as participantes da etapa formativa, no contexto da pandemia da covid-19. Pesquisa “Fique seguro”, São Paulo, 2021
Características sociodemográficas, aspectos relacionados ao trabalho e sentimentos dos/as participantes da etapa formativa, no contexto da pandemia da covid-19. Pesquisa “Fique seguro”, São Paulo, 2021

(*)Outros tipos de trabalho: médico/a (telemedicina (1) | pesquisa (1) | supervisor programa “Mais médicos” (1) | Casas de repouso particulares | Ambulatório especializado privado / ligado à universidade; enfermeiro/a: (ensino privado (1) |gestão de OSS (1))

(**)Outros sentimentos: médico/a (síndrome de Burnout (1) | desmotivado/a |angustiado/a | tenso/a | ansioso/a | esgotamento intenso/vontade de abandonar a medicina/pensamentos negativos/sensação de morrer quando sozinho/a); enfermeiro/a (preocupado/a com a família (2); problema de saúde mental (1)); Técnico/a (ansioso/a (1)).


Fuente: Elaboração propina

No período de 2 de outubro de 2020 a 1 de fevereiro de 2021, foram realizadas 29 entrevistas, conforme critérios já apresentados, com profissionais de saúde, dos quais 14 (48,3%) são médicos/as, 5 enfermeiros/as (17,2%) e 10 (34,5%) técnicos/as de enfermagem. Todos/as desempenham atividades profissionais no município de São Paulo e cerca de 10% também trabalham em outros municípios da Grande São Paulo. Mais da metade trabalha em um único local (51,7%), sendo que 34,4% se distribuem igualmente entre dois e três locais de trabalho. Os locais de trabalho mais citados pelos enfermeiros/as foram os hospitais públicos e privados (40%); entre médicos/as, metade citou os hospitais públicos e, entre técnicos/as de enfermagem (50%), referiram trabalhar em hospitais e ambulatórios públicos especializados.

A maior parte do total de entrevistados/as é do sexo feminino (55,2%), sendo que essa proporção difere entre as categorias: técnicas de enfermagem (90%), enfermeiras (80%) e médicas (apenas 21,4%). A média de idade dos/as entrevistados/as foi 42,0 anos (DP = 11,9) e 62,1% deles/as encontram-se na faixa etária de 30 a 49 anos. Apenas 14% se autorreferiram como pretas/os e pardos/as, dos quais 75% eram técnicos/as de enfermagem.

A grande maioria (93,1%) referiu ter tido necessidade de efetuar alguma mudança na sua vida pessoal para continuar trabalhando. Entretanto, entre enfermeiros/as e técnicos/as de enfermagem essa necessidade ocorreu para a totalidade deles, enquanto para os/as médicos/as foi de 85,7%.

Ainda que, do total, cerca de 45% dos/as entrevistados/as tenham sido deslocados de alguma outra atividade ou setor para trabalhar com covid-19, entre os/as técnicos/as de enfermagem e enfermeiros/as esse deslocamento ocorreu para 70% e 60% deles/as, respectivamente. Destes, 30,1% foram deslocados para Unidade de Tratamento Intensivo ou Semi-intensivo e “gripários”, área destinada ao atendimento de sintomáticos respiratórios.

Com relação à autopercepção do risco no local de trabalho, foi considerado como “grande” para 60% e 70% dos/as enfermeiros/as e técnicos/as de enfermagem, respectivamente, e apenas para 37% dos/as médicos/as. Chama a atenção que a única categoria profissional que referiu não ter recebido nenhuma capacitação para o atendimento de sintomáticos respiratórios e pacientes sintomáticos e diagnosticados com covid-19 tenha sido os/as técnicos/as de enfermagem (30%). Tiveram sintomas compatíveis com a covid-19 todos/as enfermeiros/as entrevistados/as, com percentual semelhante para técnicos/as e médicos, ficando em cerca de 60% e 57%, respectivamente; considerando todas as categorias, cerca de 16% dos profissionais não puderam ser testados no trabalho.

Os sentimentos de temor e de cansaço foram os mais referidos por todos/as entrevistados/as (55,2% e 48,3%, respectivamente). Vale ressaltar que o sentimento de revolta por trabalhar no manejo de pacientes com covid-19 foi relatado apenas por técnicos/as de enfermagem (10%), e somente os médicos/as relataram estar sem esperança. Nenhum dos/as enfermeiros/as relatou estar tranquilo com a situação.

Mudanças na vida pessoal e profissional devido à pandemia de COVID-19

Todos/as entrevistados/as referiram ter ocorrido mudanças, seja na vida pessoal, seja na profissional, em função da pandemia da covid-19. Todavia, diferenças entre os profissionais são observadas nos relatos detalhados a seguir.

Ainda que, no roteiro da entrevista, os aspectos referentes às mudanças na vida pessoal e às mudanças na vida do trabalho estivessem separados, nota-se que os entrevistados construíam suas respostas combinando ambos os aspectos. Isso demonstra como é difícil dissociar essas mudanças e como elas se imbricam nas rotinas e discursos dos profissionais.

Apresentamos a seguir os resultados dos conteúdos das entrevistas, buscando especificar as mudanças ocorridas na vida pessoal dos/as entrevistados/as e os impactos da pandemia no ambiente e relações de trabalho.

Mudanças ocorridas na vida pessoal dos/as entrevistados/as

Independentemente da categoria profissional, em maior ou menor grau, as alterações foram inseridas nas rotinas. Destacam-se, além dos hábitos de limpeza das mãos, das roupas e de objetos, alguns comportamentos que foram adotados especificamente para proteger os familiares, como a separação rigorosa das roupas usadas na rua, a troca de calçados ao entrar na casa e até mesmo a utilização de máscaras dentro de casa ou a separação física (provisória ou duradoura) de membros da família (inclusive da família próxima).

Entre os médicos, ainda que os hábitos de higiene modificados pela pandemia sejam citados, eles aparecem de forma menos marcante. Os comportamentos são descritos de maneira genérica e contrastam com a forma como as demais categorias citam as mudanças. A troca de roupas e a limpeza corporal são citadas sempre com a preocupação de separar o ambiente doméstico daquele do local de trabalho e do transporte. Entre médicos, em relação às demais categorias, chamam a atenção as mudanças na rotina social: as refeições que antes eram feitas em restaurantes passam a ser realizadas dentro de casa; o contato com familiares próximos e amigos foi reduzido ou suprimido completamente e, em alguns casos, durante o começo da pandemia, filhos foram provisoriamente deixados com parentes.

Eu deixei de ver os meus pais, eu não moro com eles. E eu costumava visitá-los todo o final de semana, né. Então, nesse sentido, eu parei de visitá-los, eu fiquei uns cinco ou seis meses sem visitá-los. E a minha irmã que mora comigo, ela também acabou indo para a casa do namorado dela. Ela ficou cerca de quatro meses sem ficar comigo. Então, na prática, eu fiquei isolado mesmo. (médico, 31 anos)

Para além dos cuidados gerais que a maior parte das pessoas tomou, não via mais amigos, não saía com ninguém, só convivia com as pessoas de dentro de casa, só saía para trabalhar. Eu tentava ficar só no meu quarto, evitava fazer as refeições no mesmo horário que eles [os pais]. Depois quando eu confirmei covid, eu ficava só de máscara o dia inteiro, ficava só no meu quarto. (médico, 24 anos)

Entre os enfermeiros, as alterações na vida pessoal são descritas dando maior importância aos sentimentos negativos associados à pandemia. Ainda que não seja a única categoria profissional afetada por essas questões, destaca-se como o tema assume importância para descrever as alterações na vida pessoal. Uma enfermeira afirmou que além da solidão trazida pelo isolamento, sentia o "risco e pressão por estar na linha de frente e enfrentar o desconhecido”. Entre os enfermeiros também surgiu a preocupação com o trajeto entre casa e trabalho, realizado por meio de transporte coletivo, como mais um motivador da preocupação com a contaminação.

E aí nos primeiros quatro meses, eu mantive os dois [filhos] afastados de mim, eu fiquei em casa isolada sozinha. E os meus filhos ficaram um com cada irmã, né, com as tias. (enfermeira, 45 anos)

Então, a minha mudança foi sair mais cedo de casa porque não tinha transporte, muitas vezes eu tive que optar por um transporte de aplicativo. Mas também tem a minha tia que eu não visitei, tem os meus parentes. (enfermeira, 44 anos)

No começo quando começou o hospital de campanha, deixamos nossas duas filhas pequenas morando com meu sogro e minha sogra, que já cuidavam deles antes. (enfermeiro, 41 anos)

É entre os/as técnicos/as de enfermagem que as narrativas chamam mais a atenção. Esses profissionais narram as mesmas dificuldades observadas entre as demais categorias, mas com maior intensidade. Entre eles, os sentimentos aparecem a partir de adjetivos como o de uma técnica de enfermagem que afirmou estar “traumatizada”. A preocupação com a higiene também se manifesta no discurso de forma mais intensa: uma das profissionais diz “não ver a hora” de tirar a roupa do trabalho quando chega em sua casa. Essa categoria profissional é menos valorizada que as demais e geralmente recebe salários significativamente menores. Por isso, adicionam mais uma camada para as mudanças de higiene: o maior gasto de tempo e de recursos para realizar a limpeza pessoal e das roupas. Lavar o cabelo todos os dias ou gastar mais com sabão em pó foram elementos citados pelos entrevistados para explicar como foram afetados pelas mudanças de rotina.

Entre eles surgiram também alguns relatos que mostram alterações ainda mais significativas nas rotinas, reações mais extremas aos sentimentos trazidos pela pandemia e pelo trabalho que realizavam.

E também em relação à mudança de hábitos de mercado, de lavar as coisas, essa nova consciência que já deveria acontecer com a nossa população de chegar em casa com os mantimentos e lavar tudo. Seja papelão, plástico, saco de arroz, lavar tudo! (técnico de enfermagem, 46 anos)

Vale a pena ainda citar os cuidados específicos de quem contraiu a doença. As estratégias anteriormente relatadas se intensificam, repetindo os padrões observados entre as categorias. Novamente, foram os/as técnicos/as de enfermagem que narraram as reações mais acentuadas, o que reafirma as desigualdades entre as categorias. No fragmento abaixo, é possível notar que, embora esta profissional esteja atuando e tenha recebido treinamento, considera ser necessário identificar o lixo, ainda que este não configure uma forma de transmissão.

No lixo eu escrevia assim “Estou com covid, cuidado com esses materiais” (técnica de enfermagem, 34 anos)

A atual pandemia ocorre quando há um grande acesso global à tecnologia, como celulares conectados à internet e a diferentes mídias sociais, o que permite um acesso mais rápido às informações. Estas são produzidas com grande rapidez e variedade, o que dificulta o estudo e a confirmação dos dados, consequentemente, a divulgação de informações corretas. Em particular durante a pandemia da covid-19, a denominada “infodemia” — excesso de informações, algumas precisas, corretas e outras não — nem sempre permite que as pessoas obtenham informações idôneas e contribui para a desinformação, manipulação e informações duvidosas. Por exemplo, com relação à covid-19, com acesso facilitado a múltiplas páginas, qualquer pessoa consegue publicar uma informação e, muitas vezes, antes de ser checada, esta é amplamente disseminada, o que dificulta o trabalho dos profissionais de saúde e contribui para sobrecargas de saúde mental, como ansiedade e depressão.

Quanto à forma de expressar o medo e ansiedade de estar trabalhando durante a pandemia, bem como o risco e medo de contaminar os familiares, uma profissional acredita que não deve retirar a máscara nunca, mas não cita, por exemplo, a importância de manter a ventilação da casa adequada para evitar o contágio.

Até em casa, eu fico de máscara, né, os meus netos e filhos ficam comigo lá, então... Em casa até dormir, eu durmo de máscara! Porque o meu marido lá do lado,eu tenho medo de estar contaminada e passar para eles. (técnica de enfermagem, 56 anos)

Eu fiquei isolada no quarto com o meu marido só, os meus filhos ficaram fora do quarto. E aí eu só via eles da porta, eu fiquei uns quinze dias assim. Aí, mesmo com o diagnóstico positivo, eu cozinhava com luva e com máscara. Meu marido nem saiu do quarto e ele não pegou, ficou negativo. (técnica de enfermagem, 38 anos)

Nos depoimentos, é possível notar que a grande preocupação dos participantes, no geral, era voltada para a higienização sem a preocupação com a qualidade do ar.

Mudanças ocorridas na prática profissional dos/as entrevistados/as

Com relação ao ambiente de trabalho e práticas profissionais dos entrevistados/as, foi possível observar alterações significativas, tanto gerais, relacionadas ao espaço dos hospitais e postos de saúde, quanto específicas, para cada categoria profissional. Segundo os/as profissionais entrevistados/as, os próprios ambientes físicos de hospitais e postos de saúde foram alterados, acarretando a necessidade de adaptação a novas áreas internas e alteração de fluxos.

Quanto ao trabalho, no geral, os/as entrevistados/as descreveram enfaticamente um aumento na carga de trabalho por conta da pandemia da covid-19, reconhecendo motivos de diferentes ordens: aumento na quantidade de pacientes, qualidade do agravo, mudanças na rotina, falta de profissionais, entre outros.

Então, de qualquer forma tem uma mudança na rotina, porque vem muita gente inexperiente para trabalhar; então, você também tem que ajudar essas pessoas novas que chegaram para trabalhar no covid. (enfermeira, 44 anos)

Como teve uma mudança de rotina bem grande, isso acaba influenciando um pouco no trabalho. Você chega mais cansado, desanimado. (enfermeira, 35 anos)

Destaca-se aqui uma diferença em relação à categoria do técnico de enfermagem, em que se observa que essa sobrecarga no trabalho é percebida por eles como uma decorrência da necessidade de realizar tarefas que eles entendem não serem suas.

Com o covid tudo mudou. Faço a triagem do paciente que chega com queixas [de covid], verificação dos sinais vitais, pressão arterial, temperatura, saturação e limpeza asséptica no ambiente de trabalho após o horário de saída [horário além da jornada habitual de trabalho]. E também, agora, estamos fazendo procedimentos que a gente sabe que seria uma exclusividade da enfermeira. Não é uma queixa, porque eu sei que é a realidade do SUS. (técnica enfermagem, 33 anos)

A sobrecarga se manifesta em vários aspectos relacionados ao cotidiano de trabalho de profissionais de saúde. Uma habilidade inerente ao seu processo de trabalho, principalmente no ambiente hospitalar, a paramentação e a desparamentação, recebeu novos significados e passou a ser carregada de medos e preocupações, deixando de ser um ato simples. Nesse contexto, não há diferenças entre as categorias.

[No hospital] estávamos preparados para uma guerra, tanto em termos de EPI como de espaço físico. Preparamos uma sala de paramentação isolada, só conseguia entrar na unidade quem passava por este setor. (enfermeiro, 41 anos)

O que torna o risco intermediário é atendermos pacientes ambulatoriais e demandas espontâneas. Você tem essa etapa de higienização, pré-exposição e pós-exposição, que se repete várias vezes durante o dia. (médico, 31 anos)

O pior momento é tirar os EPI. A gente não vê e pode sobrar alguma coisa e grudar na roupa, na máscara e sem querer contaminar os olhos, boca. (técnica de enfermagem, 56 anos)

Foi possível perceber, entretanto, que as categorias profissionais atribuíram essa sobrecarga a fatores diferentes: os médicos explicaram essa mudança pela gravidade dos doentes; os enfermeiros pelo acúmulo de funções, inclusão de treinamentos e elaboração de relatório para familiares; e os técnicos pelos dias extras de trabalho.

Entre as adaptações necessárias em decorrência da pandemia da covid-19, o trabalho remoto aumentou expressivamente e trouxe cenários não vivenciados em outros momentos. A incorporação da tecnologia como uma ferramenta de trabalho foi experenciada de forma diferente por cada categoria profissional. No caso de enfermeiros, as novas funções que acumularam e que já foram descritas anteriormente foram ligadas a novos usos da tecnologia. Já os técnicos de enfermagem citaram o “serviço operacional”. No caso dos médicos, o destaque foi para a teleconsulta e as restrições que essa modalidade de atendimento causou, em sua percepção. O fragmento que se segue ilustra as dificuldades para dar comunicados de óbitos para os familiares.

A questão do luto quando os pacientes morreram, os familiares não poderiam ver os pacientes mesmo pré-óbito. Muitas vezes a gente não conseguia deixar os pacientes serem vistos pelos familiares. (médico, 31 anos)

A capacitação sobre a covid-19 para profissionais de saúde foi um aspecto considerado bastante deficitário, isto é, não houve um processo sistematizado de educação permanente. A aquisição de conhecimento e habilidades técnicas ficou dependente das condições econômicas e de acesso das categorias aos meios científicos e recursos materiais, o que gerou desigualdades, particularmente evidenciada entre os técnicos de enfermagem.

No começo, a gente só teve a orientação da paramentação, mas acho que para todo mundo era novo. Então, a gente foi descobrindo juntos, falar que estávamos preparados no começo, não! (enfermeira, 44 anos)

Não recebi nenhuma capacitação formal. Teve aquela coisa de enfermeira explicando rapidamente, mas nada formal. (técnica de enfermagem, 33 anos)

As mudanças ocorridas pela pandemia no processo de trabalho aqui observadas já acarretam estresse. Porém, essa condição fica substantivamente exacerbada, quando se soma ao sofrimento cotidiano vivenciado pelos profissionais. A gravidade de casos, ocorrências de óbitos, o desconhecimento com relação à doença e a dificuldade de prever o progresso da pandemia geravam sentimentos negativos, como medo e tristeza.

A gente viu muita gente grave e muita gente contaminada; então era assustador. (enfermeira, 44 anos)

Além disso, os novos protocolos sanitários modificaram também as práticas no ambiente de trabalho que poderiam amenizar parte desse sofrimento. Os momentos de sociabilidade entre profissionais, como refeições conjuntas e momentos de descanso, deixaram de ocorrer, como citado principalmente por médicos. Para técnicos de enfermagem e enfermeiros, esses aspectos estão mais ligados à integração das equipes e às formas próximas de cuidado com os pacientes, como o toque e a proximidade.

Discussão

Interface mundo do trabalho e vida pessoal

Mudanças socioeconômicas ocorridas nas duas últimas décadas têm contribuído para integrar as esferas da vida pessoal e do trabalho, consideradas como dimensões essenciais na vida da maioria dos adultos. Essa articulação tem suscitado o interesse de diversos pesquisadores (10, 11) por dimensionar que questões ligadas a essas esferas impactam e modificam a vida de grande parte das pessoas, independentemente de nível educacional, sexo, renda/ocupação, religião ou raça. Atualmente, ainda que se compreenda que a vida pessoal e o trabalho se constituem como domínios mutuamente apoiadores, também se reconhece que ambos, a depender de suas respectivas pressões e exigências, podem gerar conflitos mutuamente incompatíveis. A partir de um modelo explicativo para esse fenômeno complexo, desenvolvido por Aguiar e colaboradores (12), construiu-se a base teórica pautada em duas características principais: a bidirecionalidade, tanto o trabalho pode prejudicar a vida pessoal quanto as demandas pessoais podem dificultar o cumprimento das atividades de trabalho, e a multidimensionalidade, em que o engajamento em um papel pode limitar o tempo disponível para o desempenho em outro(s) papel(is); aumentar a tensão, interferindo na habilidade de desempenhar outro(s) papel(is); e, ainda, encorajar comportamentos que sejam incompatíveis com aqueles desempenhados em outro(s) papel(is) (13).

Ainda que a perspectiva do conflito seja a predominante, há uma perspectiva mais recente que argumenta que trabalho e vida pessoal podem influenciar positivamente um ao outro de várias formas (14). Os pesquisadores entendem, no entanto, que essas duas perspectivas apontam para uma falsa dicotomia, uma vez que as interrelações trabalho e vida pessoal são produtos de uma complexa combinação de fatores individuais e contextuais (15). Tais situações podem ser vivenciadas de forma simultânea pelo mesmo indivíduo (16). Um dos fatores individuais de maior destaque nessas análises é o gênero, porém não há consenso sobre a percepção de como homens e mulheres avaliam se demandas familiares impediam ou prejudicavam o cumprimento das tarefas de trabalho. A exemplo da investigação de Mauno e Rantanen (17), que encontraram outras variáveis preditoras associadas com perspectivas positivas e conflituosas dessa interrelação, considerou-se oportuno, no contexto da pandemia da covid-19, buscar quais variáveis presentes na interface trabalho e vida pessoal podem estar interagindo e em que direção. Com relação a isso, os entrevistados descreveram diversas mudanças que impactaram a relação de trabalho e vida pessoal, entre elas a necessidade de novos hábitos de higiene, rotina e deslocamentos diários. A necessidade de alterações nas dinâmicas sociais e familiares foi destacada como negativa, pois exacerba as desigualdades sociais presentes no trabalho. Nota-se que a educação formal para o enfrentamento da covid-19 não atingiu de forma igualitária todas as categorias profissionais; embora os médicos também tenham destacado falhas no treinamento, a equipe de enfermagem referiu a ausência de treinamento para lidar com o vírus. A falta de apoio institucional ficou mais evidente nas falas da equipe de enfermagem, embora esta muitas vezes não tenha nomeado como “falta de apoio”, mas sim como estratégias possíveis para aquele momento. Apesar disso, a sobrecarga de trabalho e o medo de contaminação foram mais destacados pela equipe de enfermagem, o que pode evidenciar as desigualdades sociais.

Ênfase na higiene e negligência com a transmissão aérea

A mais recorrente narrativa de alterações na vida pessoal dos profissionais entrevistados ocorridas durante a pandemia da covid-19 se refere à alteração e/ou intensificação de hábitos de higiene, não só de higiene pessoal como também de higiene dos ambientes e de alimentos, com o objetivo de prevenir o contágio deste vírus. A definição de hábitos de higiene é abrangente e engloba atividades de cuidado com objetos, ambiente e de higiene pessoal. São cuidados básicos e indispensáveis que garantem a saúde, a qualidade de vida e o bem-estar da população.

Tais mudanças foram sendo incorporadas à medida que a informação sobre a forma de transmissão do coronavírus era mais amplamente divulgada e conhecida, como o contato da mão suja com os olhos, a boca ou o nariz, principais portas de entrada para o vírus no organismo.

Logo no início da pandemia, o Ministério da Saúde do Brasil divulgou recomendações sobre medidas de higiene e novos hábitos com a finalidade de evitar o contágio, como lavar as mãos (dedos, unhas, punho, palma e dorso) com frequência e, na ausência de sabão e água abundante, higienizar as mãos com álcool em gel e, de preferência, utilizar toalhas de papel para secá-las; não ir a locais e eventos onde possa haver aglomeração de pessoas; manter distância de pessoas e superfícies que possam estar contaminadas em locais públicos; cobrir o rosto quando tossir ou espirrar; não tocar o rosto sem lavar as mãos; limpar objetos e superfícies com álcool em gel; para a limpeza doméstica, recomenda-se a utilização dos produtos usuais, dando preferência para o uso da água sanitária (em uma solução de uma parte de água sanitária para nove partes de água) para desinfetar superfícies. Para a higienização das louças e roupas, recomenda-se a utilização de detergentes próprios para cada um dos casos. É imprescindível separar roupas e roupas de cama de pessoas infectadas para que seja feita a higienização à parte. Caso não haja a possibilidade de fazer a lavagem dessas roupas imediatamente, a recomendação é que elas sejam armazenadas em sacos de lixo plástico até que seja possível lavá-las (18).

Particularmente, com relação ao uso de máscara descartável, as recomendações naquele momento eram para que somente fossem usadas por profissionais da saúde, cuidadores de idosos, mães que estivessem amamentando e pessoas diagnosticadas com o coronavírus. Entretanto, a recomendação para o uso de máscara foi ampliada para pessoas do grupo de risco que representa a população mais vulnerável a complicações da doença (pessoas acima de 60 anos ou com doenças crônicas como diabetes e doenças cardiovasculares). Estas deveriam buscar o isolamento domiciliar e social de forma voluntária como meio de prevenção e, posteriormente, para a população em geral, em ambientes de trabalho, transporte público, na rua etc. Ainda que as evidências da transmissão do vírus por aerossóis tivessem vindo a público, alguns países inicialmente relutaram em adotar as medidas de distanciamento social e de circulação de pessoas. Entretanto, com o agravamento dos indicadores epidemiológicos, como aumento do número de casos e de mortes, esses países foram paulatinamente adotando tais medidas restritivas. O principal argumento para a adoção dessas medidas era o de ganhar tempo para a organização de recursos de assistência à saúde e de vigilância epidemiológica, de modo a controlar a covid-19. Particularmente no Brasil, onde a maior parte da população vivencia grandes desigualdades sociais e os recursos de atenção à saúde são cronicamente deficitários e desigualmente distribuídos, tais medidas foram adotadas tardiamente, mas, ainda assim, contribuíram para reduzir, em parte, o estrangulamento dos serviços de saúde, de modo a evitar ainda mais mortes decorrentes da falta de assistência aos casos graves da doença (19).

Desigualdades de gênero e ocupação profissional

O contexto da pandemia trouxe a necessidade de novos hábitos de autocuidado, e a incerteza trazida pela doença impactou os profissionais de modo geral, porém observa-se que essa questão traz novos olhares quando vista com a perspectiva de gênero. Os limites entre a vida profissional e pessoal atravessados pelo gênero configuram um desafio presente na sociedade, com a divisão social do trabalho, em que as mulheres são as principais responsáveis por cuidar, educar os filhos e cuidar dos trabalhos domésticos. A estruturação do núcleo familiar revela uma complexidade no que se refere ao gênero. As mulheres, que frequentemente se encontram sobrecarregadas, também são compelidas pela expectativa social de que conseguem se desdobrar, o que contribui para a sobrecarga emocional acentuada pela pandemia, já que tentam manter as atividades profissionais paralelamente às domésticas e, com frequência, tiveram que assumir a responsabilidade com a educação. Hirata e colaboradores (20) denominam “servidão voluntária” a naturalização de tais expectativas sociais que, durante a pandemia, ficaram ainda mais explícitas, principalmente no que se refere à rede de apoio. A rede de apoio familiar que sempre foi de grande importância para as mulheres e composta também de mulheres (tias, avós, por exemplo) mostrou-se fragmentada devido à necessidade de isolamento social.

Várias das narrativas aqui utilizadas trouxeram a experiência de ser profissional de saúde do gênero feminino diante da fragilização da rede de apoio familiar e institucional, bem como as novas habilidades de organização que foram exigidas com o fechamento das escolas. Os resultados apontaram a naturalização da organização dos serviços domésticos, em que as mulheres, apesar de sobrecarregadas, não identificaram na sobrecarga de trabalho as desigualdades de gênero. Nota-se que, embora as entrevistadas expressem cansaço físico, mental, emocional e extrema preocupação com os filhos, não houve relatos que destacassem a divisão sexual do trabalho. O trabalho do cuidado pode exemplificar a sinergia entre gênero, classe e raça, pois a tarefa do cuidado é ocupada majoritariamente por mulheres, pobres, negras e com status de imigração (21). Nesse sentido, os resultados ilustraram como as desigualdades de gênero são normalizadas, ainda hoje, na sociedade de modo que muitas mulheres não percebem suas nuances e as incorporam na rotina. Entretanto, a naturalização ou o não reconhecimento de tais desigualdades por parte das mulheres não exclui os efeitos nocivos sobre elas. Por exemplo, a desigualdade salarial em determinadas profissões compostas majoritariamente de mulheres apresenta-se como uma lente para o entendimento da forma heterogênea de como a pandemia ocorreu. Se considerarmos que a enfermagem é uma das categorias de saúde com salários mais baixos e que aqui expressaram maior fragilidade no que se refere à rede de apoio e sua manutenção, é possível reafirmar como as relações sociais são fortemente atravessadas por raça, classe e gênero, e como essas categorias estão vivenciam uma maior exposição ao vírus, maior contaminação e, ainda, maior sobrecarga na saúde mental.

Considerações finais

Os aspectos da vida profissional não se fazem sem as contradições presentes na sociedade que, por sua vez, orientam os aspectos da vida pessoal. Nesse sentido, o presente estudo trouxe um panorama dos impactos da covid-19 na vida pessoal e na vida profissional. A necessidade de reorganização das atividades diárias originadas pelo atendimento aos casos de covid-19 mostrou-se heterogênea entre as categorias profissionais, o que revela diferentes experiências conforme atuação e nível de formação.

Observa-se que as desigualdades sociais se expressam na vida profissional, uma vez que, se para os médicos, a preocupação é com a frequência com que se deve realizar algumas atividades ou novos hábitos de higiene, para os técnicos de enfermagem, essas ações refletem em aumento dos gastos com produtos de higiene.

Além disso, foi possível observar que as inquietações entre os profissionais também são expressões de desigualdades. Os de nível técnico expressaram mais medo e preocupação em contaminar os familiares e se apoiaram em medidas mais severas, como a utilização de máscaras em casa devido ao receio de contaminar outros familiares, muitos dos quais, naquele momento, tiveram que passar a residir no mesmo local por conta do desemprego.

Atitudes como “permanecer de máscara em casa e até dormir de máscara”, “construir um banheiro para evitar contaminação” podem dizer muito sobre a origem do medo.Os relatos mais extremos foram de profissionais de nível técnico, em sua maioria mulheres, e que eram não só principais responsáveis pela organização das rotinas diárias, como também principais responsáveis pelo sustento familiar.

A desestruturação das rotinas familiares e a reorganização com o intuito de evitar a contaminação foram lideradas por mulheres, mesmo entre os arranjos em que havia um companheiro. Como ilustração dessa questão, é interessante notar como as medidas de isolamento social foram encaminhadas pelas diferentes categorias profissionais. Enquanto médicos/as puderam levar seus filhos para viverem temporariamente em residências alternativas, destinadas a lazer, como chácaras e casas de praia, entre os/as técnicos/as de enfermagem foi necessário acolher parentes na mesma casa, por terem perdido seus empregos e não conseguirem mais pagar aluguel.

Dessa forma, fica evidenciado que, diante da fragmentação das redes de apoio, que em geral também tem como protagonistas as mulheres, e a ausência de novas possibilidades de minimizar a possibilidade de contaminação pela covid-19, a pandemia se expressou sob diferentes faces. Os dados trazidos aqui revelam que, embora a pandemia tenha afetado a sociedade como um todo, determinados grupos populacionais vivenciaram de maneira mais acentuada os seus efeitos, agravando as desigualdades sociais já existentes.

Por fim, há que se considerar uma condição limitante na apresentação das questões aqui abordadas com relação ao número de sujeitos entrevistados. Todavia, entendemos que tal fato não traga prejuízo significativo na problematização, pois traz para o debate dimensões particulares locorregionais, que serão posteriormente ampliadas com trabalhos dos outros centros participantes desta pesquisa.

Referências

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21. Hirata H. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Revista Tecnologia e Sociedade. 2010;6(11):1-7.

Notas

* Artículo de investigación.

Autor notes

* School of Public Health and Tropical Medicine da Tulane University, departamento Global Community Health and Behavioral Science, Center for Global Health Equity, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e do Programa Fulbright

a Autora de correspondencia. Correo electrónico: fabiana_albino2014@hotmail.com

Informação adicional

Cómo citar este artículo: Fraga, F.A., Veras, M.A.S.M., Tambucci, Y.B., Bassichetto, K.C., Vaccarezza, G.F., Barros, D.D., Gonzalez, J.L.G., Inoue, C.A., Paula, L.G., Rocha, F., Barros, C., Moura, F.D., Martelli, M.T., Albuquerque, M.F.P.M., Kerr, L., Lima, L.N.C., Cruz, L.N., Kendall, C., y Carneiro Júnior, N. (2022). Mudanças pessoais e profissionais a partir da pandemia da covid-19: desigualdades sociais vivenciadas por profissionais da saúde em São Paulo, Brasil. Gerencia Y Políticas De Salud, 21. https://doi.org/10.11144/Javeriana.rgps21.mppp

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