Tecnologia 3D para ações de salvaguarda do patrimônio cultural: estudo de caso, reprodução das calçadas em mosaico à portuguesa de Porto Alegre (Brasil) em chocolate*

3D Technology for Actions to Safeguard Cultural Heritage: Study Case, Reproduction in Chocolate of the Portuguese Mosaic Roads of Porto Alegre (Brazil)

Tecnología 3D para acciones de salvaguarda del patrimonio cultural: estudio de caso, reproducción en chocolate de las calzadas en mosaico portugués de Porto Alegre (Brasil)

Apuntes: Revista de Estudios sobre Patrimonio Cultural, vol. 33, 2020

Pontificia Universidad Javeriana

Adriana Bolaños-Mora a

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil


Maria Carolina Fillmann

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil


Fábio Pinto da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil


Recepção: 08 Outubro 2018

Aprovação: 30 Janeiro 2019

Publicação: 25 Novembro 2020

Resumo: O objetivo primeiro deste artigo é o de ressaltar a importância de preservação do patrimônio cultural e o quanto a tecnologia 3D de escaneamento e digitalização podem contribuir para a pesquisa, produção e reprodução de produtos gastronômicos desta razão. Ainda, este estudo pretende reiterar a atual discussão em torno dos conhecimentos e das práticas associadas ao ato de comer, integradas à disciplina do design e seu modelo de processo, combinadas ao patrimônio e a sua necessidade de conhecimento, percepção por meio dos habitantes das cidades e preservação. Por fazer parte da história de Porto Alegre e por passarem, em sua maior parte, despercebida dos habitantes, as calçadas em mosaico à portuguesa tornam-se objeto de pesquisa deste artigo. A revitalização do patrimônio através da tecnologia 3D sugere uma nova materialização para informar e conscientizar.

A tecnologia ajuda sendo um meio que permite que imagens visuais, às vezes transitórias, tenham um novo registro, o que facilita a conexão com nossos outros sentidos. Portanto, carga de sensações não só na memória, mas também o toque, o cheiro e o paladar, passando do imaginário para o campo tangível. Então, mudar a paisagem das calçadas à Portuguesa (transitadas, desgastadas e até mesmo ignoradas) para calçadas em uma barra de chocolate, não só as aproxima das pessoas, mas permite tocá-las, julgá-las, apreciá-las muito mais de perto e até comê-las. Assim, a divulgação e ressignificação potencializam este patrimônio. O patrimônio é um legado que só tem valor quando se torna compreensível.

Palavras-chave:patrimônio cultural, mosaico à portuguesa, chocolate, tecnologia 3D.

Abstract: One of the objectives of this article is to highlight the importance of safeguarding cultural heritage and how 3D scanner technology and digitization can contribute to the research, production and reproduction of gastronomic products. This study aims to reiterate the current discussion about the knowledge and practices associated with the act of eating, integrated into the design discipline and its process model, combined with heritage, its need for knowledge and preservation through the stimulation of perception of the inhabitants of the cities. For being part of the history of Porto Alegre, Brazil and for going largely unnoticed by people; Portuguese mosaic sidewalks become a research topic in this article. Revitalizing heritage through 3D technology suggests a new materialization to inform and raise awareness. Technology helps by being a means that allows visual images, sometimes transient, have a new record, which facilitates the connection with our other senses. Therefore, load of sensations not only memory, but also touch, smell and taste, passing from the imaginary to the tangible field. Therefore, changing the landscape of Portuguese mosaic pavements on the ground (stepped, worn and even ignored) for the sidewalks in a chocolate bar, is not only closer to people, but allows them to touch them, taste them, appreciate them much more. Close and even eat them. In this way, the dissemination and resignification of this heritage is potentiated. Heritage is an inheritance that only acquires value when it becomes comprehensible.

Keywords: cultural heritage, Portuguese mosaic, chocolate, technology 3D.

Resumen: Uno de los objetivos de este artículo es resaltar la importancia de salvaguardar el patrimonio cultural y cómo la tecnología del escáner 3D y la digitalización pueden contribuir a la investigación, producción y reproducción de productos gastronómicos. El objetivo de este estudio es recapitular la discusión actual sobre conocimientos y prácticas asociados al acto de comer, integrada a la disciplina del diseño y su modelo de proceso, combinando esto con el patrimonio, su necesidad de conocimiento y conservación a través de la estimulación de la percepción en los habitantes de las ciudades. Siendo parte de la historia de Porto Alegre (Brasil) y habiendo pasado bastante desapercibidos entre la gente, las aceras con mosaico portugués se convierten en tema de investigación de este artículo. Vivificar el patrimonio mediante la tecnología 3D sugiere una nueva materialización para informar y crear conciencia. La tecnología ayuda porque es un medio que permite que las imágenes visuales, a veces pasajeras, tengan un nuevo registro, lo que facilita la conexión con otros sentidos. Por consiguiente, reúne una carga de sensaciones que no es sólo memoria, sino también el tacto, el olfato y el gusto, pasando de lo imaginario a lo tangible. Por consiguiente, cambiar el paisaje de las calzadas con mosaico portugués en ese suelo (pisado, gastado e incluso ignorado) por aceras en una barra de chocolate, no sólo es acercarlas a la gente, sino que les permite tocarlas, degustarlas, apreciarlas mucho más. Acercarse e incluso comerlas. De este modo, se potencia la difusión y resignificación de este patrimonio. El patrimonio es una herencia que adquiere valor sólo cuando se vuelve asimilable.

Palabras clave: patrimonio cultural, mosaico portugués, chocolate, tecnología 3D.






Introdução

Na atualidade, conforme Serra Rotés e Fernández Cervantes (2007), grandes segmentos da sociedade ocidental identificam patrimônio com monumentos e monumentos com objetos e edifícios de grande valor artístico. Deixando de lado outras manifestações que, por desconhecimento, podem se perder ao passar do tempo por não ter quem as reconheça e valorize como tal. De modo que tentar definir o quê é patrimônio não é uma tarefa fácil. Etimologicamente, entendem-se como patrimônio os bens herdados ou adquiridos por uma pessoa ou instituição. Porém toda manifestação cultural é de grande importância, pois pode evocar a memória e despertar lembranças de um momento outrora vivido.

Para Della Giustina, e Selau (2009) a cultura de uma região se manifesta de muitas formas e aspectos. Por conseguinte é importante a preservação deste saber fazer, a manutenção e transmissão continuada do conhecimento adquirido pelos povos, pois assim fortalece a identidade, a cultura e as práticas de seu patrimônio cultural material e imaterial. Ditas manifestações culturais sofrem ao decorrer do tempo modificações seja pelas inovações tecnológicas, seja pelas mudanças no seu contexto com relação a costumes e gostos das pessoas, gerando por vezes até a “descaracterização das manifestações originais”.

Ou seja, a complexidade do patrimônio não só radica em salvaguardar1 ele, mas também, como afirman De Bastiani e Pupo (2015), em compreender as mudanças constantes e permanentes da sociedade contemporânea, que rompem a continuidade da tradição entre as gerações e a preservação da memória. Fato esse que pode gerar pouco ou nenhum sentido de pertencimento e, como consequência, não transmitir às pessoas de determinada comunidade o sentimento de fazer parte dahistória dela.

Em conseqüência, se identifica como ponto de partida deste estudo, a salvaguardados mosaicos à portuguesa, patrimônio cultural da sociedade brasileira, através do auxílio da tecnologia 3D e a junção de dito patrimônio feito chocolate. Assim que por meio da digitalização, usinagem CNC e termoformagem, a tecnologia nos será capaz de transformar as calçadas da cidade de Porto Alegre, que muitas vezes passam despercebidas, em barras de chocolate comemorativas, o que lhesdáum novo e diferente jeito de materialização para revitalizar a identificação, promoção e divulgação de este legado Português, em algo mais tangível e gostoso.

Este estudo se origina a partir de uma atividade didática da disciplina “Tecnologia 3D para fabricação” do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e pretende ressaltar não apenas as vantagens da tecnologia 3D, mas também as oportunidades que surgem da junção criativa de: mosaico à portuguesa e chocolate, sendo ambos os patrimônios materiais e imateriais respectivamente, dado que como designers estarmos totalmente de acordo com Hernández Cardona (2007) quando afirma que o patrimônio no século XXI, é um espaço da imaginação.

Caminhando numa obra de arte

É evidente que os objetos do passado são veículos de relacionamento e comunicação entre as pessoas que os produziram e os utilizaram e seus atuais destinatários. Esses objetos também são portadores de mensagens (Serra Rotés e Fernández Cervantes, 2007).

Como acontece, por exemplo, coma estética da arquitetura e ideais sociais na era da República colombiana que data dos anos (1848-1940), na qual a Colômbia de acordo com Jiménez Charris e Llanos Díaz (2015)experimentou eventos e processos significativos de mudanças desde o ponto de vista político, econômico, ideológico, social, cultural e tecnológico, e que “se materializaram em uma arquitetura singular; evidenciado numa mudança radical na estética, promovida pelo desejo de progresso e modernidade e para isso a adoção de novos estilos para denotar alto nível sociocultural, poder aquisitivo, e certa exclusividade” (Jiménez Charris e Llanos Díaz, 2015).

O que se evidenciou na arquitetura, e especialmente nos pisos hidráulicos do bairro El Prado de Barranquilla – Colômbia. E que graças ao estudo criterioso, de Jiménez Charris e Llanos Díaz (2015) o objetivo é fornecer uma ferramenta para documentação, conservação e valorização da produção tradicional, decorativa e artesanal de pisos hidráulicos como parte do patrimônio arquitetônico, artístico, gráfico e cultural de dita cidade.

Esses pisos hidráulicos, no contexto de Barranquilla, trazem consigo em seus desenhos, uma parte importante das diferentes culturas que se instalaram em esta cidade. “Esses novos colonos, ao entrarem, também trazem suas crenças e estilos de vida, e sobre os azulejos desse bairro poderiam identificar a origem e os diversos caminhos da história, dando testemunho do que os habitantes da sociedade queriam naquele tempo” (Jiménez Charris e Llanos Díaz, 2015).

Do mesmo modo queo mosaico á portuguesa, no contexto brasileiro, pode evidenciar que uma cidade “é muito mais que o somatório de lugares e eventos: são as particularidades de suas coisas e de sua gente que formam sua alma e que só um olhar atento consegue perceber” (Cattani et al., 2007).

O livro Olhe por onde você anda: calçadas de Porto Alegre (Cattani et al., 2007) serve como referencial inicial da importância de ver além das calçadas, porque o cotidiano embota o olhar, impede que nele se vejam os restos de beleza do passado que nele ficaram. Segundo o arquiteto e pesquisador em design Airton Cattani, o pensamento, quando se sai de casa todos os dias, se dirige para o tempo e o espaço relacionados ao trabalho, deixando, portanto de lado cores, texturas, formas e até a própria essência dessa cidade em que se mora.

Deste modo, a primeira civilização que utiliza o mosaico á portuguesa o qual estava conformado por pedra caliça (branca) e basalto (preta), organizados segundo modelos policromáticos é a Grega. Os gregos utilizam a técnica principalmente na representação de deidades femininas e de musas, palavra esta da qual se deriva o nome moseicon (mosaico). Não obstante, é a civilização romana a que desenvolve e usa profusamente a técnica do mosaico, o que revela a sua vinculação com a arte, o luxo e a sua nobre posição social (Monterroso et al., 2010).

Porém, segundo Eduardo Yázigi (1996) Historiador e Doutor em Planejamento Urbano e Regional, há uma notável diferença entre o mosaico romano e o mosaico à portuguesa, principalmente devido ao modelo que dá origem à forma das pedras usadas para tal fim. No mosaico romano todas as peças têm a mesma forma, enquanto no mosaico à portuguesa as pedras são diferentes e a sua forma oscila entre o triângulo, o quadrado, o retângulo ou o hexágono. Esta diversidade deve-se ao jeito de trabalhar cada peça, que passavam por adaptação in locopara cada um dos patrões dos diversos desenhos (Monterroso et al., 2010).

De acordo com Vargas et al. (2001), a expressão pedra portuguesa representa fragmentos subcúbicos de rochas de tamanho aproximado de oito cm utilizados geralmente em calçamento decorativo. Na maioria dos casos, são empregadas as rochas de duas cores, preta e branca (figura 1) e, eventualmente, a de cor vermelha.

Porção de uma das Calçadas da Praça Matriz de Porto Alegre
Figura 1.
Porção de uma das Calçadas da Praça Matriz de Porto Alegre


Fonte: elaboração própria

Tomando por base as referências históricas, o mosaico à portuguesa aparece pela primeira vez a meados do século XIX, no calçamento do castelo São Jorge de Lisboa. Logo depois, a técnica é usada na Praça de Rossio, local emblemático da capital portuguesa, em alusão a antiga passagem do rio Tajo pela cidade (Monterroso et al., 2010). A capital portuguesa, Lisboa, está cheia de desenhos em preto e branco, como tatuagens urbanas, relacionadas ao mar. Deve-se a isso que a calçada em mosaico à portuguesa forme parte da identidade de Lisboa, servindo como marca da cidade. Por ter como costume o uso dessas calçadas, Portugal adotou internacionalmente esse sistema nas colônias as quais colonizou. Empregadas em praças, parques, calçadas, pátios, etc. a pedra portuguesa e sua arte contribuiu para a singularidade de cada povo, mesmo que em todos os países ela represente um símbolo da presença portuguesa (Remesar e Lozano, 2014; Rey, 2015).

No Brasil, o mosaico foi usado pela primeira vez em Manaus, em 1905, e logo depois em Belo Horizonte. Na sequência veio Rio de Janeiro, entre outras. A pedra portuguesa, portanto, foi um dos materiais mais populares do século XX, usada para paisagismo, pela sua flexibilidade de montagem, baixo custo e valor histórico artístico (Remesar e Lozano, 2014; Rey, 2015).

Por sua frequente presença também em espaços representativos do imaginário Brasileiro, nos anos setenta, Burle Marx, paisagista brasileiro, faz uma releitura das ondas portuguesas adaptando seu desenho às novas proporções da calçada no Brasil, e projeta, na cidade do Rio de Janeiro, a Avenida Atlântica, depois a orla do Leblon, Ipanema e o Largo Carioca. Desde então, o paisagista brasileiro traslada sua obra de arte pictórica aos espaços públicos das cidades Brasileiras, contribuindo para a democratização cultura. O que permitiu, por fim, que o cidadão brasileiro pudesse caminhar diariamente sobre uma obra de arte (Rey, 2015).

Já em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul (entre os anos 1919–1940) a área central da cidade era vista pelos republicanos no poder como um “cartão de visitas” para as demais capitais e estados brasileiros. A Praça da Matriz, no centro da cidade, sede dos poderes: executivo e legislativo estaduais deveriam receber atenção especial no sentido de dar a ver a modernização e o progresso econômico recebido pelo estado.

Conforme a Possamai (2009), a remodelação do centro de Porto Alegre já estava prevista no Plano de Melhoramentos no ano 1914 etrês princípios norteavam as preocupações urbanísticas contidas nesse plano: a higiene, o trânsito e o embelezamento. Reeditado em 1926, o plano foi orientador das reformas urbanas iniciadas pelo Intendente Otavio Rocha e continuadas por seu sucessor Alberto Bins. No qual, ruas foram abertas, adequando-se ao traçado do porto moderno – cujo cais da Praça da Alfândega havia sido inaugurado em 1922 e organizando a atividade produtiva e comercial na direção dos bairros industriais.

O centro de Porto Alegre, até então, era um emaranhado de ruas estreitas, subidas e descidas íngremes, que atravessavam as três vias principais abertas no período colonial e que vinham da ponta do promontório até o alto da colina, onde ficava a Santa Casa de Misericórdia. “Essas ruas estreitas eram habitadas pelos pobres da cidade, e eram consideradas áreas perigosas” (Possamai, 2009).

Daí que a abertura de muitas dessas ruas, nesse sentido, foi considerada pelo poder público como medida saneadora. Além da circulação e da higiene, o embelezamento foi buscado através das remodelações de praças, criação de jardins e arborização das vias. A Praça da Alfândega e a Praça da Matriz, localizadas no centro, foram as que mais receberam atenção. As calçadas receberam pedras portuguesas em substituição aos lajedos coloniais. Para completar o cenário, a iluminação elétrica Nova Lux deu luz aos novos espaços reformados ao gosto de uma estética em consonância com os padrões da tradição urbana luso-brasileira (Possamai, 2009).

Cadê os mestres calceteiros?

Por ter como característica principal a técnica da disposição das pedras de maneira manual, o mosaico à portuguesa requisitava conhecimento amplo sobre essa arte de união das pequenas partes. E só quem era capaz de dominar essa técnica eram os chamados mestres calceteiros. A técnica do calçamento em pedras portuguesas requer conhecimentos como: preparação das pedras e dos instrumentos corretos para este fim, preparação do solo (pó de areia, dimensão das camadas para colocação das pedras), simulação da execução de uma calçada, restauração de calçada e criação de calçada, entre outras.

No entanto, as difíceis condições de trabalho e a escassa remuneração e falta de prestígio, condenaram aos calceteiros a sua desaparição (Rey, 2015). Mostra disso é que, em março de 2011, a Prefeitura do Rio de Janeiro, em nome de seu secretário municipal de Conservação, realizou um curso para os interessados em aprender este ofício. Segundo o próprio secretário “o Rio perdeu a capacidade de assentar corretamente as pedras portuguesas. Só temos hoje oito calceteiros profissionais na prefeitura. Para resolver isso, estamos trazendo cinco mestres calceteiros de Portugal para formar uma nova geração de calceteiros no Rio” (“Prefeitura do Rio”, 2011).

A aparição de novas práticas como a utilização de pedras polidas e a substituição da brita pelo cimento como aglutinante (Monterroso et al., 2010), afasta as novas calçadas da técnica original, ocorrendo no desvirtuamento desta herança portuguesa e condenando a sua desaparição. Além disso, as suas características particulares como flexibilidade, permeabilidade, sustentabilidade, estabilidade e conforto térmico que se atribuem tanto ao material quanto à técnica empregada nas calçadas com mosaico à portuguesa, junto com o seu caráter funcional e a sua dimensão estética (Rey, 2015), desaparecem com as novas técnicas aplicadas, evidenciando a importância existente na conservação desta importante tradição.

No entanto, deve-se notar que essa ruptura na continuidade da tradição, precisa compreender as mudanças constantes da sociedade de geração a geração. Mas que ainda no meio dessa renovação ou releitura do patrimônio, a identificação do objeto como bem cultural pode ser o primeiro passo para garantir uma posterior valorização e revitalização deste patrimônio em seus diferentes aspectos. Pois condições atuais, por citar somente um exemplo: como é a acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida, pode ser um dos motivos das transformações do mosaico à portuguesa. Conforme Serra Rotés e Fernández Cervantes (2007), o conceito ou representação social de um bem cultural é mais importante do que o objeto em si mesmo, desde que seja para a preservação da memória.

Patrimônio feito de chocolate

A escolha do chocolate para este estudo, como suporte das calçadas em mosaico àportuguesa, surge de primeira mão, como parte de um processo criativo. E foi apenas após a sua escolha que a pesquisa demonstrou e apontou o papel do chocolate como patrimônio cultural imaterial para o sul do Brasil.

Entende-se que para a Unesco (2003) o patrimônio cultural imaterial abrangepráticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas de determinada cultura, que junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais, os indivíduos reconhecem como parte do seu patrimônio cultural. Transmitido ele de geração em geração, “é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e sua história com um sentido de identidade e continuidade e promovendo o respeito diversidade cultural e da criatividade humana” (Unesco, 2003).

As primeiras fábricas de chocolate no Brasil foram criadas finais entre o século XIX e início do século XX por imigrantes europeus. Segundo Brasil e Modenesi (2011), a pioneira foi a Chocolate Neugebauer, instalada, em 1891, na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Logo em seguida outras começaram a surgir no Brasil, como a Lacta, fundada em 1912; a Nestlé, em 1921, ambas de origem suíça; a Kopenhagen, em 1929, de origem Letônia, e instaladas em São Paulo (De Vargas, 2013).

Porém a cidade de Gramado2,no Rio Grande do Sul, listada pelo Ministério do Turismo entre os destinos indutores do turismo no Brasil e apresentada pela sua Prefeitura Municipal como o terceiro destino mais desejado do Brasil, é resultado de esforços locais contínuos ao longo do século XX para atrair visitantes (De Vargas e Gastal, 2015).

Gramado conforme o estudo de De Vargas e Gastal (2015), não foge à regra ao não apresentar textos de maior consistência acadêmica no registro do percurso histórico que a elevou a esse patamar, mas é uma cidade turística, desde seus primórdios, consolidando-se nos anos 1920-1930, pelas suas qualidades paisagísticas, arquitetônicas, climáticas e gastronômicas. E em sua etapa mais recente, o chocolate ganhou centralidade nesse processo, pois foi a partir dos anos 1970, a iniciativa então ousada e isolada de um empresário de instalar uma fábrica de chocolate caseiro na cidade deflagrou novo momento no processo, com fortes implicações no turismo e na economia local. “Os negócios envolvendo o chocolate começaram a nascer em 1975, ano em que Jayme Prawer empresário polonês e sua esposa visitam Bariloche, na Argentina, e conheceram, entre as atrações da cidade, o chocolate caseiro”, implantando assim no município a primeira fábrica do produto (De Vargas e Gastal, 2015).

Foi seguida, então, por empresas como Lugano (1976), Planalto (1977), Caracol (em 1982, em Canela, mas se instalando em Gramado em 1999); Chocolate Gramadense (1982); Do Parke (1986); Florybal (1991); Canto Doce (1997); Don Morello (2005); Chocolataria Gramado (2010), entre outras (DeVargas e Gastal, 2015).

Em consequência, são mais de cem anos após a criação da primeira fábrica chocolateira no Brasil, e mais quarenta anos após a primeira em Gramado, permite-se entender que o sucesso e o destaque da cidade no país não aconteceram por acaso. Gramado torna-se a ‘terra do chocolate caseiro’, refletindo diretamente no turismo à medida que as pessoas compram e consome esse produto em suas viagens, o que reforça a identificação do produto com Gramadoe por extensão com Brasil, tornando o chocolate em um símbolo da cultura local e internacional do país (De Vargas e Gastal, 2015).

Dentro deste contexto, os saberes culinários: as receitas herdadas, pratos tradicionais, produtos e ingredientes locais, especiarias e variedades nativas, práticas alimentares cotidianas e comidas festivas, de acordo com Menasche (2011), evidenciam as relações sociais e visões específicas do mundo. O sabor e o saber fazer qualificam a culinária como patrimônio imaterial de uma cultura, como manifestação da identidade, da memória e da história numa atividade considerada como corriqueira, mas carrega a percepção e o entendimento como parte do passado (Della Giustina e Selau, 2009). Dessa forma, um alimento como o chocolate pode evocar a memória e despertar lembranças de momentos outrora vividos.

Já do ponto de vista do Design, também se juntam esforços para resgatar ações que melhorem a relação das pessoas com os alimentos e com a comida nos seus mais diversos sentidos e aspectos, esforço esse conhecido como Food Design. Essas ações podem se referir tanto ao design do produto comestível como a seu contexto, incluindo objetos, espaços, processos industriais, entre outros, que são intrínsecos a produção de alimentos e bebidas (Red Latinoamericana de Food Design, 2015).

Por conseguinte, e de acordo com o nosso objetivo, pensar em fazer chocolates comemorativos do mosaico à portuguesa revitaliza duas manifestações do patrimônio cultural imaterial e material Brasileiro. Que conforme Della Giustina e Selau (2009) a preservação deste saber fazer, a manutenção e a transmissão continuada do conhecimento adquirido pelos povos, é importante, pois assim fortalece a identidade, a cultura e as práticas de seu patrimônio cultural.

Tecnologia 3D para patrimônio

Revitalizar o patrimônio por meio da tecnologia 3D sugere uma nova materialização para informar e conscientizar (De Bastiani e Pupo, 2015). A tecnologia auxilia por ser um meio que possibilita que as imagens visuais, às vezes passageiras, tenham um novo registro, que facilite a conexão com nossos outros sentidos. Portanto, carrega de sensações não só a memória, mas também o tato, o olfato e o paladar, passando do imaginário para o campo tangível. Daí que mudar o cenário das calçadas em mosaico à portuguesa, do chão (transitadas, desgastadas e até ignoradas), para calçadas detalhadas em uma barra de chocolate, não só as aproxima das pessoas como permite tocá-las, mas também degustá-las, analisar com mais proximidade e comê-las. Dessa forma, se potencializa a divulgação e ressignificação (Unesco, 2003) destes patrimônios, já que, conforme conceitos vistos anteriormente, o patrimônio é uma herança que só adquire valor quando se transforma em compreensível (Roca e De Aramburu, 2007).

Digitalização Tridimensional da calçada

De acordo com Da Silva et al. (2010), a alta competitividade e a busca por novas tecnologias que diferenciem os produtos industriais indicam um ambiente propício para a utilização de novas técnicas como fator de inovação em bens de consumo (Da Silva et al., 2010). Mas além dos bens de consumo, hoje estas técnicas favorecem também a renovação, valorização e apropriação do patrimônio, necessitado de visibilidade para reforçar a memória e a identidade de qualquer povo.

De acordo com Da Silva (2011), a digitalização tridimensional, é utilizada para capturar dados de objetos em 3D e auxiliada por softwares que permitem obter com grande precisão curvas, detalhes e texturas de superfícies. O que facilita sobremaneira o desenvolvimento de produtos personalizados. E para estas aplicações, normalmente, são utilizados sistemas de alta tecnologia, como o Scanner 3D e sistemas CAD (ComputerAided Design- Design Assistido por Computador) /CAE (ComputerAided Engineering-Engenharia Assistida por Computador)/CAM (Computer Aided Manufacturing - Manufatura Assistida por Computador).

Sendo assim, como parte do experimento para fazer tangíveis as calçadas com mosaicos à portuguesa no formato de barras de chocolate, recorreu-se à tecnologia 3D em três diferentes ferramentas, dividindo o trabalho em cinco etapas: 1) visitas aos espaços públicos de Porto Alegre, na área central, para análise e seleção das calçadas; 2) digitalização das calçadas por sistema de triangulação utilizando o scanner móvel Artec 3D; 3) pós-processamentos dos dados digitalizados e pré-processamento dos arquivos para a fabricação digital, utilizando o software Geomagic, buscando enfatizar no relevo as características determinantes para o reconhecimento do tato e visual das calçadas; 4) Fabricação de modelo de calçada em laboratório através da usinagem CNC; 5) utilização dos modelos usinados para geração de matriz dos chocolates em acetato por meio de termoformagem. O detalhamento das técnicas é de fundamental importância para compreensão de como o patrimônio pode ser preservado com o uso de tecnologia 3D.

Materiais e métodos

O estudo de caso consistiu na fabricação de barras de chocolate comemorativas das calçadas em mosaico à portuguesa, encontradas na cidade de Porto Alegre. Além da pesquisa bibliográfica, as etapas essenciais para a fabricação dos chocolates como modo de preservação do patrimônio da cidade, serão a seguir detalhadas.

Preparação dos arquivos

O primeiro passo para a geração dos modelos das calçadas em laboratório foi o processo de digitalização 3D em campo, utilizando o scanner móvel Artec 3D, que funciona por meio da medição de triangulação por um sistema dos eixos X, Y e Z.

Calçada da Praça da Matriz de Porto Alegre sendo digitalizada
Figura 2.
Calçada da Praça da Matriz de Porto Alegre sendo digitalizada


Fonte: elaboração própria

Para preparar os arquivos obtidos na digitalização por meio do Scanner, é preciso o modelamento computacional dos mesmos. De acordo com Da Silva (2011) a digitalização tridimensional (a localização de pontos no espaço X, Y e Z) normalmente requer algum tipo de pós-processamento (filtro, montagem, suavizado, geração da malha, etc.) para o qual existem softwares especializados para realizar estas operações.

Ajustes nos arquivos digitalizados por meio do software Geomagic 3D
Figura 3.
Ajustes nos arquivos digitalizados por meio do software Geomagic 3D


Fonte: elaboração própria

No experimento em questão, por se tratar da digitalização de calçadas que, mesmo com o uso do mosaico acaba constituindo um terreno plano, foi necessária manipulação dos eixos X e Y e Z de formas diferentes, no intuito de ressaltar o desenho formados pela disposição das pedras portuguesas. Sendo assim, X e Y se mantiveram em um mesmo percentual e Z foi trabalhado em maior relevo (30%), para ressaltar o detalhamento das pedras. Também, como as calçadas compõem diferentes desenhos, para o modelo 01 utilizou-se de extrusão de 2 mm para deixar o desenho do arabesco principal (pedras pretas) destacado do layout de fundo da calçada. Já, para o segundo modelo, tal extrusão não foi necessária.

Por último, foi preciso dar um corte no elemento de melhor reprodução da calçada, já que, por seu tamanho original (acima de 165 mm), não seria possível reduzir todo o motivo da calçada em apenas uma barra de chocolate, pois desta forma perderia o detalhamento entre pedras para o momento da usinagem. Durante todo o tempo de preparo do arquivo digitalizado buscou-se controlar o distanciamento entre as pedras do mosaico à portuguesa a serem replicados ao chocolate, para que não diminuíssem da medida de 1 mm, com vistas a uma adequada reprodução na usinagem CNC com as ferramentas que estavam a nossa disposição para o experimento.

Ajustes, recorte e malha de pontos das calçadas no Geomagic 3D
Figura 4.
Ajustes, recorte e malha de pontos das calçadas no Geomagic 3D


Fonte: elaboração própria

Por fim, após correção das malhas de pontos, ajustes das intersecções das imagens geradas pelo scanner, melhoramento dos arquivos, ajustes de proporções entre os eixos e extrusão de detalhes, acabou-se gerando dois modelos 3D de calçadas históricas de Porto Alegre com o uso de mosaico à portuguesa para a reprodução em barras de chocolate. Para a escolha dos dois modelos prevaleceu duas diferenças na disposição das pedras, sendo que no primeiro modelo as pedras em preto e branco são dispostas sempre da mesma maneira e, no segundo modelo, a própria disposição das peças determina os limites dos desenhos. Com essas etapas e decisões definidas, estavam prontos os arquivos para a etapa seguinte, de geração do modelo por meio da usinagem CNC.

Usinagem CNC

A usinagem abrange uma gama de processos de fabricação utilizados para dar forma a um componente através da remoção de material....Um dos processos de usinagem mais utilizados é o fresamento, o qual consiste em uma ferramenta cortante que faz um movimento de rotação e movimentos de translação sobre a peça (Da Silva, 2011).

A fresadora possui algumas restrições geométricas, como, por exemplo, permitir somente a remoção de material que pode ser alcançado pela ferramenta, considerações que são controladas por computador, daí a definição de CNC – Computer Numeric Control.

No experimento em questão, utilizou-se de usinagem CNC por equipamento instalado nas dependências do Laboratório de Design e Seleção de Materiais (LdSM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os dois moldes de calçadas foram usinados em resina de poliuretano para fabricação de materiais do tipo Cibatool. Para a usinagem, foi necessário o pós-processamento dos arquivos anteriormente trabalhados, de modo a definir o percurso exato da usinagem, privilegiando-se o acabamento final e a precisão no detalhamento das pedras. Trabalhou-se com fresas de diâmetro reduzido para dar o nível do detalhamento requerido e para que as fresas pudessem desbastar de forma precisa o espaço entre as pedras do mosaico à portuguesa.

Usinagem CNC e geração de molde em resina do tipo Cibatool
Figura 5.
Usinagem CNC e geração de molde em resina do tipo Cibatool


Fonte: elaboração própria

Com a finalização da usinagem das peças de Cibatool, foi possível obter os moldes para a etapa seguinte de formação das matrizes dos chocolates por meio da termoformagem.

Termoformagem

A termoformagem é um processo que pode ter variantes dependendo da maquina utilizada, mas cabe distinguir as três etapas fundamentais que são: a) aquecimento de uma folha termoplástica (que neste caso foi feito o aquecimento de acetato por radiação de calor), b) amolecimento da folha termoplástica, de modo que pode ser adaptada à forma de um molde ou matriz, por ação de vácuo ou por um processo de pressão, c) esfriamento do produto, que começa quando o termoplástico entra em contato com o molde e pode ser esfriado por meio de ventilador ou temperatura ambiente e termina quando a temperatura é adequada para desmoldar a peça sem deformá-la.

O termoformado mecânico, é uns dos processos mais estendido, devido a sua versatilidade e economia com relação a outros processos por pressão ou mecânicos. E consiste em segurar a lamina de acetato, na estrutura da máquina e esquentá-lo até chegar ao estado elástico, para colocá-lo sobre o molde e que se adapte a sua geometria. Ao qual se lhe eliminao ar por meio de pressão a vácuo, que empurra a lâmina contra a superfície do molde ou matriz. Uma vez resfriado se extrai a peça.

Incidência do vácuo sobre lâmina de PP irradiada por calor
Figura 6.
Incidência do vácuo sobre lâmina de PP irradiada por calor


Fonte: elaboração própria

No estudo de caso em questão, após se obter os moldes finalizados da usinagem, na resina de poliuretano, submeteu-se sua aplicação a termoformagem. Detalhe importante na melhor obtenção do resultado desejado é o uso de afastadores do molde da base da máquina de termoformagem, para que o vácuo possa passar. Isso feito posiciona-se a peça de molde ao centro da máquina e se utiliza da técnica de radiação de calor e amolecimento do acetato, conforme tempo determinado, para a obtenção da matriz.

Termoformagem da matriz sendo executada em acetato, sobre molde usinado em resina Cibatool
Figura 7.
Termoformagem da matriz sendo executada em acetato, sobre molde usinado em resina Cibatool


Fonte: elaboração própria

Importante detalhe na adequação da termoformagem para a geração da matriz foi a execução de pequenos furos juntamente aos espaços de maior depressão na peça, para que a passagem do vácuo se desse de forma mais eficaz, de modo que o calor e o acetato pudessem modelar a matriz da forma mais fiel a reprodução dos detalhes das pedras de mosaico à portuguesa.

A matriz, resultado da termoformagem
Figura 8.
A matriz, resultado da termoformagem


Fonte: elaboração própria

Como detalhado anteriormente, durante todo o processo de digitalização, adequação dos arquivos e usinagem houve a preocupação com o nível do detalhamento da reprodução das pedras e das diferenças de relevo entre elas, importantíssimo para a percepção do consumidor final sobre a experiência sensorial com as calçadas. Na penúltima etapa, de termoformagem, foi possível garantir que esse nível de detalhamento seria possível de se reproduzir na fabricação dos chocolates.

Fabricação dos chocolates

Após as matrizes finalizadas, passou-se a etapa de fabricação dos chocolates, como forma a dar conclusão ao experimento proposto e ao estudo de caso em questão. Entende-se o chocolate como o estabelecimento de uma relação entre a gastronomia e a identidade cultural, amplamente reforçada pelo histórico do chocolate como visto anteriormente neste estudo.

Produto final em chocolate
Figura 9.
Produto final em chocolate


Fonte: elaboração própria

A produção do chocolate deu-se de forma caseira e bastante artesanal. Porém, mesmo sem as técnicas mais apuradas foi possível reproduzir na matéria-prima chocolate as calçadas de Porto Alegre, parte do patrimônio cultural e histórico da cidade. Durante a execução dos chocolates, foi possível compreender que o uso de extrusão como forma de destacar o desenho de um arabesco em um dos modelos de calçadas foi essencial para a sua execução, facilitando o preenchimento da forma com chocolate branco e o posterior preenchimento da base das pedras com chocolate preto.

Já, no segundo modelo de calçada, a manutenção do eixo Z sem extrusão, mesmo com os desenhos das pedras formando a figura, não reproduziram da melhor maneira o layout do mosaico das pedras portuguesas. Como experimentado na figura acima, foi necessária o ressalto de seu desenho através de chocolate branco para uma melhor definição das peças trabalhadas.

Entende-se que, em sua adequada execução, a produção de chocolates como forma de ressaltar os saberes e conhecimento cultural e a experiência sensorial de sua gastronomia possa trabalhar, para uma diferente percepção e atenção das pessoas com o patrimônio, sua reiteração histórica como conhecimento e sua maior apreciação.

Considerações

A Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural: a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, em sua 17ª reunião realizada em Paris no ano 1972, já fazia menção das ameaças que o patrimônio estava experimentando e distinguia entre as causas tradicionais que agravam os fenômenos de alteração: o “deterioro” pelo passar do tempo e também a “evolução da vida social e econômica”.

Cientes das mudanças que as manifestações culturais sofrem ao decorrer do tempo, seja pelas inovações tecnológicas, sejam pelas mudanças no seu contexto, com relação a costumes e gostos das pessoas, novas realidades, chegando até a afirmação de Della Giustina, e Selau, (2009) a “descaracterização das manifestações originais”. É que esta “caminhada” pelas calçadas emmosaico à portuguesa quer salientar a singularidade e beleza desta tradição que transforma as cidades e define ao mesmo tempo sua paisagem horizontal, como uma manifestação que Rey (2015) chama de “memória gravada no chão”.

E ainda que salvaguardar compreenda a identificação, documentação, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, transmissão e revitalização de este patrimônio em seus diferentes aspectos (Unesco, 2003), as novas realidades da sociedade atual para além da “descaracterização das manifestações originais” podem nos dar pistas aos pesquisadores das diferentes combinações que com critério e criatividade possam apoiar a labor da revitalização do patrimônio. Hoje, a tendência crescente é considerar o patrimônio como ativo econômico, que potencialmente pode gerar riqueza em tanto que existam usuários dispostos a investir para vê-lo, apreciá-lo, interpretá-lo e compreendê-lo (Hernández Cardona, 2007).

Incorporar alternativas de difusão patrimonial, como de fato a Tecnologia 3D pode prover, não só gera “ressonância”, que segundo Greenblatt (1991), “é o poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante”, mas também pode gerar desenvolvimento local, dinamização da economia, divulgação e ressignificação do patrimônio, pois oferece um novo uso social do patrimônio cultural.

Daí que este trabalho se propôs, por meio de tecnologias 3D como a Digitalização, a Usinagem CNC e a Termoformagem, dar não só visibilidade, mas também dar uma nova “vida” aos elementos que parecem corriqueiros por fazer parte da paisagem diária dos moradores das cidades. Por conseguinte, a junção do saber fazer e o gosto pelo chocolate com a arte da Pedra Portuguesa, em Porto Alegre/RS, Brasil, parte da necessidade de renovar o valor e uso social destes bens patrimoniais, fazendo uma relação particular de produtos e técnicas para a promoção e divulgação diferenciada destes patrimônios.

Esta proposta de reprodução das calçadas em mosaico à portuguesa de Porto Alegre (Brasil) em chocolate, como novo uso social do patrimônio, pode ser ainda mais relevante quando na atualidade existe o debate com relação à acessibilidade no espaço público quando são usadas técnicas que geram superfícies irregulares o que pode acarretar dificuldades, riscos e limitações para pessoas com mobilidade reduzida por citar um exemplo. Ou também levando em conta que os chamados “mestres calceteiros” por dizer de algum modo, estão em via de extinção.

Além disso, os avanços da tecnologia devem oferecer uma oportunidade para “obter com grande precisão curvas, detalhes e texturas de superfícies” (Da Silva, 2011), de objetos patrimoniais, e que facilitem sobremaneira o desenvolvimento de projetos que possam se antecipar aos “fenômenos de alteração” que menciona a Unesco.

Para dar continuidade a este estudo, vale a pena em futuras oportunidades, incluir à comunidade para obter não só a sua apreciação, mas também avaliar esta iniciativa. Daí que uma equipe interdisciplinar possa imaginar novas leituras do patrimônio, seja este qual for, sempre que seja reconhecido como tal (Hernández Cardona, 2007), ou seja, sempre que suficientes setores da sociedade lhe atribuam valor. Em consequência a sensibilização e a participação da comunidade sejam fundamentais neste processo, numa busca por atitudes preservacionistas, que garantam o interesse pelo patrimônio por meio do sentimento de participação (Della Giustina e Selau, 2009).

Os autores constataram a importância de dar continuidade a este tipo de pesquisas pela relevância do tema, o qual pode repercutir não só no que tange aos estudos patrimoniais, mas também com o objetivo de alcançar razões, no Patrimônio, no Food Design, na Tecnologia 3D, e na contribuição que o processo de design traz ao compreender e confrontar diferentes áreas do conhecimento, ao longo do todo o processo criativo.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Laboratório de Design e Seleção de Materiais do Programa de Pós Graduação em Design da UFRGS, pela estrutura, equipamentos e suporte – especialmente a bolsista do laboratório Laura Moura e ao Doutorando João Pereira pela valiosa colaboração no desenvolvimento neste trabalho.

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Notas

* Artigo de pesquisa científica e tecnológica

1 Definida pela Unesco (2003) como as medidas que abrangem a identificação, documentação, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, transmissão e revitalização de este patrimônio em seus diferentes aspectos.

2 Gramado integra a região turística Serra Gaúcha, no extremo sul do Brasil, sendo um dos principais polos turísticos do país. A cidade teria recebido, em 2012, cerca de 5,7 milhões de visitantes, número bastante significativo se comparado aos seus 34.365 habitantes.

Autor notes

a Autora correspondente. Correio eletrônico: adrianabmora@gmail

Informação adicional

Como citar este artigo: Bolaños-Mora, A., Fillmann, M. C., e da Silva, F. P. (2020). Tecnologia 3D para ações de salvaguarda do patrimônio cultural: estudo de caso, reprodução das calçadas em mosaico à portuguesa de Porto Alegre (Brasil) em chocolate. Apuntes, 33. https://doi.org/10.11144/Javeriana.apu33.tasp

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