Autor de correspondencia. Correio eletrônico: joseadriano@faculdadeunida.com.br
Ao analisar 1 Cor 1,26-31, este artigo procura destacar a força retórica do argumento paulino que afirma que a maior parte das pessoas a quem Deus chamou para formar a comunidade cristã em Corinto não são “sábios”, “poderosos” e “de família prestigiosa”, mas “as coisas loucas”, “as coisas fracas”, “as coisas desprezíveis” e “as coisas que nada são”. Deus, ao revelar a sua sabedoria e poder na cruz de Cristo, escolhe a fraqueza e loucura do mundo, destruindo os fundamentos do orgulho humano. O artigo demonstra também que as declarações de Paulo não podem ser desvinculadas do discurso de honra próprio da cultura greco-romana, a qual estava associada a poder, gênero e lugar social. Além da riqueza, associada às pessoas de status social elevado, havia uma hierarquia de valores que incluía linhagem familiar, conexões com Roma e sofisticação cultural.
In analyzing 1 Cor 1:26-31, this paper seeks to highlight the rhetorical power of the Pauline argument which states that most of the people God called to create the Christian community at Corinth are not “wise,” “powerful,” and “from a prestigious family,” but “fool things,” “weak things,” “despicable things,” and “things that are nothing.” By revealing his wisdom and power in the cross of Christ, God chooses the weakness and madness of the world, destroying the foundations of human pride. The paper also shows that Paul’s statements cannot be dissociated from the Greco-Roman culture’s honor discourse, associated with power, gender, and social standing. In addition to wealth, associated with people of high social status, there was a hierarchy of values that included family lineage, connections with Rome, and cultural sophistication.
A Igreja de Corinto foi fundada pela proclamação do “Cristo crucificado” (2,1-5). A “palavra da cruz”, o Evangelho que Paulo proclamou aos coríntios, contradiz as expectativas humanas sobre a forma da ação de Deus, além de constituir o fundamento da verdadeira sabedoria (1,18-25). A “palavra da cruz”, considerada também por algumas pessoas como loucura e fraqueza, é “mais sábia e mais forte do que os homens” (1,25). Este paradoxo é definido em relação à cruz de Cristo e o poder de Deus é identificado com o Messias crucificado: “a loucura de Deus” e os valores ligados a “loucura-sabedoria” e “fraqueza-força” são substituídos pelos valores centralizados na cruz
Paulo, então, procura demonstrar os efeitos da “palavra da cruz” na composição da comunidade cristã (1,26-31). Após declarar que a “mensagem da cruz” é poder, embora se manifeste como fraqueza, e sabedoria para “os que estão sendo salvos”, mas “loucura” e “fraqueza” para “os que “estão a caminho da destruição”, ele assinala as circunstâncias da formação da comunidade cristã em Corinto. Há, no seu pensamento, uma correlação entre a manifestação da “sabedoria e poder de Deus” na cruz, ou “loucura e fraqueza de Deus”, e a estrutura da comunidade cristã, pois as pessoas consideradas como “os que nada são” pela “sabedoria deste mundo” são os representantes da sabedoria que se manifesta na cruz
Numa sociedade que valorizava a honra, o poder e o prestígio, a falta de status dos coríntios no momento da sua vocação é uma indicação clara da loucura de Deus. Como resultado da sua vocação por meio da loucura da proclamação da cruz, o seu status foi subvertido, isto é, eles não eram “nada”, mas tornaram-se “participantes do povo de Deus”. Deus salva “os que creem” pela “fraqueza” e “loucura” da cruz, e salva os que são considerados “loucos”, “fracos” e “que nada são” segundo os padrões da “sabedoria deste mundo”. A vocação da comunidade cristã não tem como base status sócio-econômico ou capacidade pessoal, mas o amor e a iniciativa de Deus
Os coríntios deveriam ver a si mesmos da perspectiva de Deus e compreender que agora, em Cristo, tornaram-se uma comunidade que dever ser caracterizada pela unidade, não pelo status social ou fidelidade a pessoas específicas, muitas das quais viam a si mesmas como superiores e causavam discórdias na comunidade (1,10-17; 3,1-4). Neste contexto, ao apresentar a composição social da comunidade cristã em Corinto em 1 Cor 1,26-31, Paulo convida os coríntios a refletir sobre a realidade da vocação e o seu significado
1 Cor 1,26-31 inicia-se com a declaração de que os receptores da “palavra da cruz, isto é, o evangelho que Paulo anunciou em Corinto (At 18,1-11), não são os “sábios”, “poderosos” e “de nobre nascimento”, mas “as coisas loucas”, “as coisas fracas”, “as coisas desprezíveis” e “as coisas que nada são”. Quem, em nome da “sabedoria deste mundo”, alcançaria tal fraqueza? Quem escolheria tais pessoas para ser o novo povo de Deus? A identidade eclesial dos coríntios é uma resposta à “palavra da cruz”, isto é, o evento da morte de Cristo é o fundamento da sua existência. A vocação da Igreja de Corinto é um exemplo da loucura e fraqueza de Deus que, ao revelar a sua sabedoria e poder na cruz de Cristo, escolhe a fraqueza e loucura do mundo, destruindo os fundamentos do orgulho humano
1 Cor 1,26-31 distingue-se do texto que o precede (1,18-25) e do texto que o sucede (2,1-5). O texto apresenta uma mudança de perspectiva em relação 1,18-25, pois focaliza os coríntios por meio do uso marcante do verbo na segunda pessoa do plural: “Vede”, “considerem” (1,26), que indica que sua vocação exemplifica a loucura e fraqueza de Deus, isto é, a inversão que Deus realiza nas avaliações que envolvem a sabedoria humana no que se refere a status, realizações e sucesso.
Em 1 Cor 2,1, a introdução da primeira pessoa do singular: “Eu, também, vindo a vós, irmãos”, inicia o tópico que trata do
1 Cor 1,26-31 contém duas partes: 1,26-29 e 1,30-31. A primeira parte demonstra que Deus chama as pessoas que estão no lado mais baixo da sociedade, excluindo todas as instâncias que possam gerar orgulho nos que são chamados. No paralelismo antitético triplo de 1,26-28, que fala sobre os que foram “chamados”, o uso da forma imperativa “vede”, “considerem” (1,26) assinala tanto o ato passado da vocação quanto o presente da comunidade. A presença dos “sábios segundo a carne”, “poderosos” e “de nobre nascimento” indica categorias sociológicas e, destas três categorias, “segundo a carne” é adicionado a “sábio”. Paulo destaca também os objetivos da ação de Deus, a qual também determina a estrutura da Igreja: “Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios; Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as coisas fortes; Deus escolheu as coisas vis e as desprezíveis, aquelas que nada são, para destruir as que são” (1,27-28). O uso triplo da cláusula explicativa “para” destaca a ação de Deus e constitui uma dialética entre “loucura e sabedoria”, “fraqueza e poder”, “os que são” e “os que nada são”. A presença da cláusula explicativa “para que”, na conclusão da unidade, indica que a ação de Deus é pedagógica, sendo o seu alvo “para que ninguém se vanglorie diante de Deus” (1,29).
Na segunda parte do texto (1,30-31) Paulo explica o significado de Cristo para “aqueles que creem”. A declaração: “Vós, porém, sois dele, em Cristo Jesus” (1,30a), descreve a vocação dos coríntios e corresponde a “aos que são chamados” (1,24)
Paulo amplia também o seu pensamento ao citar as Escrituras Judaicas: “para que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’”. Esta passagem, que corresponde a LXX Jer 9,22-23, afirma de forma positiva a ideia formulada de forma negativa em 1,29: “para que nenhuma criatura se vanglorie diante de Deus”, tornando a conclusão de 1 Cor 1,26-31 uma indicação de uma atitude apropriada que se espera daqueles que foram chamados por Deus: “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”
Na declaração inicial do texto, Paulo relembra aos coríntios as suas origens humildes: “Considerai, pois, irmãos e irmãs, a vossa vocação, pois não são muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa” (1,26). O povo que Deus chamou é apresentado da perspectiva da “palavra da cruz”: “Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as coisas fortes; e Deus escolheu as coisas vis e as desprezíveis, aquelas que nada são, para destruir as que são” (1,27-28).
O contraste entre as perspectivas “deste mundo” e “divina” dominam o argumento apresentado: “sábios”, “poderosos”, “de família prestigiosa”, pessoas de status elevado que o mundo valoriza, estão destinados à vergonha e destruição pela ação divina. Deus faz estas coisas ao escolher pessoas do mais baixo status social, aquelas que o mundo considera “loucas”, “fracas”, “desprezadas” ou “nada”, sendo claro o motivo para que isso ocorra: “ninguém se glorie diante de Deus” (1,29), “a salvação vem do Senhor” (1,30) e “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1,31)
A vocação do povo de Deus revela a intenção divina de destruir os fundamentos do orgulho que tem por base o ser humano e procura levar os coríntios a gloriarem-se apenas no Deus vivo: “Vós, porém, sois dele, em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria da parte de Deus, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’” (1,30-31).
De acordo com a sua estrutura, 1 Cor 1,26-31 pode ser apresentado da seguinte forma
1 Cor 1,26-31 indica que Deus em Cristo realiza uma inversão das avaliações humanas referentes a status, realizações e sucesso ao descrever como, em sua sabedoria, Ele agiu na constituição da igreja de Corinto. A declaração inicial do texo: “Considerai, pois, irmãos e irmãs, a vossa vocação, pois não são muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa” (1,26), destaca a ação de Deus na vocação da Igreja e convida os coríntios a discernir a sua própria realidade. A existência da comunidade cristã é uma evidência da “palavra da cruz”, pois através da sua proclamação Deus rejeita aqueles que são considerados “sábios”, “fortes” e “de nobre nascimento”.
O texto destaca o
A composição social da comunidade cristã em Corinto ilustra o princípio que indica que Deus utiliza o que o mundo considera de menor valor. Paulo utiliza também este princípio para justificar o seu
Os grupos sociais que compõem a comunidade cristã são apresentados a partir de um paralelismo antitético triplo, o qual destaca a ação de Deus e sujeita a estrutura social da igreja a uma interpretação da perspectiva da cruz: Deus escolheu “não muitos sábios”, “poderosos” e “de nobre nascimento”, mas “as coisas loucas”, “as coisas fracas”, “as coisas desprezadas” e “as coisas que nada são” para “reduzir a nada as que são”
GRUPO
DE PESSOAS NÃO ESCOLHIDAS
GRUPO
DE PESSOAS ESCOLHIDAS
AÇÃO
DE DEUS
OBJETIVO
DA ESCOLHA DIVINA
não
muitos sábios
mas
as coisas loucas do mundo
Deus
escolheu
para
envergonhar os sábios
não
muitos poderosos
as
coisas fracas do mundo
Deus
escolheu
para
envergonhar as coisas fortes
não
muitos de família prestigiosa
as
coisas vis do mundo, e as coisas desprezíveis (...) as que nada são
Deus
escolheu
para
destruir as que são
Nestes versos, o uso das desconcertantes formas neutras “as coisas loucas”, “as coisas fracas”, “as “coisas desprezadas” e “as coisas que nada são” indica que a escolha das pessoas que compõem a comunidade está relacionada com a sabedoria e poder de Deus que se manifestam no Messias crucificado (1,18-25). A antítese “as coisas que nada são”, “as coisas que são”, o terceiro membro da antítese, é o clímax da apresentação paulina, que destaca “as coisas desprezadas” e “as coisas que nada são” como objeto da eleição divina
Os “sábios” e “poderosos” são apresentados como objeto do verbo “envergonhar” (1,27) e “as coisas que são” como objeto do verbo “destruir” (1,28). A palavra da cruz está relacionada com a vocação e o juízo e recriação escatológicos. A comunidade cristã assemelha-se à criação
As declarações de Paulo não podem ser desvinculadas do discurso de honra próprio da cultura greco-romana, que em geral classificava as pessoas em pessoas em
“Honra” e “vergonha” eram valores sociais centrais para elas. Como honra envolve comportamentos, compromissos e atitudes que visavam preservar a cultura e a sociedade, a tendência das pessoas criadas naquele contexto era buscar o bem do grupo maior, incorporando voluntariamente os seus valores como caminho para a realização pessoal
Algumas pessoas da igreja de Corinto pertenciam aos estratos superiores da sociedade
As pessoas cujo status dependia da riqueza recém-adquirida tinham papéis proeminentes não só na sociedade em geral, mas também na Igreja. Desta forma, as palavras de Paulo são dirigidas a pessoas sedentas por status (1,26); de fato, a inconsistência de status estava na raiz da atração que o cristianismo exercia sobre algumas pessoas da Igreja de Corinto: a nova religião deu-lhes um status que eles não haviam alcançado naquela sociedade.
Paulo estava lidando com o “ser” dos coríntios ao lembrá-los quem eram quando foram chamados. A vocação divina deu-lhes um “novo ser”, embora pareça que eles haviam esquecido esta realidade devido a sua ligação com o
Os termos usados por Paulo, “sábios”, “poderosos” e “de família prestigiosa”, representam tudo aquilo que as pessoas desejavam alcançar, de acordo com o
Eles foram chamados não porque tinham status, pelo contrário, Deus escolheu usar coisas e pessoas que não tinham status. Deus inverte os valores vigentes ao valorizar “os que nada são”, razão porque o comportamento jactancioso e divisivo dos coríntios é absurdo no contexto da narrativa das origens da comunidade apresentado
Por essa razão, na declaração de 1,29, introduzida pela partícula “para que”, Paulo expressa o propósito último da loucura de Deus: “para que nenhuma criatura se vanglorie diante de Deus”
Deus escolhe as coisas loucas do mundo, a cruz e “os que creem”. O princípio que subjaz à sua ação ao chamar os coríntios para participar da comunidade combina com a fraqueza e loucura da cruz. Deus, ao chamá-los, mostra ao mundo como Ele é, sua ação, mas o objetivo de Paulo é remover dos coríntios qualquer motivo para eles se orgulharem
Na estrutura escatológica do pensamento paulino, o “sábio”, o “escriba” e o “inquiridor deste século” (1,20) não têm mais lugar na nova era inaugurada pela cruz de Cristo. Os “sábios” e “poderosos” são apresentados como objeto do verbo “envergonhar” (1,27) e “as coisas que são” como objeto do verbo destruir (1,28). O texto paulino inicia-se com a apresentação das pessoas “insignificantes”, acrescenta “desprezíveis” e, numa forma retórica típica que inclui os coríntios, classifica-os como “coisas que nada são” e escolhidos por Deus “para destruir as coisas que são”
O verbo “destruir” expressa a convicção de que, em Cristo, Deus já colocou o futuro em movimento, razão porque a “era presente” está sendo deixada de lado pela ação divina. Deus chamou os coríntios para participar da sua glória (2,7) e escolhe “as coisas que nada são” para destruir as coisas que são”, isto é, os “sábios”, “poderosos” e “de família prestigiosa” desta era. Paulo rompe com as expectativas associadas a status do seu público. Para ele, no Cristo crucificado os coríntios têm uma fonte comum de salvação e um paradigma de liderança.
Ele não dispensa os termos referentes a status elevado e, tampouco, ataca a hierarquia e prega a igualdade, mas apropria-se de termos como “sabedoria” e “poder” e os apresenta em linguagem apocalíptica: Deus escolhe a loucura e derruba o que é considerado elevado por meio de algo considerado desprezível. Na sua sabedoria e poder todas as qualidades humanas tornam-se tolas e fracas (1,25). O mundo apocalíptico não dissolve as hierarquias existentes numa igualdade. Nele, os valores do mundo greco-romano são reconhecidos, mas invertidos. O evangelho apocalíptico revela a instabilidade dos valores da cultura greco-romana e os substitui por um mundo no qual o que é elevado torna-se baixo, é o que é baixo torna-se elevado
A “palavra da cruz” está, portanto, relacionada tanto com a vocação quanto o juízo e recriação escatológicos. A cruz de Jesus e sua proclamação realiza o que na tradição apocalíptica era esperado para o fim dos tempos, ou seja, o fim dos governantes e poderosos deste mundo. A destruição “das coisas que são” e a escolha “das coisas que não são” significa não somente a transformação de categorias humanas de julgamento, mas também a relativização completa de todos esses valores na cruz de Jesus, o Messias.
As categorias sociológicas que Paulo apresenta são importantes em relação à vocação, não porque os “sábios”, “poderosos” e “de família prestigiosa” estão excluídos da salvação, pois pela palavra da cruz eles são libertados da posse da sua sabedoria, poder e nobreza. Paulo também não desconsidera a situação do ser humano, pois uma pessoa pode considerar sua humildade como privilégio e, assim, vangloriar-se.
A exclusão de todos os privilégios e a possibilidade de “gloriar-se apenas no Senhor” (1,31) é, no entanto, o cerne do texto. A declaração de 1,29: “para que nenhuma criatura se vanglorie diante de Deus”, na qual “para que” opõe-se formalmente às proposições formuladas com o uso de “para” anteriores: “para envergonhar os sábios”, “para envergonhar as coisas fortes”, “para destruir as coisas que são” (1,27-28), demonstra o objetivo final assinalado pelos verbos “envergonhar” (1,27) e “destruir” (1,28), pois quando Deus se volta para “aqueles que nada são” qualquer tipo de vanglória torna-se um absurdo
Na Igreja de Corinto algumas pessoas viam a si mesmas, a Paulo e aos demais líderes de uma forma equivocada, pois o faziam segundo os padrões da “sabedoria deste mundo”, isto é, utilizavam os critérios de prestígio e honra vigentes no mundo greco-romano para avaliar a si mesmos. Paulo, contudo, emprega as expressões: “louco”/“sábio”, “fraco”/“forte”, “desprezados”/“de família prestigiosa”, “coisas que nada são”/“coisas que são” (1,26-28) ao criticar os padrões de julgamento baseados em status cultural, social e de nascimento, reorientando os coríntios a agir de acordo com os padrões que a cruz apresenta. O “gloriar-se” em pessoas caracterizava a conduta dos coríntios e a estima que eles tinham por algumas pessoas, embora a maior parte deles nem sequer pertencesse aos círculos mais ricos e influentes da cidade
Paulo, então, redefine os padrões pelos quais os coríntios deveriam avaliar a si mesmos, estabelece os fundamentos apropriados para o “gloriar-se” e apresenta uma distinção entre um “gloriar-se” que é aceitável e um “gloriar-se” não aceitável (1,29)
De acordo com Paulo, os valores sabedoria, riqueza, poder e alto status social, nos quais algumas pessoas confiavam, são frágeis como base para o seu orgulho e elas não encontrariam favor algum diante de Deus ao buscar expressar os seus privilégios desta maneira. Ele relembra escolha paradoxal de Deus das pessoas que compunham a comunidade (1,27-28), algo evidente no fato de que sua maior parte foi escolhida dentre as “coisas que nada são”.
Com esta declaração, Paulo expressa o propósito último da loucura divina: “para que nenhuma criatura se vanglorie diante de Deus” (1,29), e apela aos coríntios para eles não se orgulharem em seus privilégios sociais diante de Deus e da comunidade, mas apenas em Cristo: “Vós, porém, sois dele, em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria da parte de Deus, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’” (1,30-31)
O fundamento para gloriar-se rem como referência a cruz; ninguém tem privilégios diante de Deus, seja influência, bens ou prestígio. Ao escolher “os que nada são” para formar a comunidade cristã, Deus remove qualquer sistema humano imaginável que procure obter o seu favor. Neste sentido, a primeira sentença de 1,30-31 relembra aos coríntios que sua própria vocação, como a cruz, expressa “a loucura de Deus, que é mais sábia do que a sabedoria humana” (1,25). Mas o que foi dito antes de forma negativa, isto é, Deus anula a sabedoria humana (1,20-21), “de modo que nenhuma criatura possa gloriar-se na presença de Deus” (1,29), agora, na forma de contraste, Paulo expressa o que Deus fez aos coríntios ao chamá-los para participar da comunidade cristã (1,30-31).
Paulo utiliza o verbo “gloriar-se” (1,29) devido ao seu uso em LXX Jer 9,23b, o texto que ele cita em 1,31: “a fim de que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’”. Sua declaração: “Vós, porém, sois dele, em Cristo Jesus” (1,30a), isto é, em contraste com “este mundo” vocês devem sua existência como comunidade à ação de Deus, efetivada na história através de Jesus Cristo, “poder e sabedoria de Deus”. Cristo tornou-se para nós a verdadeira sabedoria, a qual é, então, interpretada em termos soteriológicos, “isto é, nossa “justiça, santificação e redenção”. Em 1,30, o uso de “dele” representa a vocação e corresponde a “aos que são chamados” (1,24). Cristo tornou-se para nós “sabedoria”, não a sabedoria “deste mundo”, tão apreciada pelos coríntios, mas a verdadeira sabedoria que deve ser entendida a partir das metáforas que se referem ao ato salvador de Jesus Cristo: “justiça, santificação e redenção”
Destas três palavras, a primeira delas, “justiça”, ocorre somente em 1,30 em 1 Coríntios, mas o verbo cognato “justificar” ocorre em 4,4 e 6,11. O verso está também associado a 2 Cor 5,21: “para que nele nos tornássemos justiça de Deus”. Em 1,30 há uma identificação correspondente: tudo tem origem em Deus: Deus é quem origina a nossa justiça, santificação e redenção. Esta justiça, da qual Deus é tanto a origem quanto o sujeito ativo, não é a nossa justiça, mas a justiça de Deus por nós que se tornou uma realidade efetiva
A segunda palavra, “santificação”, deriva do âmbito do culto e significa estar próximo de Deus por meio do que Ele realizou. Neste sentido, a inversão do que significa a ausência de status e autoestima provocada pela cruz, numa cultura honra, vergonha ou culpa, significa ser revestido da justiça de Cristo como alguém amado, aceito, purificado, separado como convidado privilegiado junto a Deus e identificado com o seu nome em Cristo
O terceiro termo, “redenção”, deriva da linguagem do mercado de escravos do mundo greco-romano e assinala a mudança de situação de uma pessoa, por meio da qual ela conseguia sua liberdade. Havia uma mudança de senhorio e o preço da liberdade era, de alguma forma, pago por alguém. Redenção significa a libertação de um estado de escravidão, dificuldade, sofrimento ou humilhação; a palavra, de alguma forma, envolvia um preço, independentemente da identidade de quem o pagava, mas a libertação conduzia a uma nova forma de serviço
Jesus Cristo, o crucificado, não é simplesmente fonte ou mediador da sabedoria, mas a sabedoria de Deus, isto é, “justiça”, “santificação” e “redenção”
A “sabedoria deste mundo” honra os “sábios, poderosos e de família prestigiosa”, mas Deus exalta “as coisas desprezíveis” e “que nada são”. Ele escolhe as “coisas loucas deste mundo” para envergonhar os “sábios” e as “coisas fracas deste mundo” para envergonhar os “fortes” (1,27-28; 3,18-19). O paradoxo da ação de Deus manifesta-se no amor que Ele demonstra às próprias pessoas que são consideradas pela sabedoria “deste mundo” como loucura, fraqueza e insignificância.
A alusão a Jer 9,22-23 assinala também o equívoco do que significa “orgulhar-se” na “sabedoria humana”, na “força” e na “riqueza”. Da mesma forma que o profeta Jeremias, Paulo condena o “orgulhar-se” em sabedoria, poder e nobreza
Em vez de “orgulhar-se” em coisas que podem gerar sentimentos de autossuficiência, o único fundamento para “gloriar-se” é a compreensão e conhecimento do Senhor, que faz misericórdia, justiça e equidade (9,23). “Sabedoria”, “poder” e “riqueza” estão, desta forma, subordinados à compreensão e conhecimento do Senhor. Não há fundamento algum para “orgulhar-se” em nada, a não ser no Senhor. Jeremias, portanto, faz uma distinção entre o “orgulhar-se” legítimo, limitado a “orgulhar-se” no nome do Senhor, e o “orgulhar-se” ilegítimo, isto é, “orgulhar-se” na arrogância de uma pessoa. No “orgulhar-se” legítimo a confiança da pessoa está no Senhor; no “orgulhar-se” ilegítimo está nas “coisas deste mundo”. “Sabedoria”, “poder” e “riqueza” não são coisas em si mesmas proibidas, mas quando se tornam objeto de orgulho transformam-se em ídolo, autoglorificação e autossuficiência. A posse da “sabedoria”, “poder” e “riqueza” não é uma base adequada para o “orgulhar-se”, pois “aquele que se orgulha deve fazê-lo porque compreende e conhece o Senhor” (Jr 9,23)
Na Igreja de Corinto, algumas pessoas colocavam a sua confiança na sabedoria, poder e nobreza de nascimento. Paulo, então, utiliza o texto de LXX Jr 9,22-23 para desenvolver a ideia de “orgulhar-se” e redefini-la em termos do conhecimento de Deus e condenar o orgulho na sabedoria “deste mundo”, “poder” e “riqueza”
“Sabedoria”, “poder” e “riqueza” não constituem uma base adequada para o “gloriar-se”. Em vez disso, aquele que se “gloria” deve “gloriar-se” em sua compreensão e conhecimento de Deus. Desta forma, Paulo introduz a verdadeira forma pela qual os coríntios devem consideram sua vocação e, embora o movimento do seu pensamento entre uma forma negativa de “orgulhar-se” a uma positiva siga o modelo de Jeremias, a inserção de Cristo estabelece uma distinção entre o seu texto e o texto de Jeremias.
Ao acrescentar a categoria cristocêntrica, o seu texto destaca o “orgulhar-se” nos atos salvadores de Deus em Cristo, o único fundamento para o “gloriar-se”. Jeremias afirma que a verdadeira fonte da identidade da comunidade é a compreensão e conhecimento do Senhor, mas Paulo afirma que a fonte da identidade é Cristo, “poder e sabedoria de Deus” (1,24). “Vós, porém, sois dele, em Cristo Jesus” (1,30) indica que os coríntios se encontram “entre os que creem” e demonstra quão diferente significa ser “os que estão sendo salvos” (1,18-25). Os coríntios foram chamados e têm o status de nova criação (2 Cor 5,17). Eles pertencem a Cristo como pessoas e como corpo, isto é, como a comunidade dos que creem
Na estrutura escatológica do pensamento de Paulo, Deus elimina o que a “sabedoria deste mundo” coloca em primeiro lugar. O processo escatológico que teve início com a morte e ressurreição de Cristo ocorrerá totalmente na parousia, quando Deus exaltará não apenas os que creem e pertencem à elite social de Corinto, mas também os que creem e são considerados “loucos”, “fracos” e “desprezados”. Deus reduzirá a nada “as coisas que são”, isto é, as coisas que resultam em status social – sabedoria, poder e riqueza.
Ao destruir as noções de status social e autoestima, o Senhor escolhe redimir aqueles “que nada são”, “de modo que ninguém possa gloriar-se diante dele” (1,29). A vocação não muda necessariamente o status social daqueles que creem (cf. 1 Cor 7,17-24), mas os que creem e são desprezados de acordo com os padrões de pensamento “deste mundo” ganham um novo status diante de Deus. Os coríntios não fizeram nada para alcançar este status redentivo, então não há motivo algum para o seu orgulho. Nenhum ser humano, quando se considera o seu lugar social - educação, influência política ou afluência social -, pode gloriar-se diante de Deus
Neste artigo ficou demonstrado como Paulo procura levar os coríntios a tomarem consciência de quem eram no tempo da sua vocação e refletir sobre o seu significado. A vocação não se baseia em status social ou na capacidade das pessoas, mas no amor e iniciativa divinos. Os coríntios deveriam ver a si mesmos da perspectiva de Deus para compreender que agora em Cristo são uma comunidade que deve ser caracterizada pela unidade, não preocupada com status social e pela fidelidade a esta ou aquela pessoa.
A tríade “sábios”, “poderosos” e “de família prestigiosa”, além de ser um comentário sobre a composição social da comunidade, contém também os termos de uma crítica teológica que procura refletir sobre a arrogância que ameaçava dividi-la
As três cláusulas paralelas de 1,27-28 indicam “quem” Deus escolheu e “porque” os escolheu. Os termos “loucos”, fracos”, “insignificantes” e “os que nada são” referem-se às pessoas que Deus escolheu, ao contrário da tríade “sábios”, “poderosos” e “de nobre nascimento” (1,26). O paradoxo do plano de Deus é ilustrado em seu amor e graça que se estende às pessoas que, segundo os padrões da sabedoria “deste mundo”, são consideradas “loucas”, “fracas”, “insignificantes” e “que nada são”.
Os efeitos da derrubada dos valores da sabedoria “deste mundo” são evidentes na composição da comunidade cristã. Como a estratificação social da comunidade agravava as dissensões na comunidade cristã, o texto procura legitimar teologicamente uma comunidade composta na sua maior parte por pessoas de nível social mais baixo em comparação com poucas pessoas de status social elevado que pertenciam à comunidade cristã. De fato, as pessoas que a sociedade e o mundo consideram como “nada” são os representantes da sabedoria que se manifesta no Cristo crucificado.
Nesse sentido, a função crítica da teologia da cruz é relevante e a especificidade da descrição social apresentada indica que esta mensagem é incisiva para os poucos “sábios” e “fortes” da Igreja de Corinto, não havendo dúvidas de que eles entenderiam a força destas afirmações. A atitude “meramente humana” que caracterizava sua conduta indica também uma atitude irônica da parte de Paulo. Algumas pessoas procuravam envergonhar e desonrar os membros da comunidade que consideravam socialmente inferiores, mas Paulo inverte esta situação ao afirmar que os “sábios” e “fortes” segundo os padrões da sabedoria do mundo são envergonhados pelo próprio Deus. A ironia é ainda maior quando o leitor percebe que a cruz, considerada símbolo de vergonha e desonra, torna-se o meio para envergonhar as próprias pessoas que a desprezavam
Paulo confronta também as pessoas “sábias” e “fortes” que agiam e julgavam as demais pessoas “de maneira meramente humana” com as implicações sociais da cruz. As atitudes de algumas pessoas que se consideravam superiores segundo os valores da “sabedoria deste mundo” eram a causa da discórdia na comunidade
Deus revela sua sabedoria e poder na cruz de Cristo e escolhe a fraqueza e loucura do mundo, destruindo todos os fundamentos do orgulho humano
Pickett,
Strüder,
Mihaila,
Berger,
Pickett,
Strüder,
Fee,
Strüder,
Ibid., 286.
Fee,
Kammler,
Voss,
Hays,
Litfin,
Ibid., 113; Horrell,
Theissen,
Voss,
Thiselton,
De Silva,
Meeks,
Witherington,
Thiselton,
Pogoloff,
Thiselton,
Voss,
Martin,
Fee,
Voss,
Kwon,
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Artigo de investigação.