“Teologia como hermenêutica”: Por um diálogo crítico-criativo com Claude Geffré*

“Teología como hermenéutica”: para un diálogo crítico-creativo con Claude Geffré

Francisco de Aquino Júnior

“Teologia como hermenêutica”: Por um diálogo crítico-criativo com Claude Geffré*

Theologica Xaveriana, vol. 71, 2021

Pontificia Universidad Javeriana

Francisco de Aquino Júnior a

Universidade Católica de Pernambuco, Brasil


Recepção: 21/05/20

Aprovação: 20/09/20

Resumo: Tornou-se cada vez mais comum falar de teologia como hermenêutica. Em amplos setores da comunidade teológica essa tese aparece como algo evidente e indiscutível, como um pressuposto ou um axioma teórico-epistemológico que dispensa maiores problematizações e exige, no máximo, a exposição do pensamento de seus principais representantes. Uma das referências mais importantes da tese da “teologia como hermenêutica” é sem dúvida nenhuma o teólogo dominicano francês Claude Geffré. Esse estudo está centrado em seu pensamento e quer indicar a necessidade de um diálogo crítico-criativo com sua concepção de teologia. Analisa os principais escritos onde ele apresenta, justifica e desenvolve sua concepção de “teologia como hermenêutica” e indica aspectos problemáticos e/ou discutíveis desta concepção de teologia. Tem, portanto, um caráter crítico-analítico. O texto começa apresentando sua tese da “virada hermenêutica da teologia”. Em seguida, indica os pressupostos teóricos e algumas implicações teológicas dessa tese. E conclui discutindo alguns pontos problemáticos e/ou não suficientemente elaborados da tese e, com isso, indicando a necessidade de um debate teórico mais amplo e profundo acerca do estatuto teórico da teologia enquanto intellectus e de seu aspecto ou momento hermenêutico.

Palavras-chave:Teologia, intellectus, hermenêutica, virada hermenêutica, diálogo.

Resumen: Se ha vuelto cada vez más común hablar de la teología como hermenéutica. En amplios sectores de la comunidad teológica esta tesis aparece como algo evidente e indiscutible, como un supuesto o axioma teórico-epistemológico que prescinde de mayores problematizaciones y requiere, a lo sumo, de la exposición del pensamiento de sus principales representantes. Una de las referencias más importantes de la tesis de “la teología como hermenêutica” es sin duda el teólogo dominico francés Claude Geffré. Este estudio se centra en su pensamiento y quiere indicar la necesidad de un diálogo crítico-creativo con su concepción de la teología. Analiza los principales escritos en los que presenta, justifica y desarrolla su concepción de la “teología como hermenêutica” e indica los aspectos problemáticos y/o discutibles de esta concepción. Por tanto, tiene un carácter crítico-analítico. El texto comienza presentando su tesis del “giro hermenéutico de la teologia” e indica los supuestos teóricos y algunas implicaciones teológicas de esta tesis. Concluye discutiendo algunos puntos problemáticos y/o insuficientemente elaborados de la tesis y, con ello, señalando la necesidad de un debate teórico más amplio y profundo sobre el estatus teórico de la teología como intellectus y de su aspecto o momento hermenéutico.

Palabras clave: Teología, intellectus, hermenéutica, giro hermenéutico, diálogo.

Introdução

Sobretudo a partir da segunda metade do século XX tornou-se comum falar da teologia como hermenêutica. E não simplesmente no sentido clássico de técnicas ou regras de interpretação de texto, mas no sentido amplo e radical que esse termo adquiriu com o movimento hermenêutico que se desenvolveu a partir do século XIX com Schleiermacher, Dilthey, Heidegger, Gadamer e Ricoeur1. De instrumento ou momento da atividade intelectual, a hermenêutica vai adquirindo um sentido cada vez mais amplo, chegando mesmo a subsumir a totalidade do processo intelectivo e se tornar sinônimo de intelecção. E tudo isso vai repercutindo no fazer teológico, a ponto de não poucos teólogos compreenderem e definirem a teologia como hermenêutica e de se tornar cada vez mais comum falar de teologia como hermenêutica2.

Uma das referências mais importantes na compreensão da teologia como hermenêutica é certamente o teólogo dominicano francês Claude Geffré3. Além de assumir essa compreensão da teologia, dedica-se por longos anos à sua formulação e justificação teórica. A seu nome está vinculada a tese da “virada hermenêutica da teologia”, expressão que aparece inclusive como subtítulo de uma de suas obras dedicadas à compreensão da teologia como hermenêutica4.

Não vamos fazer aqui um estudo amplo e profundo de sua vasta obra. Nem no que se refere aos diversos temas abordados, nem sequer no que diz respeito à problemática da teologia como hermenêutica que é o objeto de nossa investigação. Queremos simplesmente esboçar e problematizar sua compreensão de teologia. Para isso, apresentaremos sua tese da “virada hermenêutica da teologia”, indicaremos os pressupostos teóricos e as implicações teológicas dessa tese e discutiremos alguns pontos que nos parecem problemáticos e/ou não suficientemente elaborados.

“A virada hermenêutica da teologia”

Geffré não simplesmente assumiu uma concepção hermenêutica da teologia e falou da teologia como hermenêutica, como tantos outros teólogos protestantes e católicos, mas problematizou, tematizou e justificou, teórica e teologicamente, essa tese, tornando-se, por isso mesmo, uma referência fundamental e obrigatória para a compreensão e para o debate da teologia como hermenêutica.

Seu projeto já aparece esboçado em 1972 na obra Uma nova era da teologia5. Vai se desenvolvendo nas décadas seguintes e aparece consolidado nas obras O cristianismo sob o risco da interpretação (1983)6 e Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia (2001)7. Se na obra de 1983 ele “já havia traçado as linhas gerais de um programa de teologia hermenêutica”, na obra de 2001 chega mesmo a falar de “virada hermenêutica da teologia”, indicando com isso que “uma teologia de orientação hermenêutica não é uma corrente teológica entre outras, mas o próprio destino da razão teológica no contexto do pensamento contemporâneo”8.

Ao falar de “uma nova era da teologia” – ligada ao que Greisch denominou “a era hermenêutica da razão”9 – ou de uma “virada hermenêutica da teologia”10, Geffré quer indicar e caracterizar o “deslocamento”11 ou a “virada”12 que se deu na teologia na segunda metade do século XX e que levou a “um novo paradigma, um novo modelo, uma nova maneira de fazer teologia”13.

Esse “descolamento” ou essa “virada” na teologia foi formulado por ele em termos de “passagem de uma teologia como saber constituído para uma teologia como interpretação plural” ou “passagem da teologia dogmática para a teologia como hermenêutica”14 ou, mais precisamente, “passagem do modelo dogmático para o modelo hermenêutico”15. As expressões “dogmática” e “hermenêutica” são tomadas aqui como “indício” de “duas tendências diferentes” ou “dois paradigmas do trabalho teológico”16.

A tendência ou o paradigma “dogmático” dominou a teologia católica do Concílio de Trento ao Concílio Vaticano II17 e é comumente designado como “teologia da Contra-Reforma”18. O termo “dogmático” não é tomado aqui no sentido objetivo/ positivo de dogma ou verdade fundamental da fé, mas quer indicar “o uso ‘dogmaticista’ da teologia, isto é, a pretensão de apresentar as verdades da fé de maneira autoritária [...] sem nenhuma preocupação com a verificação crítica concernente à verdade testemunhada pela Igreja”19. Neste sentido, para evitar ambiguidades e por precisão conceitual, é preferível falar de um “modelo dogmaticista” de teologia20.

Esse modelo, presente nos “manuais clássicos usados nos seminários”, partia do “enunciado de uma tese de fé”. Depois vinham “a explicação, na qual se aduziam as decisões oficiais do magistério” e “a prova, citando-se a Escritura, os padres e alguns teólogos”. E concluía rejeitando “as teses opostas, especialmente as da Reforma”21. Importante destacar que neste modelo o “ponto de partida” que funciona como “princípio primeiro” do trabalho teológico é sempre o “ensinamento atual do magistério” que acaba desempenhando “o papel de princípio hermenêutico exclusivo, fazendo uma seleção entre as escrituras anteriores” e levando a uma “exclusão das opiniões contrária”22.

Desta forma, “a teologia dogmática se definia como um comentário fiel do dogma [...] e a Escritura entrava apenas a título de prova do que já estava estabelecido”. Estamos diante de um “sistema autoritário”, no qual “a autoridade do magistério praticamente substituía a autoridade da Escritura” e a teologia se tornava o “reflexo fiel da Igreja-instituição”, restringindo-se a “reproduzir, legitimando-o, o ensinamento oficial da instância hierárquica” e comprometendo sua “função crítica e mesmo profética em relação àqueles que detêm o poder de definir e interpretar”23. O perigo desse modelo teológico, diz Geffré, é que “a relação com a verdade da mensagem seja determinada pela relação com a instituição hierárquica”, transformando a teologia em “ideologia a serviço do poder dominante na Igreja”24.

A tendência ou o paradigma “hermenêutico”, por sua vez, caracteriza-se por levar a sério “a historicidade de toda verdade, mesmo que seja a verdade revelada, como também a historicidade do homem enquanto sujeito interpretante” e pelo esforço por “atualizar para hoje o sentido da mensagem cristã”25. Mas assim como o “uso ‘dogmaticista’ da teologia” não pode ser identificado com o dogma ou com a verdade fundamental da fé, tampouco a superação desse “modelo dogmaticista” pode ser tomada como rejeição ou negação do conteúdo dogmático da fé.

Geffré insistiu várias vezes que uma teologia hermenêutica não é uma teologia “adogmática” que rejeita ou nega o conteúdo dogmático da fé: “...julgando certo dogmatismo, não contesto em nada os direitos e a validade permanente da teologia dogmática”26; “...dizer que a teologia contemporânea se compreende como hermenêutica não significa que ela se tornou adogmática27; “...se ela contesta o uso dogmaticista de certa teologia escolástica, não pretende pôr em causa a legitimidade da teologia dogmática como exposição rigorosa das verdades da fé”28. Simplesmente leva a sério a historicidade fundamental dos conteúdos dogmáticos da fé, bem como a historicidade de sua intepretação. Na obra de 1983, Geffré apresenta em forma de teses ou proposições os “traços mais característicos” desse modelo teológico:

  1. Seu “ponto de partida [...] não é um conjunto de proposições imutáveis de fé, mas a pluralidade das escrituras compreendidas dentro do campo hermenêutico aberto pelo evento Jesus Cristo”.

  2. O “intellectus fidei” não é entendido aqui como “ato da razão especulativa no sentido clássico do pensamento metafísico”, mas como um “compreender histórico”, no qual “a compreensão do passado [é] inseparável [da] interpretação de si e [da] atualização criativa voltada para o futuro”.

  3. Ele “não se contenta em expor e explicar os dogmas imutáveis da fé”, mas “procura manifestar a significação sempre atual da Palavra de Deus [...] em função das novas experiências da Igreja e do homem de hoje”.

  4. Seu dinamismo remete a uma “circum-incessão incessante entre a Escritura e a tradição, que continuam sendo os lugares privilegiados de toda teologia”29.

Por mais caricaturescos que sejam os esboços desses modelos teológicos, apontam para duas “tendências” ou dois “paradigmas” do fazer teológico, não apenas irredutíveis um ao outro, mas, sob muitos aspectos, conflitantes ou mesmo contrapostos. De modo que a “passagem” ou “virada” de um modelo para o outro representa uma verdadeira “ruptura epistemológica”30 e/ou “revolução epistemológica”31, a ponto de Geffré falar de “virada hermenêutica da teologia”.

Pressupostos teóricos e implicações teológicas

Para se compreender o verdadeiro significado da “virada hermenêutica da teologia” é preciso levar em conta tanto seus condicionamentos históricos e seus pressupostos teóricos, quanto suas implicações teológicas. Sem isso não se capta a dimensão e o sentido teórico-teológico dessa “virada” na teologia.

Pressupostos teóricos

Segundo Geffré, a “virada hermenêutica da teologia” está profundamente vinculada ao que Jean Greisch denomina “a era hermenêutica da razão” que, por sua vez, é indissociável do que se pode chamar “virada linguística” do pensar. Ela só pode ser compreendida “em relação à nossa cultura e mais precisamente em ralação a um certo devir da razão filosófica [...] que toma distância tanto em relação à ontologia clássica como em relação a filosofias do sujeito ou filosofias da consciência, para considerar o ser em sua realidade linguística”32.

Está em jogo aqui a compreensão mesma de intellectus. E a expressão “virada hermenêutica da teologia” assume/indica, no âmbito do fazer teológico, a “passagem” ou a “virada” de uma compreensão de intellectus como “razão especulativa, no sentido aristotélico da palavra” para uma compreensão de intellectus como “um compreender histórico” ou um “ato de compreensão hermenêutica” que leva a sério o fato de que “não há conhecimento do passado sem precompreensão e sem interpretação viva de si mesmo”33. No fundo, ela procura responder à pergunta sobre “o que vem a ser a razão teológica” num contexto de “ruptura” com a “antiga metafísica” e com as “filo sofias do sujeito” e em que a filosofia “tende a tornar-se cada vez mais uma filosofia da linguagem”34.

É fato que “durante séculos a razão teológica foi identificada com a razão especulativa, a ratio compreendida no sentido aristotélico do conhecimento teórico”35.

Esse modelo teológico que tem em Tomás de Aquino sua expressão mais acabada e refinada e que se tornou clássico na teologia católica – embora seja sempre importante distinguir entre a teologia de Tomás de Aquino e as chamadas teologias tomistas – toma como “ponto de partida” a compreensão aristotélica de ciência, isto é, “uma ciência que procede a partir de princípios necessários ou de axiomas que a razão percebe imediatamente”36.

Para Geffré, “a genialidade de Tomás de Aquino está em ter identificado as verdades fundamentais da mensagem cristã, a saber, os artigos de fé, com aquilo que chamamos primeiros princípios no sentido aristotélico” e, desta forma, “mostrar como a teologia verifica os critérios da ciência aristotélica”37.

Ora, na medida em que essa concepção clássica de saber/conhecimento entra em crise, o modelo teológico desenvolvido segundo os cânones dessa concepção de ciência também entra em crise. A crise da metafísica vai significar/implicar, portanto, a crise da teologia metafísica38. E é precisamente isso que acontecerá na modernidade com a “passagem” ou “virada” de “uma compreensão axiomática para uma compreensão empírica e histórica da ciência que se define pela experimentação” e que tem como “objeto” de investigação “não a verdade eterna, mas a história e o conjunto dos fenômenos”39. Neste contexto, “a teologia tende a ser compreendida não simplesmente como um discurso sobre Deus, mas como um discurso que reflete sobre a linguagem sobre Deus, um discurso sobre uma linguagem que fala humanamente de Deus”40.

Isso não significa negação pura e simples da ontologia. Enquanto “discurso que tem por objeto um discurso sobre Deus”, a teologia “não deve praticar um completo ‘colocar entre parênteses’ a questão de Deus, o que é o caso hoje de muitas filosofias da religião, filosofias anglo-saxônicas em particular”41. Ela “não renuncia à dimensão ontológica dos enunciados teológicos”, mas, resguardando-se das “armadilhas da representação conceitual própria ao pensamento metafísico”, busca “tomar a sério a ontologia da linguagem na linha do segundo Heidegger e do segundo Ricoeur”, na qual a linguagem, antes de ser “instrumento do pensamento e da comunicação”, é um “dizer” ou uma “ostentação” do mundo42. É a “função ontofônica da linguagem, isto é, sua manifestação de ser”43. Como lembra Ricoeur, “a ontologia não se esgota em uma metafísica da substância. Há uma ontologia do agir e da linguagem”44.

Em todo caso, estamos diante de uma mudança ou “virada” radical no estatuto científico da teologia: da teologia como ciência metafísica no sentido aristotélico (razão especulativa) para a teologia como ciência histórica ou hermenêutica no sentido de Heidegger, Gadamer e Ricoeur (compreender histórico).

Trata-se de um processo lento e tenso, no qual se pode identificar alguns momentos ou pontos cruciais: “O primeiro abalo [...] foi provocado pela irrupção dos métodos históricos no saber eclesiástico”45. Um abalo ainda maior foi provocado pelas “teorias analíticas do neoposivismo lógico”46, segundo as quais “as proposições metafísicas são destituídas de significado”, de modo que “o problema não é mais [apenas] o da validade dos enunciados metafísicos ou teológicos, mas [mais radicalmente] de sua significação47.

Num sentido completamente diferente ou mesmo contrário, mas não menos radical, estão “a crítica heideggeriana da onto-teo-logia como essência oculta da metafísica ocidental” e raiz ou fundamento da “morte cultural de Deus concebido como objeto”48 e a problematização do “nexo entre problema da verdade e enunciado”49.

Ao mesmo tempo em que esses movimentos (historicismo, neopositivismo lógico, ontologia heideggeriana) foram pondo em crise a concepção metafísica de ciência que sustentava a concepção clássica de teologia, possibilitaram o desenvolvimento de uma ciência histórico-hermenêutica que está na base/origem da “virada hermenêutica da teologia”.

Também aqui se pode identificar alguns momentos ou pontos cruciais. Já no âmbito da filosofia analítica, inspirados no último Wittgenstein e sua teoria dos “jogos de linguagem”, muitos filósofos “recusam a estreiteza do ‘princípio de verificação’” e reconhecem que “há afirmações totalmente significativas”, embora “não possam ser verificadas empiricamente”, como é o caso da “linguagem religiosa”50.

Por outro lado, a filosofia hermenêutica pôs em “discussão” as “pretensões do saber histórico no sentido do positivismo” e mostrou que “não pode haver reconstituição do passado sem interpretação viva condicionada pela minha situação presente”51. Aos poucos vai se consolidando uma “nova epistemologia”, marcada pela “contestação da verdade como adaequatio” – comum à metafisica clássica e ao historicismo – e pela afirmação da “historicidade radical de toda verdade”52. E, assim, a nova ciência e, ligada a ela, a nova teologia vão se constituindo como um saber fundamentalmente histórico-hermenêutico.

Mas o debate não para por aí. Também essa concepção de saber tem sido alvo de críticas profundas e radicais. Tornou-se cada vez mais comum falar de “crise da hermenêutica”. E isso, diz Geffré, tem consequências decisivas para a teologia, pois “se formos até o fim no questionamento radical da hermenêutica, o exercício do ato teológico se tornará impossível”53. Para ele, a contestação radical da hermenêutica se dá em duas direções. Por um lado, “a contestação alemã da hermenêutica em nome da ‘teoria crítica das ideologias’”54. Trata-se da crítica de Habermas ao projeto hermenêutico de Gadamer. Para Habermas, além de não levar a sério a exigência moderna de “reflexão crítica” no “campo hermenêutico”, conduzindo a um “imperialismo não criticado da tradição”, a hermenêutica de Gadamer “ainda tem uma concepção idealista do saber humano”, na medida em que “privilegia certa transparência da relação inter-humana e é incapaz de desmascarar as relações de força e mesmo de violência inscritas na tradição que as carrega”55.

Por outro lado, está a crítica ligada à ideologia estruturalista, muito presente no mundo francês, do projeto hermenêutico como “expressão do pensamento metafísico”56. Ele permaneceria marcado pela busca de um “inteligível permanente”, da “inteligibilidade do ser”, da “continuidade de sentido” e, assim, “congenitalmente ligado ao movimento da metafísica”. Essa contestação é comum a todos os que “fazem hoje o processo do logocentrismo e se empenham na demolição da metafísica” em favor da “gramatologia”57 – na expressão de Jacques Derrida, seu principal representante.

Certamente, essas contestações provocaram uma “crise da hermenêutica” e da teologia hermenêutica. Não se pode mais falar de hermenêutica e de teologia hermenêutica sem considerar seriamente as críticas estruturalista e ideológica à hermenêutica filosófica de Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. Mas isso não significa o fim da hermenêutica. Significa simplesmente que a hermenêutica não pode prescindir da mediação estrutural e da crítica ideológica do pensar. E Paul Ricoeur captou e desenvolveu bem isso, provocando um verdadeiro “deslocamento da hermenêutica”. Sua posição pode ser sintetizada em três pontos fundamentais:

  1. Superação da oposição entre “explicar” e “compreender”. Ricoeur mantém distância “tanto diante da hermenêutica romântica e psicologizante [...] como diante do estruturalismo”, procurando “ultrapassar o dilema entre a distância, ligada à objetividade do texto, e a proximidade ou a pertinência, ligada à compreensão histórica” e, assim, “escapar à alternativa que ainda está presente no próprio título da obra de Gadamer: verdade e método”. Desta forma, abre uma “nova época da hermenêutica”, na qual “a explicação é o caminho obrigatório da compreensão”58.

  2. A mediação do texto. A distinção saussuriana entre a “linguagem como língua” e a “linguagem como palavra” permite a Ricoeur superar o reducionismo estruturalista da linguagem e recuperar sua dimensão semântica. O “evento da palavra” só existe no nível do “discurso” que remete sempre “a um locutor e a um destinatário” e é sempre “mensagem a respeito de alguma coisa”. O “discurso” (“palavra viva”, “escritura”, “obra literária”) faz advir um “mundo” – o “mundo do texto” – que tem “vida própria”59. E é isso que “deve ser interpretado”: “A coisa do texto é o que deve ser interpretado. E a coisa do texto é o mundo que o texto desdobra diante de si”60.

  3. A apropriação do texto e a compreensão de si. A noção de “mundo do texto” tem consequências também para o problema da “apropriação subjetiva do texto pelo autor”. Na medida em que o que se deve compreender é uma “proposição de mundo” que “não está atrás do texto, como estaria uma intensão oculta, mas diante dele, como o que a obra desdobra, descobre, revela”, diz Ricoeur, “compreender é compreender-se diante do texto”61. Isso leva a romper com as “ilusões da consciência imediata de si” e a reconhecer que “o homem só se compreende se aceitar seguir o longo desvio dos diversos sinais de humanidade depositados nas objetivações das culturas”62.

Temos aqui esboçado o contexto histórico e os pressupostos teóricos do que Geffré chama “virada hermenêutica da teologia”. Ela só pode ser compreendida adequadamente no contexto mais amplo do que poderíamos chamar “virada hermenêutica da razão” em sua ruptura com a “razão especulativa” no sentido aristotélico e com as “filosofias do sujeito ou da consciência” e em sua superação, com Ricoeur, da “crise da hermenêutica”, provocada pela ideologia estruturalista e pela crítica das ideologias, mediante a noção de “mundo do texto”. Importa perceber e destacar que o processo de identificação da razão com a hermenêutica leva Geffré a “identificar a razão teológica com uma razão hermenêutica”63.

Implicações teológicas

Com a expressão “virada hermenêutica da teologia”, Geffré indica a convicção de que “uma teologia de orientação hermenêutica não é uma corrente teológica entre outras, mas o próprio destino da razão teológica no contexto do pensável contemporâneo”64. E isso tem muitas consequências para a teologia e o teologizar que é preciso explicitar. Produz “deslocamentos” importantes tanto no que diz respeito ao “objeto” e ao ponto de partida da teologia, quanto no que diz respeito à leitura da Escritura, à releitura da Tradição e à relação com a práxis.

“Objeto” e ponto de partida da teologia

A “virada” de uma “razão especulativa” para uma “razão hermenêutica” repercute antes de tudo na determinação do “objeto” e do ponto de partida da ciência. “Seu objeto não é a verdade eterna, mas a história e o conjunto dos fenômenos”65. E na medida em que “não há apreensão ou acesso imediato à realidade fora da linguagem e a linguagem já é necessariamente uma certa interpretação”, todo conhecimento se constitui em sentido estrito como “conhecimento interpretativo”66.

Neste contexto, “a teologia tende a se compreender não mais como um discurso imediato sobre Deus, mas como um discurso sobre a linguagem que fala humanamentede Deus”, isto é, “um discurso que se debruça sobre um discurso sobre Deus”67. Seu “objeto imediato”, diz Geffré, “não será [mais] uma série de enunciados dogmáticos dos quais busco a inteligibilidade, mas o conjunto de textos compreendidos no campo hermenêutico da revelação”68.

Desta forma, a teologia “se guardará das armadilhas da representação conceitual [...] para seguir o caminho mais modesto e mais arriscado da interpretação que procede por aproximações sucessivas”, o que implicará numa concepção de verdade que é “menos da ordem da adequação entre o julgamento da inteligência e a realidade, que da ordem da atestação e ainda da interpretação incoativa da plenitude de verdade que coincide com o mistério da revelação divina”69.

Noutras palavras: “Adotar um modelo hermenêutico em teologia é sempre tomar como ponto de partida um texto: as Escrituras fundantes do cristianismo e as releituras destas feitas ao longo de toda a tradição eclesial”70 e estabelecer uma “correlação crítica entre a experiência cristã da primeira comunidade cristã e nossa experiência histórica contemporânea”71, levando a uma “atualização da experiência cristã fundamental da revelação”, o que implica num discernimento entre “as estruturas constantes da experiência cristã fundamental e os esquemas de pensamento”72.

Está em jogo aqui o “diálogo de um leitor com o texto”, no qual “não posso dissociar o aprofundamento do conteúdo da experiência cristã em sua expressão múltipla e o estudo mais rigoroso de nossa experiência histórica”73. A teologia “vive de uma anterioridade” (história do cristianismo) e “está sempre em devir” (passado – presente)74. Constitui-se como um “fenômeno de escritura” ou, mais precisamente, como fenômeno de “reescritura” em diferentes épocas e contextos a partir de “escrituras anteriores”75.

Leitura da Escritura

Uma teologia hermenêutica no sentido da “hermenêutica textual” de Paul Ricoeur, centrada na interpretação do “mundo do texto”, produz deslocamentos importantes na compreensão dos textos fundantes do cristianismo. Ela “quer ultrapassar a pretensa transparência do sujeito a si mesmo e busca uma compreensão de si mesmo que seja mediada por sinais, símbolos, textos narrativos”, tomando distancia “tanto em relação aos preconceitos ou ilusões positivistas de uma objetividade textual como em relação à ilusão romântica de uma congenialidade entre o leitor de hoje e o autor de um texto do passado”76. Para Ricoeur, “compreender-se é compreender-se diante do texto e receber dele as condições de um outro eu que aquele que vem à leitura”77. E isso tem muitas consequências para a interpretação da Escritura78.

Em primeiro lugar, uma hermenêutica centrada no “mundo do texto” e não no “querer dizer do autor” ajuda-nos a “ultrapassar uma concepção um pouco imaginária da revelação identificada com a inspiração concebida como insuflação de sentido por um autor divino”. Ela nos faz “levar a sério as formas de discurso propostas pela análise estrutural e compreender que os conteúdos da fé de Israel estão sempre estreitamente ligados às formas ou gêneros literários próprios da Bíblia Hebraica” (grifos nosso). Em sua própria “feitura textual”, a Bíblia aparece como “reveladora de um mundo”, isto é, ela abre um “ser novo em relação à minha existência ordinária do mundo”, engendra uma “nova possibilidade que é a fé e com ela a vontade de fazer existir um mundo novo”. De modo que “entre as formas do discurso e a compreensão de si do leitor é que se dá a abertura do mundo do texto” (grifos nosso)79.

Em segundo lugar, diz Gefrré, “uma hermenêutica centrada no mundo do texto respeita melhor o equilíbrio entre palavra e escritura”, frente à “tentação da teologia moderna” de “engrandecer a Palavra de Deus” e esquecer a “situação hermenêutica da primeira comunidade cristã”. Na verdade, “a relação ‘palavra-escritura’ é constitutiva daquilo que chamamos de querigma primitivo”. Ele tem um “papel mediador” entre o Antigo e o Novo Testamento que, por sua vez, constitui-se como mediação entre “a pregação da primeira comunidade cristã e a pregação da Igreja hoje”80. Frente à tentação ou obsessão fundamentalista de chegar a uma “palavra original” de Deus, somos obrigados a reconhecer que a “Palavra de Deus” é sempre mediada por “textos” ou “escrituras” que já são uma intepretação. De modo que “o trabalho do hermeneuta é interpretar uma interpretação”81.

Em terceiro lugar, e vinculado ao que se disse anteriormente, a hermenêutica textual de Rioceur mantém a “tensão entre as ciências da linguagem e a compreensão propriamente hermenêutica”. Supera a clássica oposição entre explicação e compreensão, procurando “conciliar as exigências da narratividade como forma de expressão da estrutura do relato com as exigências da hermenêutica como manifestação do sentido” e mostrando como “explicar mais é compreender melhor”. Neste sentido, vai se opor à corrente exegética que “contesta a postura hermenêutica e pretende fixar-se no sentido literal do texto contra toda reconstrução do texto”, sem com isso ceder à tentação romântica e abrir mão de uma “leitura instruída pela exegese histórico-crítica”82. O mérito maior de Ricoeur é mostrar como “palavra e escritura”, “explicação e compreensão”, “exegese e hermenêutica” se implicam mutuamente.

Releitura da tradição

Em boa medida, o conflito entre teólogos e magistério pode ser atribuído a uma “oposição entre uma leitura histórica e uma leitura dogmática [dogmaticista] da escritura”83, isto é, remete a “duas leituras históricas diferentes” da tradição. Geffré insiste em que é possível “fazer uma leitura de fé de documentos históricos sem cair numa leitura [...] dogmaticista, isto é, uma leitura não crítica que busca apenas na escritura e na tradição apoios textuais, força de autoridade para confirmar uma posição [...] já tomada”.

Para ele, a tarefa de uma hermenêutica teológica consiste precisamente em “discernir a experiência histórica subjacente a algumas formulações teológicas e que foram mais tarde consagradas por definições dogmáticas”. É o aspecto crítico da hermenêutica que se interroga sobre as “condições de produção dos textos do passado” – o que ele chama de “hermenêutica crítica” ou “hermenêutica da suspeita”84. Noutras palavras, “trata-se de desvendar os pressupostos conscientes ou inconscientes das interpretações históricas dominantes e de desmascarar os interesses em jogo que condicionaram a produção deste ou daquele discurso eclesial”85.

Mas isso não é suficiente. Não basta uma leitura crítica dos textos do passado. “É preciso empreender o mesmo trabalho crítico a respeito de nossas hierarquias de valores espontâneos hoje” e de sua “função ideologizante”, quer se trate do “poder central” ou de “grupos ditos minoritários” ou de “grupos de oposição”86. Certamente, pode-se “partir das formulações dogmáticas ulteriores para reler a escritura”. A Escritura deve ser lida em tradição. Mas “é preciso saber praticar a operação inversa, isto é, reler de maneira crítica a tradição, sobretudo aquela que deu origem a sistemas teológicos e resultou em formulações dogmáticas”. Trata-se, aqui, sobretudo, de “reler as definições dogmáticas à luz dos resultados menos contestáveis da exegese científica e de reinterpretá-las [...] em função de seu contexto histórico”87.

Com isso, diz Geffré, “não somos condenados ao processo da hermenêutica infinita, isto é, o mal infinito das interpretações que acabam por recolocar em questão toda pretensão de verdade”. É que, não obstante as “rupturas de nossa tradição histórica”, dispomos de alguns “critérios de interpretação” ou de um conjunto de “autoridades diferentes” que fazem com que “o campo hermenêutico aberto pela revelação cristã não [seja] indefinido”88. E, aqui, ele indica “três critérios para avaliar a exatidão da interpretação atual da mensagem cristã”:

  1. “Os textos da Escritura [...] como formas escritas do testemunho da experiência cristã fundamental”.

  2. “A tradição teológica e dogmática como testemunho da experiência histórica ulterior”.

  3. “O conteúdo de nossa experiência histórica hoje” que coincide com o que ele chama “comunicabilidade” e “recepção” e que corresponde ao que se chama sensus fidei e consensus fidelium89.

Relação com a prática

Frente à crítica, por parte das teologias política e da libertação e das chamadas teologias contextuais, das teologias hermenêuticas “serem apenas uma nova interpretação teórica do cristianismo e de não conduzirem a uma transformação efetiva do mundo e da história”, Geffré procura mostrar “em que sentido a nova orientação da hermenêutica, centrada no ‘mundo do texto’, não permite deter-se numa pura interpretação textual”, mas “conduz necessariamente a uma reinterpretação prática, a um fazer”90. Esse é um tema recorrente em sua obra91.

Para ele, não há oposição entre “hermenêutica do sentido” e “hermenêutica da ação”. A razão hermenêutica – filosófica e teológica – é também uma “razão prática”. E num duplo sentido: “conduz à ação” e “comporta necessariamente um momento de reflexão crítica sobre seus pressupostos ideológicos”92.

Por um lado, a razão hermenêutica não pode ser reduzida a uma “pura hermenêutica do sentido”. Ela tem necessariamente uma “dimensão prática”, no sentido de conduzir a uma “aplicação” (Gadamer) ou de uma “coadaptação entre um sistema de interpretação e um sistema de ação” (Ladrière) ou de atualização do “mundo do texto” (Rioceur). A “hermenêutica textual” de Rioceur, diz Geffré, não pode ser reduzida a “celebração de um certo tipo de mundo”, pois “o mundo do texto leva justamente o sujeito a atualizar suas capacidades, as mais próprias, em vista de uma transformação do mundo”93. De modo que uma teologia hermenêutica implica uma “dialética incessante entre teoria e prática”, na qual “a prática não é somente a verificação de um discurso teórico”, mas um “lugar teológico”, uma “fonte de sentido”, um “princípio de discernimento que nos convida a uma reinterpretação do cristianismo”. Neste sentido, chega a identificar os teólogos da libertação como “teólogos hermenêuticos” e as teologias contextuais como “teologias hermenêuticas”94.

Por outro lado, “a razão teológica como razão prática comporta finalmente um momento crítico em relação aos riscos de deformação na interpretação da tradição da Igreja”95. A expressão “razão prática” destaca a “importância das práticas sociais”. Ela está a serviço de uma “comunicação mais verdadeira entre as pessoas” e nos tor- na mais sensíveis ao “estatuto social e comunicacional da verdade”96. Frente a “uma hermenêutica demasiadamente ideal como aquela de Gadamer [que] pretende poder restituir para hoje o sentido permanente dos conteúdos de verdade da tradição”, Habermas mostra a necessidade de uma hermenêutica da suspeita que submeta a tradição à prova da “crítica das ideologias”. Isso nos ajudaria a “estabelecer critérios de validade da comunicação da verdade”, tão importantes no “trabalho sempre arriscado de comunicação da fé”, onde não se pode confundir “a verdade de uma proposição de fé, a justeza de um ensinamento moral [...] e a autenticidade de um testemunho”97.

Apreciação crítica

A tese da “teologia como hermenêutica” ou da “virada hermenêutica da teologia” tem o mérito de se enfrentar com a concepção de saber e de ciência que se impôs no século XX e de assumir, no âmbito da teologia e do fazer teológico, o caráter e o dinamismo histórico-hermenêuticos do saber/conhecimento. Isso levou à “passagem” ou “virada” de uma compreensão do intellectus fidei como “razão especulativa” (Aristóteles, Tomás de Aquino) para uma compreensão do intellctus fidei como um “compreender histórico” ou um “ato de compreensão hermenêutica” (Heidegger, Gadamer, Ricoeur) que leva a sério o fato de que “não há conhecimento do passado sem precompreensão e sem interpretação viva de si mesmo”98. Com isso, Geffré procura responder à pergunta sobre “o que vem a ser a razão teológica” num contexto de “ruptura” com a “antiga metafísica” e com as “filosofias do sujeito” e em que a filosofia “tende a tornar-se cada vez mais uma filosofia da linguagem”99.

Isso marcou de tal modo a teologia e o teologizar que não se pode mais pensar e fazer teologia sem levar a sério seu caráter histórico-hermenêutico-linguístico, isto é, sem passar pela “virada hermenêutica” que, por sua vez, é indissociável da “virada linguística” do pensar100. Certamente, esta compreensão linguístico-hermenêutica do pensar é muito mais complexa do que parece. Há diferenças enormes entre a compreensão hermenêutica de Dilthey, Heidegger, Gadamer e Ricoeur. E isso tem muitas implicações para a teologia e o teologizar, como bem demonstrou Geffré.

Em todo caso, e essa é a grande conquista da chamada “virada hermenêutica da teologia”, o intellectus fidei aparece cada vez mais como um “compreender histórico”, entendido como “ato de compreensão hermenêutica”. Neste sentido, fala-se com razão de “teologia como hermenêutica” ou de “virada hermenêutica da teologia”.

Além de corresponder a uma dimensão fundamental de todo saber, também teológico, a insistência nessa dimensão histórico-hermenêutica da teologia, torna-se particularmente relevante num contexto em que posturas fundamentalistas as mais diversas ganham espaço no universo religioso101. A “teologia hermenêutica” aparece neste contexto como reação e antídoto contra uma “teologia fundamentalista”. Talvez isso explique em boa medida a adesão e o entusiasmo, pouco críticos, à tese da “teologia como hermenêutica” e a reação quase instintiva de muitos teólogos a uma abordagem crítica dessa tese.

Mas a questão não é tão simples nem tranquila como pode parecer. E o próprio Geffré percebe isso ao insistir muitas vezes que uma teologia hermenêutica não abre mão da questão de Deus, da ontologia e da verdade102 e que uma teologia hermenêutica não se contrapõe a uma teologia prática103. Dois pontos cruciais no debate da tese da teologia como hermenêutica.

Por um lado, embora afirmando que “não há apreensão ou acesso imediato à realidade fora da linguagem” e consequentemente que a teologia enquanto ciência hermenêutica é “um discurso que tem por objeto um discurso sobre Deus”104, frente à crítica de relativismo da tese da teologia como teologia hermenêutica, Geffré faz uma série de ponderações e/ou advertências que termina relativizando a tese defendida e mostrando seus limites:

  1. – Mesmo que a teologia não trate diretamente de Deus, mas do discurso sobre Deus, “ela não deve praticar um completo ‘colocar entre parêntesis’ a questão de Deus”105.

  2. – Uma teologia hermenêutica “não renuncia à dimensão ontológica dos enunciados teológicos”106, embora esta seja pensada com Heidegger e Ricoeur a partir da função “ontofônica” da linguagem enquanto manifestação do ser107.

  3. – É verdade que “quem diz texto, diz comentário e quem diz comentário diz processo quase infinito da interpretação”, mas isso “não quer dizer que se renuncia a toda verdade como muitas vezes são censurados os hermeneutas”108 ; “...não somos condenados ao processo da hermenêutica infinita , isto é, o mal infinito das interpretações que acabam por recolocar em questão toda pretensão à verdade”109.

Tudo isso leva Geffré a ter que admitir que “o objeto da teologia, hoje como ontem, será sempre o mistério da realidade invisível de Deus”, embora advertindo que “não há discurso sobre Deus que não seja ao mesmo tempo um discurso sobre o homem em busca de Deus”110.

Por outro lado, frente à crítica das teologias política e da libertação e das chamadas teologias contextuais, Geffré se esforça por mostrar que na perspectiva da “hermenêutica textual” de Ricoeur, centrada na compreensão e apropriação do “mundo do texto”, não há contraposição entre “hermenêutica do sentido” e “hermenêutica da ação”111. Chega mesmo a afirmar que “a hermenêutica [...] não pode ser unicamente uma hermenêutica do sentido, isto é, uma hermenêutica que busca simplesmente interpretar textos e que não se preocupa com o que pode ser a prática da verdade manifestada para transformar o agir humano”112. Na verdade, diz ele, “o mundo do texto, o mundo que se desdobra sobre o texto, leva o sujeito a atualizar seus possíveis mais próprios em vista da transformação do mundo”, de modo que “a hermenêutica do sentido ou a hermenêutica dos textos conduz a uma certa prática social e até a uma certa prática política”113. Mas a formulação é ambígua. Além de tratar as teologias da práxis como “hermenêutica da ação”114, reduzindo-as a hermenêutica ou interpretação, embora fale de uma “dialética incessante entre teoria e prática”115 e admita que “a prática não é apenas a aplicação [...] ou a verificação de um discurso teórico”, mas seja em si mesma “matriz de sentido”, “lugar teológico”, “fonte de sentido”, “princípio de discernimento”116, em geral, fala do vínculo entre sentido e ação em termos de mera relação externa: “aplicação” (Gadamer), “coadaptação” (Ladriere), “atualizar”, “conduzir” (Ricoeur)117. É a dificuldade teórica de assumir de modo consequente a “dimensão prática” da hermenêutica118.

Tudo isso mostra que a tese da “teologia como hermenêutica” ou da “virada hermenêutica da teologia”, não obstante seus méritos incontestáveis e irrenunciáveis, não só não esgota a problemática do intellectus fidei enquanto intellectus, que nem se reduz a interpretação nem se vincula com a práxis meramente a modo de aplicação ou atualização, mas reclama e remete a uma concepção mais ampla e complexa de intellectus que assuma o momento hermenêutico, no que tem de próprio e irredutível, no contexto mais amplo da intelecção humana.

É importante deixar bem claro que não contestamos o caráter histórico- hermenêutico da teologia e, consequentemente, nossa crítica nada tem a ver com uma postura fundamentalista que nega a historicidade do saber e da verdade. Não discutimos a historicidade do saber e da verdade nem negamos um aspecto hermenêutico no saber. Todo saber é histórico e tem uma dimensão hermenêutica. O que problematizamos, a partir de Zubiri, é a compreensão idealista de história como transmissão de sentido119 e de intellcutus como interpretação de sentido120.

Certamente, história tem a ver com sentido, na medida em que o que se transmite tem/adquire sentido na vida humana, mas não se reduz a transmissão de sentido. Aliás, o sentido, enquanto sentido de algo, supõe sempre esse algo e se fundamenta nele. E, certamente, intellectus tem a ver com interpretação de sentido, na medida em que faz parte do processo intelectivo compreender e explicitar o sentido das coisas apreendidas. Mas a compreensão e explicitação do sentido, enquanto sentido da coisa, supõe sempre e se fundamenta em sua apreensão como “realidade”121. De modo que não se pode identificar sem mais história com sentido e intelecção com interpretação de sentido.

Noutras palavras: O que problematizamos aqui não é a hermenêutica enquanto tal ou o aspecto hermenêutico do saber/conhecimento, mas a redução do intellectus a hermenêutica. Está em jogo a compreensão mesma de intellectus ou de intelecção que, como bem mostrou Zubiri, não consiste formalmente em “interpretação de sentido”, mas em “apreensão de realidade”122: É um ato de “apreensão” e não simplesmente um ato de “interpretação” (interpretação é apenas um modo de apreensão). E o que se apreende não é simplesmente nem mesmo em última instância o “sentido” da coisa, mas a coisa como “realidade” (a apreensão do “sentido” é uma apreensão ulterior fundada na apreensão da coisa como “realidade”).

A historicidade do saber/conhecimento não se reduz à problemática da interpretação de sentido. Ela diz respeito em última instância a seu caráter práxico no duplo sentido de momento da práxis (modo humano de se enfrentar com as coisas) e de momento práxico (“apropriação de possibilidades” intelectivas que, por sua vez, desencadeia um processo de “capacitação” intelectiva). Isso nos permite superar uma visão idealista do saber/conhecimento, centrada na interpretação de sentido (intelecção = hermenêutica), por uma concepção práxica do saber/conhecimento, centrada no modo humano de se enfrentar com as coisas, sem negar nem comprometer seu momento hermenêutico irredutível (práxis – intelecção – hermenêutica). Foi o caminho tomado por Ignacio Ellacuría123, cujo desenvolvimento, embora pressuposto aqui na crítica que esboçamos à tese de Geffré da “teologia como hermenêutica”, extrapola os limites e os propósitos desse trabalho.

Referências

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Notas

* Artigo de investigação.

1 Grandin, Hermenêutica; Schmidt, Hermenêutica; Aquino Júnior, “A história da hermenêutica segundo Paul Rioceur”, 154-185; Aquino Júnior, “Hermenêutica segundo Paul Rioceur”, 29-41.

2 Suárez M. e Noratto G., La racionalidad hermenéutica en teología, 103-129.

3 Ver a respeito Panasiewicz, Pluralismo religioso contemporâneo. Diálogo inter-religioso na teologia de Claude Geffré; Silva, “Crer, compreender e interpretar. Claude Geffré e a descontrução crítica do cristianismo”.

4 Ver Geffré, Crer e interpretar: A virada hermenêutica da teologia.

5 Geffré, Un nouvel âge de la théologie.

6 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica.

7 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia.

8 Ibid., 23.

9 Greisch, L’âge herméneutique de la raison; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 10.

10 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia.

11 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 17.

12 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia.

13 Ibid., 29.

14 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 17.

15 Ibid., 64.

16 Ibid., 63.

17 Ibid., 65; Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 35; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 13.

18 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 67.

19 Ibid., 63.

20 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 35, 50; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 13.

21 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 65.

22 Ibid., 65s.

23 Ibid., 66s.

24 Ibid., 67.

25 Ibid., 68.

26 Ibid., 10.

27 Ibid., 68.

28 Ibid., 87.

29 Ibid., 68-70.

30 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 23s.

31 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 63.

32 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 30; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 10.

33 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 24.

34 Ibid., 30.

35 Ibid., 31.

36 Ibid., 32; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 12.

37 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 32.

38 Geffré, “Sentido e não sentido de uma teologia não metafísica”.

39 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 12.

40 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 32s.

41 Ibid., 33s.

42 Ibid., 38.

43 Ibid., 39.

44 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 14.

45 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 70.

46 Ibid., 73.

47 Geffré, “Sentido e não sentido de uma teologia não metafísica” 784.

48 Ibid., 786.

49 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 74.

50 Geffré, “Sentido e não sentido de uma teologia não metafísica” 785.

51 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 20.

52 Ibid., 73-76.

53 Ibid., 32.

54 Ibid., 32.

55 Ibid., 33s.

56 Ibid., 32.

57 Ibid., 31.

58 Ibid., 48s.

59 Ibid., 50.

60 Ibid., 51.

61 Ibid., 52.

62 Ibid., 53.

63 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 11, 12, 14, 25.

64 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 23.

65 Ibid., 32.

66 Ibid., 33.

67 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 12.

68 Ibid., 14.

69 Ibid.

70 Ibid., 13.

71 Ibid., 15.

72 Ibid., 16.

73 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 42.

74 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 55.

75 Ibid., 64s.

76 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 44.

77 Ibid., 45.

78 Ibid., 45-49; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 18-20.

79 Ibid., 18.

80 Ibid., 19.

81 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 44.

82 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 19.

83 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 49.

84 Ibid., 50.

85 Ibid., 51.

86 Ibid.

87 Ibid.

88 Ibid., 52.

89 Ibid., 52s.

90 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 60.

91 Ibid., 27-29, 50-61, 81-83, 274-276; Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 44-57; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25-26.

92 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25.

93 Ibid., 25.

94 Ibid., 25s.

95 Ibid., 26.

96 Ibid.

97 Ibid.

98 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 24.

99 Ibid., 30.

100 Ibid., 30.

101 Ibid., 83-129.

102 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 85-88; Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 33ss, 37-39, 51; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 12, 13, 14, 15, 32.

103 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 28s, 30s, 59-61, 83; Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 54-57; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25s.

104 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 33.

105 Ibid., 33; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 15.

106 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 37s; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 13, 14.

107 Geffré, Como fazer teologia hoje. Hermenêutica teológica, 29, 46, 51; Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 39; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 14.

108 effré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 39.

109 Ibid., 51s; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 32.

110 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 33.

111 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 54-57; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25-26.

112 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 54.

113 Ibid., 54s.

114 Ibid., 54; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25.

115 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25.

116 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 55; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25s.

117 Geffré, Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia, 54s; Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25.

118 Geffré, “A teologia fundamental como hermenêutica”, 25.

119 Zubiri, Tres dimensiones del ser humano: individual, social, histórica, 71-101, 105-1668.

120 Zubiri, Inteligencia sentiente: Inteligencia y realidade; Zubiri, Inteligencia y logos; Zubiri, Inteligencia y razón; Aquino Júnior, A teologia como intelecção do reinado de Deus: O método da teologia da libertação segundo Ignacio Ellacuria, 215-245.

121 Zubiri, Sobre la esencia, 103-108, 402.

122 Zubiri, Inteligencia sentiente: Inteligencia y realidade, 59s.

123 Ellacurria, “Hacia uma fundamentación del método teológico latino-americano”, 187-218.

Autor notes

a Autor correspondente. Correio eletrônico: axejun@yahoo.com.br

Informação adicional

Como citar: Aquino Junior, Francisco de. “Teologia como hermenêutica: Por um diálogo crítico-criativo com Claude Geffré”. Theologica Xaveriana (2021): 1-23. https://doi.org/10.11144/javeriana.tx71.thdcccg

Reconocimiento: Este trabalho é parte da pesquisa do estágio pós-doutoral em teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE, sobre a relação teologia-hermenêutica sob a supervisão do professor Nilo Ribeiro. O projeto começou em outubro de 2018 e terminou em abril de 2020.

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