Ética espacializada enquanto mundos possíveis: ensaios sobre bioética em um conjunto habitacional limeirense*

Ética especializada en cuanto mundos posibles: ensayos sobre bioética en una vivienda popular limeirense

Spatialized ethic as possible worlds: essays on bioethics in a popular housing project in Limeira city

Vitor Sartori Cordova

Ética espacializada enquanto mundos possíveis: ensaios sobre bioética em um conjunto habitacional limeirense*

Universitas Humanística, vol. 92, 2023

Pontificia Universidad Javeriana

Vitor Sartori Cordova a

Universidade Estadual de Campinas, Brasil

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Brasil


Recepção: 30 Abril 2022

Aprovação: 19 Novembro 2023

Publicação: 30 Dezembro 2023

Resumo: Na pandemia, surgiram demasiadas reflexões relacionadas às urgentes formas de habitar eticamente o planeta. Propunham posicionamentos radicais que vislumbravam o fim do capitalismo. Porém, este salto centrou-se numa explanação verticalizada dos arranjos sociais, dado que o determinismo econômico arrogava-se uma interpretação dos lugares aonde estes arranjos eram concretizados. Portanto, a requerida busca por mais empatia com o planeta, este lugar habitado pelos humanos, sofreria de certo niilismo, o qual desconsideraria a potência das alternativas praticadas pelo senso comum. Assim, este artigo não discute demais possibilidades éticas para a renovação desta empatia neste vívido lugar. Apenas enfatiza que esta empatia subsiste em locais desconsiderados para tal empreitada, como nos conjuntos habitacionais populares. Desta forma, pretende-se discutir, com os relatos dos moradores do Conjunto Habitacional “Rubi” da cidade brasileira de Limeira, que a fundação de lugares éticos já é vivida nas situações que sentem na luta pela sobrevivência social, salutar e habitacional.

Palavras-chave:bioética, conjunto habitacional Rubi, município de Limeira-SP.

Resumen: Durante la pandemia, abundaron las reflexiones en relación con la apremiante necesidad de propuestas para habitar éticamente el planeta. Se contemplaron posturas radicales que vislumbraban el fin del capitalismo. Sin embargo, todo se redujo a una explicación vertical de las medidas de control social, dado que el determinismo económico se apropió de una interpretación de los lugares destinados a aplicar esas medidas. Por lo tanto, la demandada búsqueda por una mayor empatía con el planeta, este lugar habitado por los humanos, padeció de cierto nihilismo, que despreció la potencia de las alternativas practicadas por el sentido común. En vista de esto, el artículo no discute otras posibilidades éticas para la renovación de la empatía con este vívido lugar. Más bien, enfatiza que la empatía subsiste en lugares despreciados para ese propósito, como lo son los conjuntos habitacionales populares. De este modo, pretende discutir con los relatos de los habitantes del Conjunto Habitacional Rubí de la ciudad brasileña de Limeira, donde la fundación de lugares éticos ya es vivida en las situaciones que sienten en la lucha por la supervivencia, la salud y la vivienda.

Palabras clave: bioética, vivienda popular Rubí, ciudad de Limeira-SP.

Abstract: In the current pandemic scenario, it had arisen too many reflections related to the urgent ways of inhabiting the planet in an ethical way. They had proposed radical positions that envisioned the end of capitalism. However, this leap focused on a vertical reading of the social arrangements, given an economic determinism interpretation of the places where these arrangements were made. Therefore, the required search for more empathy with the planet, this place inhabited by humans, would suffer from a certain nihilism, which would disregard the power of alternatives practiced by common sense. Thus, this article does not discuss other ethical possibilities for the renewal of this empathy in this vivid place. It only emphasizes that this empathy subsists in places disregarded for such an undertaking, as in the low-cost house projects. In this way, it is intended to discuss, with the reports of the residents of the vertical lower income house named as “Rubi” in the Brazilian city of Limeira, that the foundation of ethical places is already experienced in the situations they feel in the struggle for social, healthy and housing survival.

Keywords: Bioethics, Rubi Popular Housing Project, City Of Limeira-SP.

Introdução

Em entrevista ao periódico O Globo (Sousa Gabriel, 2021), o filósofo italiano Massimo Cacciari declarou certa incredulidade quanto a uma mudança efetiva do mundo pós-pandemia. Para ele, o quadro da COVID-19 não realçou uma guinada a uma consciência global sobre os problemas ambientais, nem à necessidade de uma ponderação da política neoliberal e muito menos à reconsideração do quanto uma pandemia se interconecta com outros agravantes sociais. Vide a afirmação dos setores da comunicação no equilíbrio econômico financeiro e de uma contínua aceitação de sacrifícios humanos sob a regência de necropolíticas (Mbembe, 2018). Tal cenário se agrava, segundo Cacciari, quando releva-se a crise do espaço público na própria Europa, perpetrada pelo fechamento dos lugares de participação e discussão coletiva instanciados pelo poder democrático.

Sem embargo, em plena pandemia, é possível averiguar sinais de obstinação a estas situações. Na América do Sul, continente extremamente afligido (vide Brasil), crescem as resistências populares de cunho étnico (e gênero) quanto às injustiças dos seus respectivos governos em tratar-lhes de forma ainda mais discriminada. Soma-se o fato de que o esvaziamento do espaço público, devido à pandemia, flertou-se com um pífio discurso em vista da necessidade de muitos trabalhadores saírem de suas casas para trazerem o sustento às suas famílias ou da crescente onda de protestos frente às inexequibilidades políticas (Santos, 2020). Portanto, o artigo intenta encontrar elementos de resiliência para a reconsideração deste espaço no que compete a analisar a condição dos sujeitos em situação com ele, ou seja, sujeitos em que seus corpos emergem no campo da aparição enquanto absorção dos contatos com o mundo na luta por alimentação, trabalho, educação, saúde e no desenvolvimento da socialização (Ribeiro, 2014).

Para este intento, o texto valida-se das narrativas de moradores de conjuntos habitacionais. Mesmo que sua periferização na malha urbana denote um processo de esvaziamento deste espaço público –e que incida diretamente na distante localização destes empreendimentos–, é possível averiguar que um ideal de cidade ainda é buscado nas falas de seus residentes. Este ideal se interconecta a seus modos de vida, os quais mantêm fortes os vínculos com os lugares em que viveram e constituíram laços sociais, urgindo a discussão do termo lugar no campo das cidades intermediárias para além da pauta econômica.

Como exemplo, no estado de São Paulo (foco do artigo) –região sudeste brasileira–, esta narrativa econômica relaciona-se com a distribuição de mão de obra a partir do paradigma da desconcentração produtiva da década de 1970, difundindo uma massa de pessoas às cidades médias e pequenas de sua jurisdição que aportavam sincronicamente com os setores produtivos secundários e terciários (Cano, 2008). Ademais, neste cenário produtivo, estas localidades urbanas foram paulatinamente espraiando seu raio de influência política para outras menores e sensivelmente dependentes.

Concomitantemente, as monoculturas teriam um papel fundamental, pois suas demarcações territoriais (fundação de núcleos urbanos) acentuariam um enorme arcabouço de dívidas histórias não sanadas, como na abertura de caminhos para a exploração aurífera ou captura de mão de obra escravizada indígena –que culminou no massacre de várias populações nativas ao mesmo tempo que constituía a rede urbana brasileira de caminhos entre o litoral e o sertão (séculos XVI-XVIII)–, ou a injusta expulsão de trabalhadores rurais de suas terras para servirem como mão de obra assalariada nos complexos agroindustriais (séculos XIX-XX).

Por conseguinte, concorda-se que o termo cidade intermediária tenha sim fatores econômicos acentuados, vide o próprio fenômeno do espraiamento que também foi responsável pela dispersão da malha urbana a partir de outro episódio de cunho especulativo: os vazios urbanos. Todavia, reitera-se que, nestes tipos de análises, é considerado que tais cidades intermediárias carregam consigo um paradigma urbano firmemente calcado em análises materialistas históricas, as quais olvidam um ecossistema de vidas humanas que abrangem muito mais situações que os limites municipais conseguem abarcar.

Em outras palavras, estas análises ainda não compreenderam os problemas com a mal resolvida intersecção com o rural, com a de outras cidades (que servem de ponto de interconexão aos seus bairros mais periféricos), com os modos de vida de outras regiões do país e, como tema central deste trabalho, com os enredos construídos pelas pessoas na compreensão das suas situações vividas além do designado pela racionalização de seus modos de ser. Este é o caso dos conjuntos habitacionais populares que, além de servirem como moradia à massa de trabalhadores sem pecúlio, são almejados como parâmetro civilizacional sobre o habitar uma cidade.

Para tais reflexões, será realizada uma breve exposição dos indicadores que influenciaram as ações do âmbito urbanístico na construção das habitações populares na cidade de Limeira, interior do estado de São Paulo e, por conseguinte, uma análise, a partir da coleta de depoimentos dos moradores do Conjunto Habitacional Rubi situado nesta cidade, com o escopo de averiguar se este sentimento de espaço público desapareceu ou ainda nutre alguma esperança no contato entre os residentes. Serão utilizados alguns relatos nos quais os seus respectivos expoentes foram denominados como Moradores n°1, 2 e 3.

A formação urbana de Limeira: a métrica histórico-econômica das moradias populares

A cidade de Limeira originou-se no início do século XIX, resultado da abertura de uma estrada que ligava Campinas à Piracicaba (Busch, 1967). O município localiza-se na região sudeste do Brasil, porção leste do estado paulista. Por possuir uma complexa malha viária, o município está inserido em um influente polo industrial que não só proporciona uma diversidade produtiva como apresenta importante expressão econômica no estado, influenciando as dinâmicas socioespaciais e intra-urbanas de munícipios contíguos (Manfredini, 2010). Para tanto, compreende-se uma forte articulação por eixos rodoviários (Rodovias Anhanguera e Bandeirantes) delineados pela, hoje, Região Metropolitana de Piracicaba (Queiroz, 2007).

Analisando-a economicamente, é visível a importância da cafeicultura que se prolongou pelos séculos XIX e XX (Dean, 1977). Tempos depois, ganharia contribuições da industrialização acompanhada pela expansão da economia açucareira e cítrica. Ainda em meados do século XIX, devido à expansão da produção cafeeira, haveria a emergente necessidade de escoamento da produção, tendo-se a abertura de estradas importantes. Sendo assim, a ferrovia (Companhia Paulista de Estradas de Ferro) chegaria em Limeira entre os anos de 1862 e 1867, obtendo investimentos do capital mercantil os quais não destoavam do âmago latifundiário-monocultor.

Esta ferrovia seria responsável pelo transporte de café, de outras mercadorias e de passageiros do interior à capital do estado (Ghirardello, 2010). O café transportado foi o grande responsável pela ampliação e consolidação das fortunas locais, promovendo uma solidificação no sistema latifundiário e configurando os espaços sociais dentro das relações produtoras capitalistas tendo, como corolário, a supervalorização das terras e a impossibilidade de adaptação das classes menos favorecidas às condições impostas pelo sistema econômico (Maricato, 1982).

Isto evidenciava uma cidade para poucos, visto que o gerenciamento econômico mal se atentava com o planejamento urbano, isto é, significava que hospitais, escolas, entre outros equipamentos urbanos que poderiam beneficiar o grosso da população, não foram considerados em seu desenho urbano (Cordova, 2014). Os fatores negativos não tardariam a chegar. Um deles seria a valorização da terra, decorrente da expansão econômica atrelada à cafeicultura que estruturaria a configuração urbana (Angelo, 2018). As consequências seriam inúmeras, como: a) a manutenção do paradigma centro-periferia, dado que as piores áreas municipais seriam reservadas à habitação da população de baixa renda; b) inchaço da malha urbana, fruto do aumento do fluxo de automóvel ou do fator migração (rural-rural e rural-urbano); c) aumento do perímetro urbano com seu avanço às áreas de pequenos e médios produtores rurais, os quais são forçados a vender suas propriedades à grandes empreendedores imobiliários; e d) um planejamento urbano deficitário dado que este ficaria à mercê das necessidades do capital, uma vez que o interesse estaria na aquisição de áreas de terra barata.

É possível constatar a densidade destes impactos em Limeira mormente dentre as décadas de 1960 e 1990, quando haveria um crescimento populacional (e econômico) acentuado, resultado da ampliação industrial por intermédio do setor mecânico (Cano, 1977). Como exemplo, a partir de 1960, haveria a expansão e a consolidação de empresas já existentes e a chegada de novas como as do ramo de peças e de equipamentos metalúrgicos (Negri, 1994). Ter-se-ia assim um grande aumento da população dessa região entre os anos de 1980 a 1996, incrementando a sua participação no contingente populacional paulista. Este aumento demográfico teria a sua origem na maneira como Limeira se tornaria relevante no setor secundário da economia, transformando-se em um polo migratório atrativo (Manfredini, 2005).

Vale ressaltar que Limeira passa a ser vista, após a década de 1990, como a capital da bijuteria, possuindo um número expressivo de indústrias do ramo e sendo essa uma das principais atividades econômicas geradora de empregos da região (muitos terceirizados e precários) (Vilela & Ferreira, 2008). Pelo momento favorável do mercado de trabalho pelo qual a cidade passaria a partir dos meados da década de 1990 com este setor, a tentativa de absorção da massa trabalhadora, ou melhor, a vertigem da criação suficiente de empregos para a mesma, fez com que o contingente demográfico continuasse aumentando (Sampaio, 2002). Contudo, o aumento dessa oferta não foi o suficiente para atender a demanda. Este fato se tornaria ainda mais grave quando o quesito habitação se apresentou como problema após o fim do Programa do Banco Nacional de Habitação (BNH),1 tendo-se uma grande defasagem na construção de moradias de subvenção para a população de baixa renda (Angelo, 2018; Bonduki, 1998).

Além disso, haveria os contratempos advindos por parte do poder público quanto a instrumentos legislativos competentes para que houvesse um replanejamento das ações do plano diretor. Exemplificando, a forma como eram alocados os loteamentos residenciais e conjuntos habitacionais pelo município para atender as exigências dos programas federais e estaduais, se limitaram a corresponder este quesito através da abertura de loteamentos, isto é, na conversão de terras rurais em urbanas (Silva, 2016). Quando isso não era possível, esta conversão era “negociada” com os pequenos sitiantes localizados nessas áreas compreendidas como perímetro urbano.

Esta “negociação” se dava conjuntamente com o crivo das grandes empreendedoras da área de construção civil, as quais tinham suas bases na capital paulista ou na cidade de Campinas (58km de Limeira). As mesmas guardavam grandes interesses em formar um banco de terras nestas cidades médias (e pequenas) devido ao preço do solo urbano ser menor em relação aos grandes centros, retendo estas glebas para que, futuramente, as mesmas se valorizassem para alguma empreitada do ramo. Isso tudo corroboraria para que boa parte dos Empreendimentos de Habitação de Interesse Social (E.H.I.S.) fossem localizados nas zonas periféricas, aumentando ainda mais a segregação social, pois espacial (Angelo, 2018).

Por intermédio deste bojo histórico de expansão é que se concentraram alguns empreendimentos residenciais populares do município e, mais precisamente, o Conjunto Habitacional Rubi. O empreendimento habitacional, originado no ano de 2015 e findado em dezembro de 2017, divide-se entre os condomínios Rubi I e II destinados a famílias com renda de até R$ 3.275,00 da Faixa 2 do Programa do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida” (totalizando-se dois condomínios residenciais com 352 apartamentos cada, ou seja, 704 unidades); e Rubi III, IV e V, Faixa 1 do mesmo programa destinados às famílias com renda de até R$ 1.600,00 (totalizando-se três condomínios residenciais com 300 apartamentos cada, isto é, 900 moradias).

Sua localização na malha urbana, ou seja, periférica, evidencia não só a tendência de esvaziamento populacional do centro limeirense (processo que envolve a construção de loteamentos e condomínios de alta renda e o fenômeno da verticalização). Também não só aponta que o crescimento de Limeira (e da confecção destas moradias) acompanha as atuais formas de dispersão urbana, isto é, impulsionada por vazios, o qual seria um processo de produção descontínuo do espaço que decorre da relação entre expansão urbana e retenção de terra especulativa (Sposito, 2001, 2007). Mas, salienta que o adensamento das áreas periféricas converge-se na urgência da reflexão do quanto este fator guarda de dívidas históricas (vide o tema da mobilidade urbana engessado em um enredo estruturalista que só compreende o deslocamento entre casa e trabalho, seja pelas grandes racionalidades econômicas, urbanísticas ou por outros ramos conhecidos pela crítica histórico materialista/dialética), e do quanto estas dívidas influem na resiliência de uma urbanidade emergida dos modos de vida do local.

O Rubi: a resiliência espacial da facticidade corpórea na indiferença metódica urbanística

Compreender um conjunto habitacional de grande diversidade contingencial é semelhante a adentrar um labirinto. Em uma cidade como Limeira, que guarda uma relativa taxa de mobilidade urbana intra e intermunicipal, a tarefa intrinca-se ainda mais. São pessoas de várias regiões do estado e do país, isso sem contar o contingente que se deslocou por anos entre seus bairros até conseguirem seu imóvel. São várias situações de vida, perspectivas e sentimentos envolvidos em um raio de poucos quilômetros que, ao crivo do planejamento burocrático, se resolvem com simples adequações da vida privada.

Estas adequações da privacidade convergem no fato de encarar a vida íntima como um fim em si mesma. Este fim, claramente, denuncia a própria falência do pensamento (urbano) moderno quando encara as experiências (práxis) em uma concatenação da vida “interior” como balizadora das interpretações com a “exterior”. Esta experiência interiorizada se torna tão delicada, pois nostálgica e romantizada, que a mesma sucumbe aos mínimos embates sociais com as alteridades ou é facilmente cooptada por instâncias mal intencionadas.

Assim, os sentimentos de fuga e de medo se tornam comuns no que compete a proteger o passado (Bauman, 2004). Entretanto, esta proteção acaba se tornando um fardo do “eu” ao próprio “eu”. Ao permanecer absorto, o mundo privado (que, ironicamente, precisa da experiência com o público para ser valorado), pouco comporta uma explicação possível da personalidade subjetiva, já que a psique aqui é pouco estimulada para expressar os sentimentos instados nela própria (Sennett, 1998). Este tipo de situação é perceptível em algumas falas dos moradores do Rubi.

Como exemplo, a Moradora n°1, natural de Limeira, morou boa parte da vida na área rural do município. Exercia, desde pequena, as funções de lavradora. Conta que a mudança para a cidade se deu quando seu pai ganhou em um “joguinho” da loteria e conseguiu construir uma casa no bairro Jardim Boa Vista. Já tinha 7 anos. Trabalhava com o pessoal que o pai arregimentava na roça para prestar serviços aos sitiantes, fazendeiros ou usineiros da região. Cortava cana e, com 16 anos, casou-se por determinação familiar. Quando se mudou com o marido, residia mais uma vez na zona rural, exercendo os mesmos encargos que antes. Após o falecimento do pai, se separou do cônjuge e mudou-se para a cidade de Araras (distante 30km de Limeira) com sua filha, retornando a Limeira para novamente trabalhar no campo e de empregada doméstica.

Ficou sabendo do Rubi através de seu círculo de amigas, as quais atestaram o empreendimento via Facebook. Desacreditada, apostou a contragosto na inscrição, porém, acabou sendo contemplada. A sensação quando “colocou as mãos nas chaves” foi de grande alívio por sair do aluguel. Todavia, conta que esta felicidade esvaiu-se rapidamente devido à distância do Rubi a outras localidades da cidade, o cenário ermo do descampado e, por conseguinte, o sentimento de solidão.

Na hora em que chegamos aqui achamos tudo lindo, maravilhoso. No primeiro dia todo mundo naquela folia. Aquela felicidade toda. Nossa! Foi uma sensação do tipo: “Consegui! Consegui!”. Mas, aí, foi uma semana só esta felicidade. As pessoas foram todas ficando com depressão e eu, saía assim na janela, e chorava. Olhava e chorava, porque não tinha ninguém. O fato não é só porque aqui é afastado, mas assim, das próprias pessoas do condomínio. Você não tem ninguém! (Comunicação pessoal, 5 de outubro de 2021)

A Moradora n°2 relataria algo semelhante. Também de Limeira, residira na infância no bairro Parque Hipólito. Os pais, naturais de Minas Gerais (assim como os da Moradora n°1), vieram exercer os cargos de mão de obra braçal. O pai havia sido pedreiro, frentista e operário na Companhia União dos Refinadores, Açúcar e Café (conhecida pelo nome fantasia “Açúcar União”). Já a mãe era empregada doméstica e também trabalhou na mesma companhia refinadora. Após seu casamento, se mudou para São Paulo, retornando tempos depois a Limeira.

Na época em que pagava aluguel, ficou sabendo do Rubi através de uma amiga que estava fazendo a inscrição para conseguir um apartamento. Quando se mudou, conhecia algumas pessoas de bairros aonde havia residido e que estavam contempladas com um apartamento na localidade. No entanto, o problema da distância do conjunto habitacional, inicialmente, não lhe pareceu tão sintomática, pois afirma que “nunca foi de sair muito” e que “para conversar com amigos e conhecidos é pelo telefone mesmo”. As poucas vezes que encontrava os conhecidos pelo condomínio cumprimentava-os com um “Oi”, pois percebia que estes estavam sempre na “correria”.

Mas era quando precisava arregimentar estratégias para levar os filhos na escola que o aspecto da solidão pesava. Ao tomar contato com alguns problemas do local, como o uso de entorpecentes, este sentimento aflorava na impossibilidade de se comunicar de forma segura com os demais não só pelo horário de trabalho, mas quando procurava alternativas de convívio aos filhos.

Minha rotina aqui é levar meu menino na escola e voltar para casa. Nestes últimos 9 meses, em que estou parada em casa, está sendo assim. [...] Como o Rubi é meio afastado, aqui não tem muitas áreas de lazer. Então, eu só costumo ir para a casa de parentes no Parque Hipólito ou no Nova Suíça [bairros de Limeira] onde dois filhos meus, que já se casaram, moram. Hoje, só dois filhos moram comigo: um que vai fazer 10 anos e estuda na escola municipal, e outro com 14 anos que já estuda na escola estadual. (Comunicação pessoal, 10 de fevereiro de 2022)

Majoritariamente, o quesito da distância é um agravante aos moradores do local. Não só pela dificuldade em se deslocarem ao centro ou ao principal hospital público (Santa Casa de Misericórdia de Limeira), mas pelo afrouxamento dos laços sociais. Esgarçamento este que percorre uma fragilidade em manter os antigos vínculos familiares e na própria interpretação da vida no conjunto habitacional. Isto, pois a esperança criada com a mudança para a nova casa, a partir da ideia de satisfação interna, faz emergir uma imaginação de uma vida em sociedade onde alguns requisitos são conotados a responderem as expectativas individualmente criadas na mesma intensidade. Isto é compreensível dada a distância e a estranheza com pessoas que nunca foram vistas antes, porém, faz aumentar inevitavelmente o senso de decepção pelo mundo exterior que parece, substancialmente, vazio.

Ainda que alguns contatos possam ser criados nos novos mecanismos técnico-científico-informacionais por intermédio de aplicativos de comunicação como o WhatsApp, o espaço de convívio fica refém ao fenômeno do “rito de passagem” dada a velocidade ou efeméride dos assuntos abordados. Como nenhuma ação ou acontecimento na vida humana escapa a uma certa racionalidade (ou conformidade), esta velocidade acaba se tornando sinônimo de coisificação banal em que o outro é encarado em uma representação despersonalizada, isto é, se transubstancia no utilitarismo. Fato que vai se concatenando nas representações concretizadas no espaço público, alocados agora à semelhança de qualquer sistema perito do âmbito funcional. Melhor dizendo, se o outro é dado através de sua utilidade, o espaço social vai se correspondendo da mesma forma (Sennett, 1998). São dispostos assim sistemas de competência profissional (sistemas peritos) os quais se tornam responsáveis pela organização das áreas comuns (Giddens, 1991). Fenômeno averiguável quando alguns moradores do Rubi relatam a falta de convívio na medida em que se veem não somente com pouco tempo para dialogar (“correria”), mas na impossibilidade de trocas de experiências devido ao esvaziamento de sentido ou de interesse pelo outro em consequência da imposição do discurso destes sistemas peritos.

Como relataria Giddens (1991), estes sistemas peritos tornam-se mecanismos de desencaixe, pois removem as relações sociais de seus contextos e de proximidade na proporção em que fornecem garantias de expectativas de mecanismos impessoais que avaliam a sua forma de funcionamento (testes, experimentos). Assim, há a supressão do lugar (o da práxis), e não uma vivência compartilhada. Os corpos se encontram na medida da interconexão feita com as assertividades destes sistemas: em algum ponto de ônibus, comércio ou reuniões condominiais. Estas assertividades também fazem com que as ruas da cidade e do conjunto habitacional fiquem cada vez mais constrangidas ao fluxo veloz como o das informações, transformando-se em artérias ou ruas coletoras do tráfego interligadas às áreas de serviços, lazer, etc.

Velocidade que se torna sinônimo de ansiedade enquanto remetida à satisfação por meio do consumo de objetos que facilitem o acesso a esta fluência (como os celulares), tornando-se estes o novo meio de inserção (racional) do sujeito no espaço público como cidadão (Bauman, 2004). Os não-partícipes são coagidos por não se adequarem a estas tecnologias, favorecendo um quadro de exclusão. Soma-se a isso o fato do surgimento do sentimento de tédio no âmago de socialização dos “mais astutos”, nas quais a identidade, quando maciçamente homogeneizada, só é relevante na medida em que expõe grosseiramente a intimidade. Quando esta se esgarça, o desinteresse aflora e a indiferença impera em relação ao outro e ao entorno (Sennett, 1998). Ou, como dito pela Moradora n°2, quando questionada sobre o que pensava da localização do empreendimento quanto à distância de outros lugares que viveu em Limeira: “A gente fala que é o fim do mundo, mas, depois de um ano, a gente se acostuma”.

Desta maneira, como ressubjetivar a noção de espaço público em meio a este campo deflagrado? Pode-se encontrar pistas no relato do Morador n°3. Este é do interior do estado de Minas Gerais. Trabalhava na prefeitura de sua cidade natal na área de serviços gerais e, os pais, na roça. Quando mais velho, saiu desta localidade para morar no estado do Paraná em busca de melhores oportunidades de emprego. Na época, encontrou alguns amigos de Minas Gerais que estavam a passeio por Curitiba. Estes o convidaram para trabalhar no interior do estado de São Paulo: Limeira. Depois de residir na casa de um tio que já havia fixado residência no município, moraria nos bairros Ernesto Kühl, Nova Europa, Santa Cecília e Parque Hipólito.

Importante perceber que as mudanças de bairro, cidade ou estado são uma constante a todos os moradores do Rubi. Estas mudanças acabam sendo desembocadas em um aspecto judicativo que o torna um lugar fundante de ponderação frente às espoliações sentidas pelas diversas intersubjetividades ali encontradas, as quais dinamizam seu campo de percepção e ação no inevitável reconhecimento de que o enredo de sua vida não é muito diferente da dos outros. É neste reconhecimento que as tantas experiências vividas acabam tendo um envolvimento mais profundo que uma simples relação homem-meio, se transformando em um palco de lutas existenciais conforme os encontros cotidianos com algumas situações peculiares (Marandola Jr., 2012). Isto faz com que o lugar perca a sua pensada escala definida, dinamizando tempos e percepções com o mundo circundante (situações abertas nas várias tramas sociais e culturais) e com as próprias pessoas nos incontáveis acontecimentos específicos que norteiam a orientação grupal a partir daquilo que se manifesta (no reconhecimento de que o problema existencial dos outros se interconecta, em algum lugar, com o meu). E isto é frisado pelo Morador n°3 quando questionado sobre se havia sentido alguma diferença gritante na mudança para Limeira:

Sempre tinha alguma diferença entre os bairros em que morei. O pessoal é bem diferente. Tem alguns bairros que você se acostuma mais rápido com as pessoas, e tem outros que não são tão rápidos, né? E eu sempre morei em bairro bem assim...[pensativo], humilde, né? Nunca morei em bairro chique, porque não ganhamos tão bem para morar em um bairro mais avançado, de classe um pouco mais alta. Aqui, a maioria das pessoas vieram de outro lugar. Têm pessoas que vêm de Minas (Gerais), Bahia. Todo lugar. Nordeste, né? Então, assim, acho que a gente tem mais simplicidade do nosso interior. Me acostumei mais rápido por causa disso. Não acho que os paulistas sejam mais fechados, pois tem uma mistura muito grande com o povo de outras regiões. (Comunicação pessoal, 8 de março de 2022

Desta forma, é importante ressaltar o contraponto ao lugar entendido por Giddens (1991) e sua noção de desencaixe. O desencaixe, alentado por este sociólogo, condiz com a influência do sistema globalizante que tende a homogeneizar todas as formas de vida e territórios ao seu comando. Faz com que também se altere a forma da experiência centrada no lugar, a qual é interpretada por ele como uma proximidade muito imediata. O lugar para Giddens (1991), uma vez que vê seus processos cognitivos e de produção de vida invadidos por outros em que o grupo social não produziu e nem tem parâmetros para avaliar, se confunde com a escala do local, uma região delimitada fisicamente e com uma ação concernente. Esta permanência da rotina espaço-temporal do local seria a responsável pela auto segurança ontológica dos constituintes, uma vez que a sua permanência se dá na medida de um cotidiano repetitivo (Marandola Jr., 2012).

A armadilha, porém, é interpretar estas experiências vividas como algo estritamente individual, onde a reflexividade constante do “eu” confecciona a sua própria trajetória, delimita seus pontos de encontro e determina seus locais de manifestação que, quando não correspondido, se constitui de forma cada vez mais isolada. E isto é o oposto da forma em que o lugar se transforma em um abalo, em uma abertura que se funda enquanto encontro das pessoas com os outros em situações diversas, com intencionalidades plurais e em que seja permitida a criação de significações, resistências e dissidências (Patočka, 2004). Contrário a um lugar com um envolvimento circunstancial que tangencia ensinamentos éticos e responsabilidades que afloram e balizam estas trocas entre as pessoas, bem diferente daquele confeccionado pela consciência metódica (Patočka, 2004).

Igualmente divergente do corpo individual tematizado pela tecnociência e pelo marketing que o objetifica como uma máquina eficiente (pelo discurso da estética ou da eugenia), mas consonante a um corpo em que a trans-subjetividade (esta capacidade humana de estabelecer uma troca de sentidos –e não de simples significados– intermediada por marcos históricos e geográficos) oferta infindáveis variáveis para a sua constituição enquanto lugar de nascimento: seja ele de ordem política, econômica ou social (Chaveiro, 2012). Lugar, ou melhor, corpo-lugar o qual a cultura coloca a sua marca através daqueles vínculos intersubjetivos, na comunicabilidade do sentido compartilhado e resistente em sua própria finitude, configurando-se na face orgânica de seu tempo de vida ao mesmo tempo em que se incumbe da fundação do tempo social, dada as suas trocas de saberes e ensinamentos (De Paula, 2017).

É aqui que as delineações materiais humanas (um bairro, uma cidade) se tornam tempos vividos até na memória, pois são compreendidas nas diversas formas de empatia e compreensão entre os seres humanos nas muitas formas de construí-lo (tεχνική: a habilidade, em um sentido amplo, do poder de transformar a matéria em algo que consiga tornar o indizível em discernível, isto é, um modo de saber, de deixar ver o que uma coisa é); de apresentá-lo (aρκέ: a experiência possível para as muitas gêneses que guarda o mundo humano, uma procura substancial de uma realidade fundamental para que a consiga contemplar); e de habitá-lo (habitat: pesa-se aqui as ocupações humanas e a ação que vêm ao mundo em um contexto no qual seja possível haver uma narrativa sobre a compreensão do diferente, conferindo-se este mundo em uma imagem –imago mundi– onde sua paisagem consegue articular uma circunstancialidade discernível, pois compartilhada com outras formas de vida).

Portanto, é perceptível que, mesmo uma trajetória individual é, no entanto, uma interconexão de seres e lugares em um enredo espaço-temporal. Enredo que se perfaz na trajetória de vida nos lugares, ou melhor, vincula um engajamento permanente, pois condicionado nos interstícios entre o construído (passado) e o possível (presente). Tal interstício é o que se sente na pele como a fome, as dores, as perdas ou o desespero em se ter um teto. É um trâmite em que o interior (corpo) e o exterior (lugar) se arraigam pela força que guarda o aparecimento das alteridades enquanto fenômeno histórico, dispondo-se estas alteridades no campo da vontade e da esperança (futuro) (Chaveiro, 2012).

Conclusão

Não se discorda neste trabalho sobre as dificuldades de socialização entre os residentes de uma cidade, de um bairro ou de locais de identidade plural como um conjunto habitacional. É compreensível como as diversas dinâmicas instauradas pelo campo tecnológico ofertam inúmeras possibilidades de inserção e de satisfações individualizadas sem a interação com o outro. Entretanto, é perceptível certa ausência da capacidade do enraizamento sensível/afetivo do humano com o seu entorno por intermédio destes mecanismos tecnológicos, como se qualquer facticidade da ação não passasse por um campo ponderativo em que a sensibilidade corpórea se atentasse aos momentos situacionais em que se encontra. Mais precisamente, é como se o corpo humano fosse um fardo em que pesasse o deslocamento pela simples disposição de sua estrutura singular, possibilitando a mudança de ambiente quando empenhasse uma força de arranque que inserisse ou excluísse o sujeito de alguma localização.

Adianta-se dizer que os sujeitos aqui não são interpretados como seres que conseguem se adaptar em qualquer lugar como se fossem meros objetos, onde uma mudança repentina ou planejada não os afetassem. Muito pelo contrário: é justamente na reflexão sobre as intencionalidades destas mudanças que é insistido repensar-se a postura niilista sobre o lugar (como o espaço público de uma cidade), ou seja, na importância da reconsideração sobre a necessidade de encarar o nosso corpo como um fiel parâmetro situacional das inúmeras condições humanas impostas na facticidade (Marandola Jr., 2012). Em outras palavras, as situações em que passam os seres humanos no âmbito da mudança (movimento) não podem ser encaradas como estágio de vivências singularizadas, mas sim que o fenômeno do aparecimento destas situações (que é impessoal) joga o humano a uma situação problematizada (liberdade) que o faz refletir sobre a importância do engajamento com os demais (práxis) na interconexão dos problemas daquele lugar em que se encontra (história) (Patočka, 1996).

Isto significa dizer que um humano não está simplesmente alocado em um contexto singular como se seus lugares fossem demarcados, mas sim que estes lugares estão problematizados muito além de sua constatação material. Faz-se o corpo, nesta situação, sempre acompanhado por certas experiências que o integram ao lugar de tal forma que transforma este último em um enredo contínuo de constructos sensórios (Patočka, 2004). Além do mais, o cuidado (Sorge) deste constructo, já que todo ser é um ser-com (Mitsein), descaracterizaria a angústia solipsista de um ser que está condenado ao falatório banal e que necessitaria se retirar do sensus communis para que pudesse cuidar de seu mundo de forma apropriada, pois acolhida verdadeiramente (Heidegger, 2012). Mais precisamente, faz com que o corpo nunca esteja em um mero espaço, mas que acompanhe e compreenda-o como um lugar antes de tudo compartido, ou melhor, aterrado, na medida em que sua vida se instaura na compreensão histórica de quem são os que vivem ali com ele (Patočka, 2004).

É assim que o humano consegue conceber de qual maneira e onde pode se encontrar no mundo pois, se qualquer objeto neste seu mundo é correlato a um tipo de comportamento, em que uma subjetividade entitativa só existe por ser um campo compartilhado, a presença humana com os demais também o é (Patočka, 2004). E isto se faz na medida em que o abalo do mundo (o questionamento dos sentidos pré-estabelecidos) consiga alcançar este corpo, tornando este ser-com preocupado com os demais, ou melhor, solidário com eles, já que percebe que, ao encontro deles, seu próprio em-si se encara em um abismo: mostra o eu, na apresentação com os outros, como um ser incompleto (Patočka, 1998).

Desta maneira, é por estas situações que o mundo humano, na variedade de perspectivas de sua aparição, engajamento e surgimento, faz dos corpos um parâmetro em que algo imediatamente dado ou perniciosamente presentificado perca a sua validade, pois estes corpos são os responsáveis pela possibilidade de reflexão sobre as mudanças que perpassam uma situação que os submergem a um comprometimento constante com a particularidade (situcionalidade) e com modos mais abrangentes de albergá-las (circunstancialidades) (Marandola Jr., 2012). Faz assim problematizar o corpo não só como um receptáculo disso tudo, mas também como um forte parâmetro, pois, ele próprio, no contato entre lonjura e distância dada na incessante luta entre o “quando” e o “onde” da vida, se transforma em um composto sinérgico (Patočka, 2004).

Instaura este corpo um dinamismo para si o qual ele mesmo é presentificado através de uma reunião que não faz aparecer o “eu” propriamente, mas o “eu” com as coisas e os outros, ou seja, emerge a senciência de que aquilo que se presentifica é trazido pelo corpo além de sua contingência entitativa. É trazido na forma de sons, cheiros, cores e memórias (Tuan, 2012). Melhor dizendo, se o corpo instaura uma proximidade com as coisas, concedendo certa convivência com algo ou algum lugar pela assiduidade do encontro, também faz-nos ponderar que existe uma distância que se instaura quando esta assiduidade começa a esvaecer. Força-nos a refletir que a ausência da práxis (esta solidariedade com o outro) manifesta uma necessidade de ponderação existencial com o mundo, e isto no mesmo instante em que a assiduidade dos encontros com os outros passa a diminuir (Patočka, 1998).

É isto o que significa viver espacialmente: a espacialidade vivida de nosso corpo não pode consistir em uma objetividade geométrica, como se nos relacionássemos somente no campo da utilidade. Nosso corpo é uma vida a qual é espacialidade em-si e para-si, isto é, lugariza-se no espaço na medida que o torna co-habitável (habitus). Assim, nossa existência pessoal (tida na particularidade) não é uma coisa, mas uma relação que passa por esta singularidade que é o corpo mas que, para atualizar esta relação, precisa atestar-se com outros seres (aliás, com os corpos destes outros seres) (Patočka, 2016).

Por conseguinte, esta relação corpórea envolve funções tidas como basilares (sentidos) muito além de uma aptidão mental, pois inclui uma capacidade de reflexão mais original: o enraizamento com as demandas do cotidiano. E isto pode ser averiguado no relato da Moradora n°2, a mais insulada dos três apresentados. Desacreditada quanto a uma interação com os demais –e crente de que poderia se ver protegida das consequências da não-participação com as situações do Rubi–, começaria a sentir as atribulações diárias quanto a necessidade de interatividade. Amargor sentido quando questionada e esquecida pelo grupo social da igreja que participava no antigo bairro que residia.

Em relação às igrejas, quando eu ia no Lagoa Nova, eu ia nas igrejas, sim. Aqui, assim, ficou fora de mão, né? É ruim você ficar dependendo das pessoas. Quando posso, eu vou. Porque trabalhar fora... [expressa uma mescla de sentimento de cansaço e angústia], aí você só tem um domingo no mês. Aí fica complicado. Eu ia na (igreja) evangélica, a Assembleia de Deus, mas não era a (Congregação Cristã) “Belém”, era a (Congregação Cristã) “Limeira”. Até aqui, no Morada das Acácias [bairro vizinho ao Rubi], tem. Mas é complicado. Quando você mora perto, fica mais fácil. Aí, você pensa assim: “Nossa, você só tem um domingo no mês. Vou sair daqui, vou subir lá em cima?”. Até você chegar lá em cima, você já cansou. Aí, um dia, uma pessoa falou assim para mim: “Ah, mas para Deus não há distância”. Concordo. Mas eu acho que Deus você tem que ter no seu coração e na sua cabeça. Não adianta você morar dentro da igreja e continuar a mesma pessoa, né? Você tem que pensar no próximo. Você tem que se reavaliar, né? Não adianta você morar lá dentro e não fazer nada. As pessoas lá do outro bairro cobravam a minha presença, mas já estava ficando complicado e decidi continuar do jeito que eu já era. Porque a gente tem que manter nossas orações, nossos pedidos, porque Deus é um só. Até um dia teve um fulano que falou: “Mas você vai na igreja ‘Belém’, e não na ‘Limeira’”. Mas, não é porque você vai em outra igreja que Deus não vai te ouvir. (Comunicação pessoal, 14 de março de 2022)

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Notas

* Artigo de reflexão.

1 Empresa pública brasileira voltada ao financiamento de empreendimentos imobiliários e principal instituição federal de desenvolvimento urbano entre as décadas de 1960-1980 (era ditatorial brasileira).

Autor notes

a Autor para correspondência. Endereço eletrônico: vitorcordova@yahoo.com.br

Informação adicional

Cómo citar: Cordova, Vitor S. (2023). Ética espacializada enquanto mundos possíveis: ensaios sobre bioética em um conjunto habitacional limeirense. Universitas Humanística, 92. https://doi.org/10.11144/Javeriana.uh92.eemp

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