Fotografias e desenhos etnográficos: práticas colaborativas e processos criativos em antropologia *
Fotografías y dibujos etnográficos: prácticas colaborativas y procesos creativos en la antropología
Photography and Ethnographic Designs: Collaborative Practices and Creative Processes in Anthropology
Karina Kuschnir
, Hannah de Vasconcellos
Fotografias e desenhos etnográficos: práticas colaborativas e processos criativos em antropologia *
Universitas Humanística, vol. 94, 2025
Pontificia Universidad Javeriana
Karina Kuschnir a karinakuschnir@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Hannah de Vasconcellos
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Recepção: 24 Fevereiro 2025
Aprovação: 01 Agosto 2025
Publicação: 14 Dezembro 2025
Resumo: A antropologia contemporânea necessita de metodologias inovadoras que lidem com questões sensíveis de forma ética e colaborativa. Este artigo analisa as potencialidades do uso combinado de fotografias e desenhos etnográficos a partir da colaboração entre a artista e antropóloga Karina Kuschnir e a antropóloga Hannah de Vasconcellos, durante pesquisa desta última sobre mulheres negras e as dinâmicas raciais do cuidado. Examinamos desde a concepção dos autorretratos até a produção das fotografias, o desenvolvimento dos desenhos e a devolução dessas imagens às mulheres que as protagonizaram. Esse percurso foi construído em múltiplos diálogos etnográficos, na relação da pesquisadora Hannah com suas interlocutoras e com a desenhadora Karina. O trabalho inspira-se na colaboração de Afonso e Ramos (2004) em que definem os desenhos como dispositivos de cocriação, ativação mnemônica e afetiva, bem como de evocação de sentidos invisíveis e visíveis das relações sociais e cultura material, contribuindo para documentação e criação de novos sentidos nas percepções de si dos interlocutores.
Palavras-chave:fotografia, desenho, antropologia visual, metodologia colaborativa, antropologia contemporânea, dinâmicas raciais.
Resumen: La antropología contemporánea requiere metodologías innovadoras que aborden cuestiones sensibles de manera ética y colaborativa. Este artículo analiza las potencialidades del uso combinado de la fotografía y el dibujo etnográfico a partir de la colaboración entre la artista y antropóloga Karina Kuschnir y la antropóloga Hannah de Vasconcellos, durante la investigación de esta última sobre mujeres negras y las dinámicas raciales del cuidado. Examinamos desde la concepción de los autorretratos hasta la producción de las fotografías, el desarrollo de los dibujos y la devolución de estas imágenes a las mujeres que las protagonizaron. Este recorrido se construyó en múltiples diálogos etnográficos, en la relación de la investigadora Hannah con sus interlocutoras y con la dibujante Karina. El trabajo se inspira en la colaboración de Afonso y Ramos (2004), quienes definen los dibujos como dispositivos de cocreación, activación mnemónica y afectiva, así como de evocación de significados visibles e invisibles de las relaciones sociales y de la cultura material, contribuyendo tanto a la documentación como a la creación de nuevos sentidos en las percepciones de sí de las interlocutoras.
Palabras clave: fotografía, dibujo, antropología visual, metodología colaborativa, antropología contemporánea, dinámicas raciales.
Abstract: Contemporary anthropology requires innovative methodologies that address sensitive issues in an ethical and collaborative manner. This article analyzes the potential of combining photography and ethnographic drawing through the collaboration between the artist and anthropologist Karina Kuschnir and the anthropologist Hannah de Vasconcellos, during the latter’s research on Black women and the racial dynamics of care. We examine the process from the conception of self-portraits to the production of photographs, the development of drawings, and the return of these images to the women portrayed. This path was built through multiple ethnographic dialogues, within the relationship between researcher Hannah and her interlocutors, as well as with the illustrator Karina. The work is inspired by the collaboration of Afonso and Ramos (2004), who define drawings as devices for co-creation, mnemonic and affective activation, and for evoking both visible and invisible meanings of social relations and material culture, contributing to the documentation and creation of new meanings in the interlocutors’ self-perceptions.
Keywords: Photography, Drawing, Visual Anthropology, Collaborative Methodology, Contemporary Anthropology, Racial Dynamics.

Introdução
A antropologia contemporânea tem enfrentado desafios crescentes no diálogo e representação de grupos historicamente marginalizados. Estamos conscientes de nossa tarefa sempre urgente de “chacoalhar as narrativas hegemônicas” (Fonseca, 2008, p. 40). Neste contexto, são bem-vindas as metodologias que visam superar as hierarquias das práticas etnográficas, buscando abordagens mais colaborativas, sensíveis e dialógicas. O presente artigo se inscreve neste cenário desafiador, explorando as potencialidades da intersecção entre fotografia e desenho como dispositivo de produção de conhecimento antropológico.
Partimos de parte da etnografia desenvolvida pela antropóloga Hannah de Vasconcellos (2024), centrada nas experiências de mulheres negras e suas relações com o cuidado de si por meio de suas plantas e ervas a partir de uma etnografia do movimento do sagrado feminino presente fortemente nas redes sociais à época da pesquisa. A isso, somamos a colaboração com a antropóloga e artista Karina Kuschnir (2016), que trouxe a ferramenta do desenho como um instrumento fértil de investigação e produção de visualidades etnográficas. Juntas, propomos uma abordagem que busca transcender a documentação, configurando-se como um processo de cocriação e ressignificação de narrativas em imagens (Figura 1).
Nossa base teórica vem de diversas fontes do campo da antropologia e da antropologia visual, mas nossa primeira inspiração é o trabalho de Afonso e Ramos (2004). Juntos, estes autores empreenderam uma excelente colaboração entre pesquisadora-antropóloga e desenhador-antropólogo, produzindo narrativas e imagens que nos instigaram em múltiplos aspectos. Ao produzirem desenhos profundamente etnográficos, apresentaram uma pesquisa artesanal, cuidadosa, feita em diálogo com seus interlocutores, acionando memórias e afetos, ao mesmo tempo que geraram documentação histórica e reflexão metodológica, conforme exploraremos adiante.
Nossa escolha por realizar um processo de produção de imagens que passava por fotografias e desenhos, entre outros passos, não foi guiada por fins estéticos, embora essa dimensão sempre paire quando se lida com grafismos. O sentido de nossa opção metodológica foi atender aos critérios da pesquisa de Hannah de Vasconcellos, como esperamos que fique claro ao longo deste artigo. Buscávamos ferramentas que partissem da autonomia das interlocutoras sobre suas próprias imagens, ao mesmo tempo garantindo que sua intimidade seria protegida pelo anonimato do traço manual. Essas e outras pequenas etapas foram cuidadosamente conduzidas por nós (e por elas) até a devolutiva em mãos, como objetos-quadro, em páginas de papel da tese de Vasconcellos (2024) e em outros textos (como este) vida afora, nos quais tais imagens continuarão ganhando sentidos. Além disso, fizeram parte da exposição em página virtual e da exposição física das Jornadas de Antropologia John Monteiro 2024, na Unicamp, onde Hannah compôs a mesa de debate entre os finalistas do prêmio Mariza Corrêa. 1
Ao escrever este artigo, nossa proposta é demonstrar as potencialidades da utilização de imagens em múltiplas versões — digitais, fotográficas, gráficas e analógicas — em pesquisas antropológicas e discutir premissas e consequências teóricas advindas dessa escolha. Processos criativos envolvendo fotografias e desenhos podem nos ajudar a superar dificuldades do fazer etnográfico, como as da hierarquia, da colaboração, da ética e da representatividade? O que aprendemos com essa experiência?
Nas próximas seções, apresentaremos as etapas que percorremos neste processo, nossos aprendizados pelo caminho e o debate com autores e conceitos que nos ajudaram a pensar. Esperamos que estas reflexões façam sentido e possam ser úteis em outras pesquisas.
Criando imagens e conceitos
Nossa colaboração começou quando Hannah procurou Karina em 2022 para realizar um “estágio docente”, prática associada ao seu doutoramento em antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 Trabalhamos juntas como professoras em uma disciplina de graduação sobre metodologia de escrita acadêmica. Ao longo do semestre, pelo próprio tema das aulas, discutimos os impasses e estratégias para redigir sobre experiências etnográficas.
Seguimos aprofundando o diálogo fora do espaço da disciplina, desta vez focando nos dados etnográficos produzidos pela pesquisa de Hannah sobre a relação de mulheres negras com suas plantas. Este era o tema do último capítulo da tese de Hannah. Nos capítulos anteriores, os recursos visuais foram amplamente utilizados com base em fotografias e imagens retiradas de perfis da rede social Instagram cujo conteúdo estava intimamente ligado às práticas e crenças no entorno do movimento do sagrado feminino (Vasconcellos, 2024). Para o último capítulo, porém, tratava-se de um recorte .uito mais intimista. Não seria possível utilizar material de redes sociais, nem qualquer tipo de imagem que identificasse as interlocutoras. Inclusive, não se buscava na pesquisa retratar um indivíduo específico, mas evocar comportamentos, práticas e significados de um circuito de mulheres mais ampla.
Esta proposta fica evidente na chamada para a realização dos autorretratos enviada por Hannah para amigas no aplicativo de mensagens WhatsApp:
Tô pedindo um favor pra algumas amigas pra compor o capítulo 4 da tese que tô escrevendo. A ideia é ter algumas fotos de mulheres negras em meio às suas ervas e plantas de cuidado. As fotos serão ilustradas pra preservar a identidade de cada uma e tb pra revelar que as imagens representam uma coletividade e não só vocês em si. 3
A partir deste pedido, Hannah recebeu 34 fotografias enviadas por 5 mulheres que circulavam e participavam dos circuitos de cuidado investigados durante sua pesquisa de doutoramento, mas nem todas diretamente interlocutoras da etnografia. Ao mesmo tempo, Hannah analisava dados empíricos e a literatura para redigir o Capítulo 5 de sua tese, intitulado “Fabular, especular, mexer na terra”. Como dito na mensagem-convite, levava em conta que as fotos escolhidas seriam ilustradas para preservar o anonimato e a intimidade das participantes, tornando-as menos autorretratos no sentido estrito (Querido, 2012) e mais símbolos da coletividade de suas práticas de cuidado e autocuidado. No capítulo, histórias pessoais de mulheres e plantas são interconectadas em busca de seus significados mais profundos.
Uma das interlocutoras, Alice, descreve a relação que desenvolveu com sua horta: “Me sinto poderosa porque elas [as plantas] são muito funcionais pra mim contra as principais ameaças à espreita” (Vasconcellos, 2024, p. 173). 4 Alice detalha como usa o boldo para proteção espiritual, a erva-cidreira como ansiolítico, e o gengibre como uma ferramenta para fortalecer sua imunidade. Essas práticas revelam uma percepção de poder atrelada à simplicidade e autonomia, um tema recorrente entre as mulheres mencionadas na pesquisa. Uma fala de Alice, em especial, dá o tom para o capítulo e, consequentemente, para as fotos-desenhos para ele produzidas, demarcando o contraste entre violência e segurança, onde as plantas promovem esta última: “Considerando que muito do bem-estar de uma mulher preta e pobre no Brasil é retirado, violentado e ameaçado, as plantas são o meu porto seguro” (Vasconcellos, 2024, p. 173; grifo nosso).
Nesta etapa da pesquisa, somaram-se diversas histórias e foi demonstrado que os relatos e práticas sobre o cultivo do cuidado entre mulheres negras transcendem a esfera individual, emergindo como um circuito (Magnani, 2002) de práticas coletivas. Trata-se de um circuito pautado pela simplicidade, pelas rotinas de autocuidado práticas, como de chás e banhos, frequência a erveiros próximos, além do cultivo de plantas em apartamentos urbanos em vasos, associado às memórias de quintais familiares.
Neste sentido, o cultivo do que Hannah chamou de “quintal de vaso” conecta-se à análise de Hartman (2020) sobre o conceito de fabulação crítica, iluminando o papel das práticas coletivas contemporâneas na ressignificação da ancestralidade, com adaptações de tradições a contextos atuais. Para esta autora, fabular é uma maneira de dar vida a histórias apagadas ou esquecidas, permitindo que se conectem ao presente de forma significativa e transformadora (Hartman, 2020). O conceito de “quintal de vaso” reforça a centralidade das plantas como um espaço simbólico e material (Vasconcellos, 2024). Mesmo sem a territorialidade física dos quintais de suas infâncias, elas recriam uma relação com a terra em pequenos vasos em seus apartamentos urbanos. Essa prática demonstra não apenas a resiliência de tradições familiares, mas também sua capacidade de adaptação aos contextos contemporâneos. O quintal de vaso torna-se uma metáfora de resistência e reconstituição de práticas de cuidado que entrelaçam o presente com o passado, permitindo que o autocuidado físico e espiritual floresçam (Vasconcellos, 2024).
Assim, conjuntos de vasos de plantas operam como pontes entre diferentes tempos, ativando memórias e vislumbrando futuros possíveis (Freitas e Messias, 2018). A “insistência em viver” (Mbembe, 2014) dessas mulheres negras emerge tanto na preservação de saberes quanto na criação de novas formas de cuidado, evidenciando um movimento afrofuturista de reimaginação do presente (Vasconcellos, 2024). O constante “mexer na terra”, é também uma “insistência em ter nas mãos os futuros de si e dos seus” (Vasconcellos, 2024). Como disse a interlocutora Ana, “porque você não planta hoje se você não tiver ideia de futuro para amanhã”. Ao ver nascer a planta originária de sua família, Mila reflete: “Aquela planta, naquela terra, naquele vaso era ‘um aquilombamento onde quer que eu vá. Um retorno para casa.’” (Vasconcellos, 2024). Neste processo, o quintal de vaso simboliza um espaço de especulação e projeção de futuros, criando o que Hannah de Vasconcellos chama de “ficção científica mundana, recriando um passado-presente nesse presente-futuro” (Vasconcellos, 2024, p. 205).
Na próxima seção refletiremos sobre o papel que as imagens assumem neste contexto, explicando como lidamos com sua materialização, das fotografias enviadas pelas interlocutoras ao processo de se tornarem desenhos digitais e impressos em papel.
Transformando fotografias em desenhos
Em poucas semanas Hannah recebeu 34 retratos e autorretratos enviados por cinco mulheres negras que participavam dos circuitos de cuidado investigados durante a pesquisa (Vasconcellos, 2024). Todas as imagens foram feitas com câmeras de telefones celulares e enviadas a Hannah por meio do aplicativo Whatsapp. Algumas se fotografaram sozinhas, outras pediram auxílio para amigas. Todas seguiram a orientação de “tirar uma foto” com suas plantas. Não mostraremos aqui as imagens dessa etapa da pesquisa por motivos de proteção de suas identidades, conforme já explicado.
Neste conjunto de fotografias, encontramos traços do que Alessandra Querido (2012) denomina de autorretrato: uma imagem produzida “no intuito de retratar o eu, de afirmar a identidade” (Querido, 2012, p. 881). Entretanto, como a autora, entendemos que não se tratavam de imagens que continham, ou mesmo almejavam, uma definição do “eu real” nem de uma “essência”. São autorretratos produzidos em diálogo com um aspecto específico de seu cotidiano — a relação com suas plantas — que se materializava a partir da provocação de Hannah. Ainda assim, tomamos as fotografias como autorretratos onde essas mulheres, “ao se representar”, tomam “uma decisão” sobre a imagem e a identidade que pretendem passar ou afirmar (Querido, 2012, p. 883).
Como afirmou Barthes (1984), a fotografia provoca, modifica “a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (p. 19). Para Querido (2012), inspirada em Didi-Huberman (1998), os autorretratos fotográficos são como espaços liminares entre o real e o ficcional, o documentado e o interpretado, a experiência e a memória. Este espaço imaginado surge no conjunto de fotografias na medida em que as mulheres que Hannah conhecia (e Karina, em alguns casos) transportavam-se para um cenário etéreo, descolado de referências históricas de tempo e lugar. Eram mulheres cercadas apenas de suas plantas e vasos de plantas, na sua totalidade (em três casos), ou sentadas em pisos neutros (2 casos), sem referência imediata a alguma característica marcante de suas vidas, exceto a de suas plantas. Este atributo tem uma forte ligação com o conceito de “quintal de vaso” da tese de Hannah, e nos surpreendeu — positivamente — o quanto sua significação emerge dos autorretratos e, conforme veremos, dos desenhos feitos a partir deles.
Três das autorretratadas estavam descalças, uma com sapatilha preta e outra sem informação visível sobre isso. Três optaram por vestidos, uma usou saia e outra, calças. Havia um chapéu atrás de uma das mulheres e um pequeno cão ao fundo da fotografia de outra. Três mulheres optaram por roupas estampadas. Quatro estavam sentadas, enquanto uma permaneceu em pé. Trata-se de uma amostra mínima, sabemos. Mas optamos por descrever estes elementos em forma de texto para realçá-los, de modo a demonstrar que, embora haja uma sintonia de atitude na relação entre as mulheres e suas plantas e vasos, não há uma homogeneidade em suas formas de se apresentar para a câmera.
A semelhança de atitude das cinco mulheres em relação às plantas é a conexão mais forte no conjunto das 34 imagens enviadas e nas 5 selecionadas para serem transformadas em desenhos. Em todos os autorretratos, há uma diagramação semelhante: a mulher está no centro de um conjunto de plantas, a maioria em vasos, e olha para a câmera com confiança e uma serenidade feliz. Três das mulheres tocam suas plantas com as mãos, uma delas segura um pequeno galho junto ao rosto e uma senta-se no mesmo nível das plantas de modo que parece nos dizer “somos uma”.
A seleção das imagens que seriam transformadas em desenhos seguiu critérios etnográficos e técnicos relacionados ao processo de desenhar. Do ponto de vista etnográfico, selecionamos imagens que evocavam as práticas e significados do “quintal de vaso” que emergiram durante a pesquisa, conforme já vimos. Do ponto de vista de uma desenhadora, Karina buscou imagens onde havia nitidez suficiente para detectar a transição entre as diversas superfícies. Deu preferência também às fotografias onde as mulheres se autorretrataram de corpo inteiro, o que fazia sentido à luz do seu treinamento em desenhos de “modelo vivo”. Por questões logísticas, de tempo, custo e prática de Karina como artista, foi decidido que os desenhos seriam feitos com linhas em preto sobre branco. Mais uma vez, destacamos textualmente detalhes aparentemente óbvios, mas que não o são.
A partir da seleção dos autorretratos, desenvolvemos o que chamamos de “fotos-desenhos”, uma metodologia de pesquisa — que também é uma técnica de desenho — que se estrutura em camadas complementares de autonomia, proteção e ludicidade. Explicamos: a ideia de autonomia se inscreve na técnica do autorretrato, que garante às interlocutoras algum controle sobre sua autorrepresentação — desde a escolha do ângulo até a composição da cena com suas plantas, incluindo roupas, gestos e postura corporal. Como vimos no conceito de autorretrato (Querido, 2012, p. 884), “ao se representar, há uma decisão de que imagem pretende-se passar”. A segunda camada funde-se à primeira, uma vez que, desde o início, as fotografias foram feitas com a consciência de que não seriam publicizadas como tal. Como escrito na mensagem de Hannah, seriam fotos posteriormente “ilustradas” para preservar a identidade e representar uma “coletividade” e “não só vocês” em si mesmas. Voltaremos a esse ponto adiante.
Na terceira e complexa camada, temos a produção dos desenhos sobreas fotografias. Como desenhadora, Karina buscou contribuir para garantir o anonimato, ao mesmo tempo que destacou elementos das relações entre mulheres e suas plantas. Ao denominar essa camada de “lúdica”, não estamos dizendo que a fotografia não pode ser lúdica, mas que o tipo de desenho que propusemos nesta pesquisa potencializa a ludicidade das imagens, distanciando-as dos referenciais de verossimilhança fotográficos e aproximando-as dos aspectos simbólicos e afetivos da relação com as plantas das autorretratadas. O desenho mantém a autonomia dos autorretratos fotográficos, e os desidentifica, ampliando seu potencial interpretativo para além do individual e estabelecendo conexões com experiências coletivas mais amplas.
Concordamos aqui com diversos autores da área da teoria do desenho (Berger, 2005) de que a linha desenhada traz novas possibilidades expressivas, ressignificando a temporalidade e a materialidade original da fotografia. De forma alguma propomos a foto-desenho como melhor ou superior à fotografia no fazer etnográfico. Para nós, é uma produção que acrescenta sentidos à imagem fotográfica, ainda que também implique em perdas. Vejamos a seguir uma quarta camada deste processo: os desafios e desenvolvimentos inesperados de desenhar a partir de fotografias produzidas em âmbito de pesquisa.
Os desenhos e seus desdobramentos
Nossa experiência de pesquisa partiu da premissa de tratar os desenhos como um fim em si mesmos. Ou seja, o resultado esperado eram as imagens desenhadas. Este esclarecimento é importante porque, na história das artes visuais, o desenho é tradicionalmente tratado como um “projeto”, um rascunho para uma obra de pintura. Como afirma Pereira, no ensino tradicional de belas-artes, o desenho “é tomado […] não apenas como técnica, mas, sobretudo, como projeto inicial da obra” (Pereira, 2016, p. 113). Ou seja, o desenho neste contexto é um preparo para uma “etapa seguinte” (Pereira, 2016, p. 114).
Outra premissa fundamental é a de que o desenho de observação (das fotografias) tinha como interesse registrar as especificidades das mulheres e de suas plantas. Esta também é uma característica a ser destacada, pois se contrapõe à metodologia de ensino de desenho de modelo-vivo baseada em adaptar o que se vê ao ideal baseado em “proporções ideais” (Pereira, 2016, p. 118). Podemos afirmar que nossa abordagem foi etnográfica na medida em que, ao desenhar, Karina estava interessada nos detalhes da imagem observável tal como ela se apresentava aos seus olhos. Isso não quer dizer que buscávamos verossimilhança, na linha de hiperrealismo. Tínhamos em mente a definição de que os desenhos são “capazes de idealização conceitual e abstração; de apresentar visualmente significados simbólicos; de retratar a realidade além do realismo; de transcender”. (Oppitz 2001, apud Afonso e Ramos, 2004, p. 73). Dito de outro modo, o olhar do desenho atua como uma “ferramenta reveladora” que coloca coisas “importantes ou diferentes sob escrutínio”, por sua “presença ou ausência nas imagens” (Mazzella di Bosco, 2024, p. 9)
Uma terceira premissa foi a de questionar “a naturalidade investida” na visão, como afirma Barbosa (2012). Nossos olhos não são neutros, mas banhados pela dimensão cultural e sua rede de significados, nos termos de Geertz (1978). Tanto as fotografias quanto quem as olha, estão imersas em significações baseadas numa “reserva de signos” e “códigos”, como afirma Barthes, que são como uma “gramática histórica” de conotação iconográfica (Barthes, 1990). É com esse instrumental, que Barthes também denomina de nossa “biblioteca”, que atribuímos sentido a certas posturas, objetos e composições de uma imagem. No caso em questão, além da nossa contemporaneidade (que dá sentido e afetividade a roupas, poses e objetos), nosso olhar estava sendo filtrado pela lente da análise de Hannah sobre o material empírico da tese. Isso tudo nos distancia de uma “abordagem intelectual”, como a praticada em tradições de belas-artes, “em que o real serve de ponto de partida para a idealização”, em conformidade com “modelos mentais” (Pereira, 2016, p. 118).
Feitos esses esclarecimentos sobre as premissas conscientes que adotamos, precisamos assumir que a autoria de Karina como desenhadora também não é neutra. Ou seja, suas experiências e escolhas ao desenhar constróem um estilo de desenho específico, marcado por elementos de sua subjetividade e conhecimento do mundo. Como na sábia afirmação de John Berger,
o desenho de uma árvore mostra, não uma árvore, mas uma árvore-sendo-observada. Enquanto a visão de uma árvore é registrada quase que instantaneamente, o exame da visão de uma árvore (uma árvore-sendo-observada) leva não apenas minutos ou horas, em vez de uma fração de segundo, mas também envolve, deriva de, e remete a muitas experiências anteriores de olhar. (2005, p. 71)
Vejamos algumas mediações entre o olhar, a mão e a forma desenhada realizadas por Karina. Ao ver as primeiras fotografias da mulher foto-desenhada abaixo, chamou sua atenção que o corpo da modelo estava “cortado”. Os planos de retratos na fotografia popular parecem naturalizar os closes, o enquadramento em “plano americano” (da cintura para cima) ou mesmo com cortes que passam despercebidos. Abaixo, temos uma das fotos-desenho, feita por Karina, como primeira imagem produzida especialmente para a tese de Hannah (Figura 2).

Para quem tem experiência com aulas de modelo-vivo, como Karina, a arbitrariedade fotográfica da imagem enviada é difícil de assimilar. “Preciso de fotos sem cortes nos corpos”, Karina pediu a Hannah. Um corte na fotografia parece “natural” enquanto um corte na linha desenhada parece mais intencional, explicou. Com o desenho pronto, talvez isso não se destaque tanto. Mas, sob a perspectiva de Karina, o desenho acima está muito mais “aprisionado” à linguagem fotográfica do que as três imagens seguintes. Não só as pernas estão cortadas, como também os vasos de plantas e as próprias plantas desaparecem da imagem sob uma moldura imaginária que as “enquadra”. Essa moldura é dada pela lente da câmera, que percebemos pelos “visores digitais” que utilizamos hoje em dia (2024).
Para Karina, portanto, este desenho acima é sempre olhado pela mediação do enquadre fotográfico. Mas essa é apenas uma camada da sua percepção. Outras presenças — e ausências — habitam essas imagens sob a perspectiva de uma desenhadora. As fotografias eram a cores, enquanto os desenhos foram feitos em preto e branco. É interessante notar que, assim, nos alinhamos à noção que prevaleceu, durante muito tempo, de que o preto e o branco eram “não-cores”, definidos como à parte do mundo colorido (Pastoureau, 2014). Essa escolha pela “ausência” foi feita com objetivo de simplificar a execução do desenho, com base na experiência de Karina e na imaginação do resultado por parte de Hannah. No entanto, a ausência de cor nos corpos de mulheres negras só fez sentido para nós porque esta dimensão invisível da imagem estava explícita em cada linha de texto da tese de Hannah, especialmente no Capítulo 5, para onde os desenhos eram destinados.
Por meio do desenho abaixo, podemos exemplificar outros desafios relacionados às cores e à transformação de fotografia em desenho. Em quase todas as fotografias de da mulher foto-desenhada abaixo que Karina tinha para escolher, ela estava com corpo inteiro circundada de plantas e vasos, sentada em uma escada de alvenaria. No entanto, surgiram várias dificuldades: havia plantas cobrindo quase a totalidade da imagem, inclusive cortadas em primeiro plano, sem visualização integral; além disso, sua saia era inteiramente preta, sua blusa estampada e havia um galho de uma erva em sua mão esquerda. Para completar, ao contrário da foto acima, a fotografia dessa foto-desenho estava com pouca nitidez, tornando difícil a percepção — ou leitura — de detalhes de forma e contraste. Onde acabava uma planta e começava outra? Onde estava o pé da modelo? Qual erva ela segurava? Como incluir a escadaria, sem fornecer características que pudessem identificar o ambiente? (Figura 3).

Feita essa lista de desafios, percebemos, portanto, que houve outras escolhas invisíveis na mão que fez o desenho. Karina não estava apenas utilizando o preto e branco, mas um tipo específico de desenho linear. Neste, se utiliza linhas precisas para definir figuras e formas, enquanto no desenho “pictórico” há um predomínio de manchas, construindo-se a percepção da imagem por meio de volumes, áreas de sombra e luz, com transições suaves (Silva, 2015). Portanto, na prática, tratava-se de transformar uma fotografia “pictórica” em desenho “linear”.
Importante dizer que esta não é uma fórmula ou ontologia do ato de desenhar. Tomamos aqui as produções desenhadas de Karina e Hannah como materiais etnográficos— processos de produção de conhecimento com história, subjetividade, tempo e lugar. Tratava-se também de processos experimentais. A cada conjunto de fotografias, aprendíamos as possibilidades e desafios. O “linear” vinha de experiências anteriores de Karina com desenhos de observação baseados nesta técnica. E a isso se somavam as especificidades das primeiras fotografias enviadas pela mulher da primeira foto-desenhada deste artigo. No caso dela, com roupa branca, sentada num piso escuro, rodeada de vasos de plantas específicos, além de dois bancos como suporte ao fundo, fazia sentido seguir com o “combinado” linear-preto-e-branco.
No caso da segunda mulher foto-desenhada, portanto, Karina conversou com Hannah sobre escolhas possíveis para aquelas imagens: não daria para desenhar todas as plantas; nem daria para desenhar algumas em sua totalidade; a escada seria apenas sugerida. Isso parecia tranquilo. Mas de qual planta era o galho segurado por ela? Isso importava? Nessa etapa, ficou evidente que identificar as plantas não seria um problema deste segmento da pesquisa. A nomenclatura das plantas importantes estava detalhada no texto da tese. Certa vez, desenhando, Karina achou que tinha uma arruda nas fotografias; mas arrudas não estavam na lista de plantas mais usadas pelas interlocutoras de Hannah. Então a planta foi percebida e desenhada, mas continuou sem destaque no texto.
Neste ir e vir de informações e produção de imagens, a opção foi mostrar a variedade das plantas sem qualquer pretensão de identificação botânica. Portanto, aqui há mais um silêncio e um subtexto que distinguem estes desenhos de outros. Ao contrário da ilustração botânica, que até pode ser linear e sem cores, não tínhamos qualquer pretensão taxonômica (Kuschnir, 2016). O mesmo se pode dizer da ausência de cores e tons de verde (por exemplo) dos desenhos que produzimos: a forma das plantas é suficiente para que o leitor comum “veja” o verde dos vegetais. Essa percepção preenche o vazio com uma imaginação do senso comum, sem a perícia técnica que uma bióloga ou ilustradora botânica teria. Portanto, nossa intenção estava alinhada à proposta de Mazzella di Bosco (2024, p. 1) de que os desenhos viriam para a pesquisa não por seu valor artístico e estético, mas sim por possuírem um “forte poder evocativo”, onde tanto desenhada como desenhadora têm sua subjetividade considerada.
Para as roupas da segunda mulher foto-desenhada, fizemos testes. Aqui surge a relevância da escolha pelo desenho em um aplicativo de imagem digital, com auxílio de um Ipad e uma caneta específica. Assim, foi possível Karina testar a opção de o desenho incluir ou não a cor preta da saia e a estampa da blusa, optando pela forma final em diálogo com Hannah. O uso do iPad também permitiu testar a presença ou não de dois elementos nas fotos iniciais: na primeira foto-desenho havia um chapéu na parede e na segunda, bem ao fundo, escondido, havia um cão. O interessante, hoje, para nós, é que essas nuances fazem parte das imagens, embora não estejam em sua visualização final. Como em um processo de produção de uma tese etnográfica, isso nos traz a consciência de que toda linguagem implica abrir mão de certos dados para dar relevância àqueles que queremos destacar e analisar.
Nesta etapa já sabíamos algumas limitações das fotografias anteriores. Um pequeno elemento que ainda não mencionamos: a segunda mulher foto-desenhada estava sorrindo em suas fotos de corpo inteiro. Mesmo com experiência, Karina e Hannah não ficaram muito satisfeitas com o desenho de sua expressão facial. O rosto é uma área difícil de ser traduzida em desenho linear. Deixaram como estava, pois não se sentiram à vontade para “criar” uma modificação, ainda que isso fosse possível tecnicamente. Uma coisa era excluir um elemento lateral, um pedaço de planta, um detalhe ao fundo; outra coisa seria alterar a expressão facial da pessoa autorretratada, pois desde o início assumimos o compromisso da devolução das imagens em forma de desenho.
Chegamos então aos autorretratos enviados por outras duas mulheres. Sua produção contou com a participação de Hannah, então ciente dos desafios enfrentados por Karina, o que reforçava nossa co-autoria no processo criativo-etnográfico. Nestas duas imagens, o desenho explora com mais ênfase três tipos de linhas. Se voltarmos à imagem da primeira mulher foto-desenhada, veremos que há uma ênfase no contorno, que é uma técnica específica de desenho baseada na percepção dos espaços positivo e negativo formados por uma figura. Nesta, Karina utilizou uma espessura de linha para o contorno da mulher e suas plantas, e outra espessura (mais fina) para as formas internas. Com essa “lente”, um leitor mais atento verá que a planta popularmente conhecida como samambaia (no canto superior direito) foi feita posteriormente, quando Karina se sentiu mais segura para desenhá-la (é uma planta com contornos extremamente complexos, daí a dificuldade). Esqueceu-se, no entanto, de utilizar as duas espessuras de linha, como nas demais vegetações. No caso da segunda mulher foto-desenhada, Karina fez uma tentativa de ser mais “pictórica” em algumas partes do desenho, dada a complexidade da cena e a quantidade de cheios que precisavam ser esvaziados.
Já nos desenhos das mulheres foto-desenhadas abaixo, as fotografias favoreciam novamente o desenho linear. Karina utilizou principalmente três tipos de linha, optando por maior solidez na figura humana, seguida da linha um pouco menos nítida dos objetos e, numa terceira camada, a linha difusa nas estampas (de tecido e plantas).

Entre os dois autorretratos (Figura 4), o desafio no caso da quarta mulher foto-desenhada (abaixo) foi o fato de ela estar numa área gramada. Portanto, é o único em que a textura do piso contribui para o entendimento da imagem. Esse ganho de informação, que se estende aos vasos, se contrapõe a uma perda de cenário, já que a modelo está num espaço com fundo de plantas tão difuso que foi impossível desenhá-lo na gramática linear. Sua imagem apenas sugere esse ambiente, sem se preocupar em defini-lo (Figura 5).

Por último, Karina enfrentou os desafios do autorretrato da mulher foto-desenhada abaixo. Neste, a única orientação prévia era o texto-convite de Hannah. Para contornar as limitações já apontadas acima, a desenhadora criou marcas gráficas semelhantes às plantas já existentes para dar sentido à parte inferior da imagem. Além disso, teve que simplificar as plantas que envolvem a modelo para que pudéssemos enxergá-las por meio das ferramentas do desenho linear (Figura 6).

A vegetação que a envolve não tinha texturas muito nítidas, de modo que a dificuldade era conseguir tornar as folhas perceptíveis em branco com linhas pretas.
Nesta, como em todas as imagens, demos ênfase às texturas dos cabelos das retratadas, uma vez que este é um elemento com profundo impacto na análise dos dados de Hannah. Foi por meio desta percepção que ela própria, mulher negra, produziu a virada metodológica que redirecionou sua pesquisa de uma etnografia sobre o movimento do sagrado feminino para o foco nas mulheres negras e o autocuidado (Vasconcellos, 2024). Entendemos, assim, que a opção pelo desenho linear foi uma limitação (de cor e fundo), mas também um ganho no diálogo com aspectos do material etnográfico. Se olharmos com cuidado as mulheres acima desenhadas, veremos que cada uma possui um estilo de cabelo distinto, todos dentro de uma identidade coletiva de mulheres negras. Essa diversidade não é um detalhe trivial: o cabelo é um marcador de pertencimento, resistência e subjetividade, especialmente em contextos onde os corpos negros são historicamente regulados e controlados (Vasconcellos, 2024). Podemos dizer que, neste caso específico, a diversidade visual traz com força algo que está no texto da tese de forma simplificada. Como afirmou Cavallo, “o desenho permite ‘desocultar’ elementos que ficam perdidos na verbalização” (Cavallo, 2024, p. 810).
Um detalhe que não deve passar despercebido é a inclusão da assinatura da desenhadora com a marca gráfica “@kk” em todas as imagens. Esta foi uma opção consciente no processo, de forma a contrastar com o histórico apagamento das autorias de desenhos em materiais antropológicos (Kuschnir, 2016). Gama observa que o mesmo ocorria com as imagens fotográficas, muitas armazenadas sem autoria, pois eram vistas como “um serviço técnico, secundário, nem sempre era digna de reflexão ou mesmo de valorização enquanto produto etnográfico” (Gama, 2020, p. 109). Além disso, incluir a assinatura da desenhadora pareceu-nos reforçar nossa busca pela afirmação de que o desenho — e as imagens em geral — não são ferramentas neutras, mas enfeixadas de premissas, escolhas e interpretações subjetivas, conforme este relato procura demonstrar.
Como ciclo percorrido por estas imagens, temos a etapa que se deu após a elaboração da tese de Hannah. Os desenhos produzidos por Karina foram impressos e enquadrados numa moldura por Hannah para serem presenteados às autoras dos autorretratos que lhes deram origem. Vários deles foram então pendurados como quadros em suas casas, marcando assim uma nova existência das imagens originais: como lugar de memória, homenagem, orgulho, enfeite, obra de arte e autorretrato, agora reidentificado, uma vez que exposto no espaço da casa de sua primeira autora. Como nos conta Damásio, em relação às suas fotografias de pesquisa, agora as imagens compunham não apenas o corpo etnográfico, mas estavam integradas “à parede da sala em outro tipo de exposição, recontando a história da família e também da pesquisa.” (Damásio, 2024, p. 18).
Para além da devolução das imagens em si, a própria existência do trabalho em torno da produção das imagens em fotografias e desenhos gera uma experiência etnográfica com impacto emocional para todas as mulheres envolvidas. A força desta vivência é descrita por Cavallo (2024):
Para mim, desenhar tem a ver com um ato de devolução: de tradução afetiva do que recebo através da observação e da experiência. Por isso, traduzir partes do meu terreno graficamente foi e é, em primeiro lugar, devolver algo que ficou oculto no texto, uma afeição pelas histórias que me foram contadas, pelas pessoas com quem me cruzei e que partilharam o seu tempo comigo. Para mim, o desenho representa quase uma forma de alívio por expressar algo não falado, não escrito. A expressão gráfica é um ato que poderia definir como afetivo, emocional. (p. 808)
Este retorno configura um importante ato de devolução na trajetória de uma pesquisa etnográfica e traz questões para o debate da antropologia contemporânea que mencionamos no início deste artigo. Em quais aspectos as fotografias e desenhos contribuíram ou podem ainda contribuir para uma pesquisa etnográfica comprometida com o “chacoalhar das narrativas hegemônicas” (Fonseca, 2008), superando hierarquias, com abordagens mais colaborativas, sensíveis e dialógicas? Na próxima seção abordaremos essas implicações em diálogo com a literatura sobre etnografia, metodologia e visualidades.
Considerações finais - A foto-desenho como espaço colaborativo e interpretativo
A fotografia já foi vista como um dispositivo para alcançar a imortalidade, monumento capaz de capturar o eterno da vida, salvando-nos da morte e do esquecimento, mas, para Barthes (1984), a fotografia “é desprovida de futuro”. A imagem fotográfica, diz o autor, “é plena, lotada: não tem vaga, a ela não se pode acrescentar nada.” (Barthes, 1984, p. 133). Porém, para o filósofo, o fotografado traz consigo a fascinante certeza de que aquilo “existiu”, em contraste com o pictórico: “já que nenhum retrato pintado, supondo que ele me parecesse ‘verdadeiro’, podia impor-me que seu referente tivesse realmente existido” (Barthes, 1984, p. 116)
É interessante como esse clássico sobre a imagem fotográfica continua instigante para pensarmos os vários sentidos das imagens. Em nosso empreendimento de pesquisa, experimentamos “acrescentar” o desenho às fotografias, trazendo uma dimensão que as sobrepõem, mas não as exclui. Como tentamos argumentar, as linhas gráficas reformulam a sensação de plenitude (da fotografia), produzindo vazios, recortes, simplificações, a partir do olhar e da subjetividade da desenhadora e dos conceitos produzidos pelo material de pesquisa. Para teóricos da área como Berger (2005) e Taussig (2011), os desenhos trariam um tempo estendido, um prolongamento da vida, frente ao que seria estático da fotografia.
Sem pretender generalizar, concordamos que, no nosso caso, sim, isto ocorreu: os materiais desenhados ganharam existência e futuro, seja na forma de documentos antropológicos (na tese e neste artigo), seja como quadros dispostos como obras de arte na casa das interlocutoras. No conceito de foto-desenho, conciliamos os atributos do fotográfico — isto existiu — e do desenhado — isto expressa uma temporalidade estendida, que transcende o tempo de sua existência. Nessa metamorfose, conseguimos falar de um espaço privado, vulnerável (esta mulher fotografada), em um espaço seguro, público, coletivo e politicamente relevante, com imagens de mulheres negras desenhadas com suas plantas que contribuem para o conhecimento sobre seus saberes sobre passado, presente e futuro.
Nossa abordagem alinha-se à sugestão de Edwards (2021) de tomar as imagens fotográficas em sua materialidade, considerando sua “biografia social, enquanto objetos ativos numa matriz de trocas — pessoais, comerciais, morais, políticas” capazes de gerar novas formas de percebê-las (p. 27). Ao se transformarem em desenhos, não apenas garantiram o anonimato das interlocutoras, mas também se deslocaram para outro espaço interpretativo, passando a operar como representações coletivas e afetivas da relação de muitas mulheres negras com suas plantas e ervas. Esse processo ressignificou as imagens originais, gerando novas possibilidades de leitura e evocação, tanto para as participantes quanto para o desenvolvimento da pesquisa.
A devolução dos desenhos seguiu a lógica de buscar um fazer antropológico mais horizontal e colaborativo, alinhado à reflexão de Fleischer (2015) sobre a importância da devolução como etapa constitutiva da pesquisa. Diferentemente do contexto desta autora, porém, no nosso caso, a recepção das imagens foi marcada por afetividade e engajamento, sem conflitos ou pedidos de alteração. Também percebemos uma experiência contrastante com a narrada por Damásio (2024) sobre a pouca “aderência” dos materiais gráficos frente aos fotográficos. Em nossa experiência, o desenho pareceu reforçar positivamente a autoimagem das participantes, que colaboraram conosco de forma autônoma e prática.
Em termos metodológicos, as imagens tiveram diferentes papeis em várias etapas: de suporte interpretativo, à ilustração e impacto estético nas páginas da tese, terminando por ocupar um lugar de representação, memória, subjetividade e troca quando enquadradas e dispostas nas casas de suas co-autoras. Como afirmaram Afonso e Ramos (2004, p. 88), os desenhos são valioso complemento à expressão verbal em diferentes estágios de pesquisa, trazendo uma “convergência entre palavras e imagens” essencial para “construir e representar o conhecimento antropológico”.
Concordamos com Gama (2020, p. 110) quando sugere que a análise de empreendimentos imagéticos permite compreender não apenas a estética envolvida, mas também o contexto político dessas produções e sua relação com a “própria antropologia (acadêmica e prática)”. No caso desta pesquisa, a adoção do desenho como estratégia metodológica não se limitou a uma alternativa técnica, mas funcionou como um dispositivo de compartilhamento. Este foi recebido pelas interlocutoras como uma extensão da pesquisa, ampliando os sentidos atribuídos por elas mesmas às imagens iniciais que nos foram enviadas e reafirmando a colaboração como eixo central da experiência etnográfica.
Retomamos o argumento de Afonso e Ramos (2004) de que os desenhos contribuem para a interpretação do campo. O processo de “foto-desenho” teve esse papel, materializando visualmente e consolidando o conceito de quintal de vaso na argumentação de Hannah em sua tese (Vasconcellos, 2024). Como descrevem os autores, as ilustrações não apenas documentam as narrativas, mas permitem compreender os contextos simbólicos que as enquadram (Afonso e Ramos, 2004, p. 82). O desenho de linhas traz um “impacto visual” com expressividade distinta das fotografias, gerando representações pictóricas que atuam também como dispositivos mnemônicos, capazes de tornar visíveis significados implícitos (idem). Além disso, o processo de feitura ofereceu a oportunidade de Hannah, Karina e cinco mulheres interlocutoras da pesquisa de estabelecerem colaboração e diálogo.
A semanas da finalização da tese, quando os desenhos acima estavam na etapa digital (prontos para serem incluídos no texto), Karina enviou a Hannah duas imagens novas. A primeira, que abre este artigo, foi sua sugestão para a introdução da tese. O desenho exclusivamente de plantas parece indicar um espaço à espera de gente, que viriam nos capítulos seguintes, em texto, fotografias e desenhos. A segunda foi um desenho-surpresa preparado por Karina, antropóloga-desenhadora, a partir de várias fotografias que Hannah tirou de sua própria casa, a pedido de Karina. Hannah é a autora da pesquisa que deu origem a essa colaboração. O tamanho e a complexidade do vegetal pareciam ilustrar o desafio de um trabalho acadêmico de 5 anos, com uma pandemia mundial no meio, repleto de desafios mas também povoado de afeto, leveza e vida. Tanto para quem desenhou (Karina) quanto para quem viu (Hannah e seus leitores), essa imagem da jiboia (abaixo) pretendia evocar o caráter meditativo, sensorial e temporal do desenho, permitindo a todos um pouco de ar no mar de conceitos e palavras que sobrecarregam o fazer acadêmico, numa reflexão que fazemos a posteriori inspiradas em Mazzella di Bosco (2024, pp. 12-13) (Figura 7).

Referências
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Notas
*
Artículo
de investigación
Sobre os autores
Karina Kuschnir é professora associada do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS/UFRJ, onde coordena o Laboratório de Antropologia Urbana e desenvolve projetos sobre desenhos etnográficos. É autora e ilustradora do blog https://karinakuschnir.wordpress.com
Hannah de Vasconcellos é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e jornalista. Professora substituta no Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ) e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos em Corpos, Gêneros e Sexualidades (NUSEX/Museu Nacional/UFRJ) e ao grupo de pesquisa coordenado por Christiano Key Tambascia (IFCH/UNICAMP).
1
As Jornadas de Antropologia John Monteiro são
um evento anual organizado pelo corpo discente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A
programação inclui o Prêmio Mariza Corrêa de Antropologia Visual, que reconhece
produções visuais e audiovisuais em diálogo com a antropologia. As atividades
são realizadas em formato presencial e online, permitindo ampla participação.
Disponível em https://jornadasantropologia.wordpress.com/finalistas-pmc-2024/
2
O estágio docente é uma prática acadêmica
comum em programas de pós-graduação, na qual estudantes participam de
atividades de ensino em disciplinas de graduação, desenvolvendo habilidades
pedagógicas e ganhando experiência docente.
3
Grafia abreviada e informal mantida do
original. O referido Capítulo 4 tornou-se Capítulo 5 na versão final da tese.
4
Este, assim como todos os demais nomes de
mulheres da pesquisa aqui mencionados são fictícios.
Autor notes
a Autora de correspondencia. Correo electrónico: karinakuschnir@gmail.com
Informação adicional
Cómo citar: Kuschnir,
K. y De Vasconcellos, H. (2025). Fotografias e desenhos etnográficos: práticas
colaborativas e processos criativos em antropologia. Universitas Humanística, 94. https://doi.org/10.11144/Javeriana.uh94.fdep