O PODER NA TEORIA FEMINISTA DA SEGUNDA ONDA: VISÕES COMPLEMENTARES

POWER IN THE SECOND-WAVE FEMINIST THEORY: COMPLEMENTARY STANDPOINTS

Ayda Elizabeth Blanco Estupiñán

O PODER NA TEORIA FEMINISTA DA SEGUNDA ONDA: VISÕES COMPLEMENTARES

Universitas Philosophica, vol. 38, núm. 77, 2021

Pontificia Universidad Javeriana

Ayda Elizabeth Blanco Estupiñán *

Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia, Colombia


Recepção: 29/10/20

Aprovação: 22/09/21

Resumo: Este artigo investiga quais são os principais conceitos de poder propostos pela teoria feminista no contexto da segunda onda, de modo a sustentar que são identificáveis dois conceitos fundamentais e complementares. Para tanto, propõe-se um percurso pelas principais ideias do feminismo acerca do poder surgidas a partir da década de 1960, nas quais o poder aparece relacionado, principalmente, aos conceitos de dominação e opressão, mas também aos conceitos de empoderamento, recurso, cuidado e liberdade. Com base no mapeamento teórico realizado, argumenta-se que, para a análise das relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres, é necessário retomar tanto o conceito de poder como dominação quanto do poder como empoderamento.

Palavras-chave:mulher, poder, feminismo, segunda onda, empoderamento.

Abstract: This article inquires which are the main concepts of power proposed by the feminist theory in the context of the second-wave, in order to argue that it is possible to identify two fundamental, complementary concepts. By way of a revision of the central feminist ideas of power emerged in the 1960s, it is shown that they are mainly related to the concepts of domination and oppression, but also to the notions of empowerment, resource, care, and freedom. It is then argued that for analyzing the power relationships between women and men it is necessary to return to both the concept of power as domination and the concept of power as empowerment.

Keywords: women, power, feminism, second-wave, empowerment.

Os debates teóricos do movimento feminista da segunda onda1 focaram-se nos modos pelos quais as mulheres poderiam adquirir e usar o poder que lhes tinha sido negado historicamente pela sociedade patriarcal. No entanto, na teoria feminista não existe um consenso sobre o que significa o poder nem como ele determina as relações entre homens e mulheres estabelecidas na sociedade e na cultura. Assim, na teoria feminista surgida a partir da década de 1960, revisada e discutida fortemente na década de 1980, são identificáveis dois conceitos fundamentais de poder que são complementares para a compreensão das relações de poder. O poder aparece relacionado, principalmente, aos conceitos de dominação e opressão, mas também à visão de empoderamento. A análise da teoria acerca do tema permite argumentar que para a análise das complexas relações de poder estabelecidas entre mulheres e homens é necessário considerar tanto o conceito de poder como dominação quanto como empoderamento, dado que esse opera de modo difuso, diluído e subjacente.

O poder é considerado um conceito fundamental para as Ciências Sociais e para o entendimento de qualquer sociedade (Clegg & Haugaard, 2009, p. 2, 3). Embora a questão do poder já estivesse presente nas discussões feministas da primeira onda como diretamente ligado à luta pela equidade e igualdade de direitos, é a partir da década de 1980 que o conceito do poder se tornou mais relevante nos debates acadêmicos. Em “Ideas de poder en la teoría feminista”, María de la Fuente (2015, p. 173) aponta que a segunda onda do feminismo focou suas análises teóricas na dinâmica da opressão-libertação, na qual o poder é o centro da lógica das relações sociais. Não obstante, na teoria feminista existe uma pluralidade de concepções sobre o que é o poder e os modos pelos quais opera.

O poder aparece relacionado à opressão, uma vez que a proibição e submissão da mulher infligidas pelo patriarcado2 contribuíram a definir tudo que é feminino em parâmetros inferiores e negativos. As ideologias patriarcais marginalizaram a mulher do exercício do poder, porque nelas primam a dominação, a autoridade, a desigualdade e a discriminação. Embora a discussão do poder não tenha se limitado à relação dominador/dominada, segundo De la Fuente (2015, p. 173), ela se enquadra na “lógica da opressão e da liberação” sublinhada nos debates da segunda onda do feminismo.

Em Frameworks of Power, Stewart Clegg (1989, p. 149) afirma que o poder, por ser um conceito ligado à política, está intimamente relacionado com as interações sociais na vida cotidiana. Nessa linha, as teóricas feministas se interessaram por compreender e modificar as estruturas comuns do poder patriarcal, por meio no qual as mulheres são submetidas aos homens nos âmbitos social, cultural e econômico. Com base na diferença sexual biológica como norma, se privilegia “o masculino e se subordina a subjetividade feminina” (Clegg, 1989, p. 152)3, limitando a atuação das mulheres nos contextos nos quais o poder é determinante.

Na teoria feminista no contexto da segunda onda, o tema do poder é analisado a partir do fato de que os homens dominam e oprimem as mulheres, pois, como sistema de controle protagonizado por eles, o patriarcado impedira a mulher de explorar um discurso próprio e elaborar um reconhecimento profundo da sua habilidade para exercer o poder nos âmbitos político e social, ao ser excluída desses em prol do cumprimento das normativas de gênero impostas.

Na visão clássica de poder (Dahl, 1957, p. 202), esse é apresentado como um conceito contrário à liberdade; portanto, os agentes oprimidos pelas estruturas de poder estão limitados pelo discurso oficial imperante. Para as feministas radicais, o poder envolve explicitamente a ideia de dominação, enquanto é exercido por sujeitos sociais mais fortes para se impor sobre outros mais fracos, no caso específico homens sobre mulheres, o que gera relações baseadas na violência e na coerção, e monopoliza um único discurso como normatividade (Clegg & Haugaard, 2009, p. 2, 3). A dominação de um indivíduo ou um grupo impede que desenvolvam sua “capacidade de liberdade e transcendência”4 (Allen, 2009, p. 296) e, portanto, impossibilita a construção de novas formas de convivência na sociedade. Daí se derivam mais modos de opressão: “racismo, exclusão de classes, heterossexismo”5 (Allen, 2009, p. 293), que estigmatizam aqueles que fogem das normas estabelecidas socialmente.

O problema da definição de poder como dominação proposta pelas feministas radicais é que enfatiza a posição das mulheres como subjugadas pelo sistema patriarcal, definindo-as somente como “vítimas carentes de poder” (Castellanos, 2011, p. 39) sem agenciamento algum, concepção que as apaga como sujeitos e ignora seu agenciamento e resiliência. Segundo Gerhard Göhler (2009), “as experiências de poder são particularmente complexas”6 (p. 27), o que impossibilita a delimitação específica e imodificável de um sujeito dominado e um dominador, pois as relações de poder que os unem são sempre instáveis e dependem do contexto social, cultural e histórico no qual agem.

Segundo Michel Foucault (1983)7, a complexidade do conceito de poder deriva de seu caráter onipresente em todos os sistemas sociais, dado que nenhum sujeito pode agir fora dos “mecanismos ou estruturas de poder” (p. 217) normatizados em diferentes momentos históricos. Com fins regulatórios, cada sociedade estabelece normas para disciplinar os seus integrantes e definir quais discursos e comportamentos são apropriados ou não, fato pelo qual o poder não pode ser visto como acabado e fixo, mas como “plural, dinâmico e multidireccional” (Castellanos, 2011, p. 42) e em constante transformação e ressignificação. O poder não só pode ser visto como um recurso que se possui ou de que se carece, porque é também uma força que se exerce e se intercambia em diversos momentos no aparato estatal (Foucault, 1987, p. 26)8. O poder, então, é relacional e está presente, com as suas múltiplas variáveis, em todas as relações sociais e culturais.

Por sua parte, Hanna Piktin (1972) afirma que o poder pode ser entendido como “uma capacidade, uma potência, uma habilidade”9 (p. 276), definição que implica compreender como ele é exercido, em quais contextos e como se relacionam os agentes da interação. Assim, o poder pode significar a imposição de intenções e propósitos de umas pessoas sobre outras (poder sobre) nas relações sociais e, ao mesmo tempo, pode ser definido como uma habilidade pessoal e independente para realizar uma ação sem envolvimento ou influência de outros (poder para). Essa distinção permite identificar o poder como determinante das normas de uma sociedade, fora das quais ele “produz um resultado negativo para aqueles [que são] sujeitados”10 (Göhler, 2009, p. 28) porque constrange sua capacidade de atuação.

De acordo com Göhler (2009, p. 30), a discussão feminista em relação ao poder tem considerado tanto as ações quanto as estruturas, ao levar em conta que as mulheres têm sido submetidas por meio de ações explícitas contra elas e pelas estruturas sociais que as limitam e excluem de múltiplas formas, com base em aspectos biológicos que, supostamente, implicariam uma inferioridade em relação aos homens. Dessa diferenciação negativa entre homens e mulheres e do exercício desigual do poder, origina-se a lógica de que a dominação elimina a habilidade independentemente de atuação, quando o que deveria estar em vigor é a liberdade de escolha e a igualdade entre os sexos em todos os âmbitos da sociedade.

Segundo Amy Allen (2009), enquanto as feministas da segunda onda discutiam o problema do poder como “dominação, opressão e subordinação”11 (p. 293) estavam construindo implicitamente o conceito de poder como uma força exercida sobre outros (poder sobre) e, ao criticar e denunciar as dinâmicas opressivas do patriarcado, redefiniram o poder como um tipo de transformação ou empoderamento (poder para ou poder com), cujos escopos e variações dependiam das relações de gênero. Entretanto, é impossível dar uma única definição feminista do poder, porque no feminismo ele foi trabalhado não como um conceito isolado mas ligado às discussões acerca de outros temas, tais como “a pornografia, a maternidade, o casamento, o assédio sexual, o cuidado e a igualdade”12 (Allen, 1998, p. 21), nos quais a interação entre homens e mulheres aparece determinada por quem exerce ou tem mais poder.

Em “Rethinking Power”, Amy Allen (1998) afirma que, na teoria feminista, é possível identificar dois modos ou categorias principais de poder: como dominação e como empoderamento. O poder como dominação, ou “poder sobre”, implica limitar as opções e o espaço do outro com a criação de certos mecanismos de controle e adequação a uma norma geral. Enquanto empoderamento, ou “poder para”, é possível evidenciar uma possibilidade de prática, de exercício, de tomada do poder, unida à liberdade para decidir e atuar. Allen (1998) defende que esses dois conceitos de poder precisam ser repensados e ampliados pelo feminismo com o propósito de ter em conta as “diversas experiências das mulheres com o poder” (p. 21) para analisá-las a partir de uma ótica mais abrangente.

Em um estudo posterior, “Feminist Perspectives on Power”, Allen (2005) adiciona o conceito de poder como recurso, ao argumentar que o poder é “um bem que deve ser redistribuído equitativamente” (s. p.)13, pois não é exclusivo dos homens e não está determinado pela diferença de gênero. A conceituação proposta por Allen será revisada por De la Fuente (2015, p. 173) para complementá-la com as definições de poder como cuidado e poder como liberdade, originadas também pelos debates produzidos na segunda onda do feminismo. Assim, seguindo Allen e De la Fuente, na teoria feminista o poder pode ser visto como recurso, dominação, empoderamento, cuidado e liberdade, embora seja temerário estabelecer limites específicos entre um conceito e outro.

1. Poder como recurso

A noção de poder como recurso, segundo Allen (2005), está ligada à visão do poder como um bem social que não está dividido adequadamente entre homens e mulheres. Essa má distribuição do poder justificaria o objetivo do feminismo de redistribuí-lo para que as mulheres o possuam em grau igual aos homens. A feminista liberal Susan Moller Okin desenvolve o tema do poder como recurso em Justice, Gender and the Family (1989), ao argumentar que a família contemporânea, estruturada de acordo com papéis de gênero, distribui injustamente o poder entre homens e mulheres. Okin (1989) inclui o poder na lista do que ela chama de “bens sociais críticos”, assim como “trabalho, poder, prestígio social, autoconfiança, oportunidades de autodesenvolvimento, segurança física e emocional”14 (p. 136), e afirma que tais bens estão mal divididos na sociedade porque ainda são entregues segundo o gênero e não segundo os princípios da igualdade e da justiça.

Okin (1989, p. 4) também afirma que, ao não possuir o recurso do poder, a mulher é vulnerável à objetivação e à violência tanto no espaço doméstico quando no laboral, dado que neles existe um ciclo de relações de poder e de decisões contra ela que reforçam as iniquidades entre gêneros, embora homens e mulheres possam desenvolver as mesmas habilidades nesses âmbitos e tenham responsabilidades semelhantes. Ao ter em conta a divisão desigual do recurso do poder e das injustiças vividas pelas mulheres por serem mulheres, Okin (1989, p. 14) ressalta a necessidade de construir e pôr em prática uma teoria social da justiça em que a mulher seja considerada igual ao homem em todos os contextos, para assim diminuir as desigualdades de gênero das quais as mulheres têm sido vítimas.

De la Fuente (2015, p. 177) sugere que o conceito do poder como recurso aparece com bastante frequência nas discussões políticas, dado que nesse âmbito se afirma que as mulheres não possuem poder suficiente, o que não implica que estejam subordinadas ou dominadas, pois simplesmente carecem dele e é necessário redistribuí-lo equitativamente entre homens e mulheres. A esse respeito, em The Second Stage, Betty Friedan (1998, p. 81) afirma que as mulheres têm alcançado certas cotas de poder na sociedade, mas não têm conseguido uma posição igualitária à dos homens, porque os papéis de gênero ainda a posicionam no âmbito doméstico como o espaço ideal para a sua autorrealização. Esse fato lhes nega o recurso do poder ao definir família, a maternidade e o cuidado de casa como as suas responsabilidades máximas. Portanto, se faz indispensável uma divisão equitativa do poder e de responsabilidades na esfera pública e na doméstica.

A ideia do poder como um recurso a ser possuído tem sido criticada, dado que o tema não pode ser analisado a partir de um simples modelo distributivo (De la Fuente, 2015, p. 178), visto que o poder não é estático nem quantificável e ao envolver processos de empoderamento e de democratização presentes em uma sociedade que muda constantemente. Apesar da noção de poder como recurso estar presente na teoria feminista, ela não responde à complexidade de situações nas quais o poder determina as relações de gênero. Por essa razão as feministas radicais defenderam a ideia de que as mulheres não têm poder porque são subjugadas e diminuídas pela sociedade patriarcal.

Para a teoria feminista produzida a partir de 1970, um dos estudos mais relevantes sobre a condição da mulher na sociedade e na cultura é O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, que apresenta o conceito de poder como dominação de um ponto de vista fenomenológico. Beauvoir (2009, p. 20) analisa os aspectos sociais, históricos, biológicos, antropológicos e econômicos que têm sido usados para posicionar as mulheres no lugar do “inessencial”, enquanto os homens têm se assumido como sujeitos do transcendente, o que tem transformado as mulheres em um grupo oprimido pelo patriarcado e com poder limitado por ele.

De acordo com Jo-Ann Pilardi (2010, p. 30), a tese central de Beauvoir postula que o patriarcado tem condenado as mulheres à imanência, negando-lhes a possibilidade de serem tratadas como sujeitos transcendentes. Na cultura patriarcal, a imanência é considerada uma qualidade natural equiparável com os aspectos biológicos, expressa especialmente na maternidade, e diferençável da supremacia masculina, a qual permite que os homens tenham mais liberdade sexual. Assim, o papel e as ações das mulheres na sociedade estão limitados à sua capacidade de gestação e “prática da maternidade”15 (Pilardi, 2010, p. 35), enquanto os homens podem se construir como sujeitos ao desempenharem diversos papéis sociais e ao terem maior liberdade tanto sexual quanto econômica.

Para Beauvoir (2009), os homens e as mulheres não têm partilhado relações de poder iguais na sociedade porque elas têm sido escravas, ou quando menos vassalas, dos homens, justificando-se isso por meio da diferenciação biológica. A mulher também se encontra em uma posição de prejuízo nos âmbitos político e laboral. Uma vez que seus direitos só são “abstratamente reconhecidos” (p. 24), ela não está em igualdade de condições e o seu poder é limitado a não possuir salários justos, ter menores possibilidades de sucesso e ocupar lugares menos importantes do que os dos homens. A realidade feminina na sociedade é, então, a de um “Outro”, diferenciado e dominado.

2. Poder como dominação

Com base nas ideias expostas pela filósofa francesa, as feministas radicais entenderam o poder como uma relação de dominação dos homens sobre as mulheres, similar àquela entre mestre e escravo (Allen, 2005), sendo a diferenciação sexual o fator determinante para a mulher ser dominada e oprimida. Apesar de o conceito de poder como dominação excluir as mulheres como possíveis agentes de violência e opressão, na teoria feminista produzida entre os anos 1970 e 1990 esse foi um dos conceitos mais discutidos e defendidos, partindo-se do pressuposto de que, na sociedade patriarcal, ser “o masculino significa ser livre, enquanto ser o feminino é ser sujeitado”16 (Allen, 1998, p. 23) e, por conseguinte, carente de poder.

Em Pornography, Andrea Dworkin (1989) defende o conceito de poder como dominação, ao defini-lo como uma relação fundamentada na violência e na exploração inerente à heterossexualidade, na qual a mulher é vista como um objeto a ser possuído pelo homem sob a lógica da supremacia masculina, o que se reflete em formas extremas de dominação tais como a pornografia, o assédio sexual e o estupro, por meio das quais a mulher é vitimada. Para essa feminista radical, o homem possui diversos poderes que lhe têm permitido oprimir e dominar a mulher para manter sua hegemonia social. Assim o poder masculino como um todo se constitui pelo “poder de si, o poder físico sobre e contra outros, o poder do terror, o poder da nomeação, o poder da possessão, o poder do dinheiro e o poder do sexo”17 (Dworkin, 1989, p. 24), todos a serviço dos interesses patriarcais.

Os diferentes tipos de poder estão interligados e funcionam para “perpetuar, expandir, intensificar e elevar”18 (Dworkin, 1989, p. 25) o poder masculino sobre a mulher. O poder de si é, para Dworkin (1989, p. 15), uma afirmação social de autoridade, isto é, o fato de ser reconhecido socialmente como masculino dá ao homem a autoafirmação e o exercício absoluto do poder, o qual lhe possibilita definir a mulher como inferior. O poder físico visto como atributo masculino também diminui a mulher, porque seu corpo é considerado frágil e suscetível de dominação e violência. Esses dois poderes criam estereótipos sobre o que significa a feminidade, pois envolvem a ideia de que a mulher deve ser delicada, recatada, discreta, calada e condescendente, porque, ao final das contas, é o homem quem tem toda autoridade, habilidade e força para dominá-la.

O poder do terror é o uso da força para gerar medo em uma pessoa ou grupo; baseia-se na concepção do outro como totalmente carente da habilidade para se defender dada sua inferioridade física ou psicológica. Os diversos atos de terror, tais como o assédio, o estupro, a tortura, o sequestro e a exploração sexual, executados pelos homens contra as mulheres, são muitas vezes justificados por uma suposta natureza agressiva, cruel, conflitiva e perigosa (Dworkin, 1989, p. 16) que é considerada parte essencial da masculinidade. Segundo Dworkin (1989), o poder do terror funciona comumente por meio do uso de símbolos, como “a arma, a faca, a bomba, o punho”19 (p. 15), que são de fácil reconhecimento, mas o principal símbolo de terror utilizado pelo homem para gerar o medo na mulher é o pênis, pois com esse pode ser agredida e magoada. Assim, a potencial violência contra a mulher é uma das principais formas do poder do terror.

O quarto poder sublinhado por Dworkin (1989, p. 17) é o da nomeação ou o uso da linguagem para definir e limitar os âmbitos de domínio. O poder de nomear dá aos homens uma grande vantagem sobre as mulheres, pois são eles que decidem quais são as qualidades morais e os comportamentos a serem aceitos como normais e corretos. Igualmente, o uso da linguagem por parte dos homens para se referir às mulheres as tipifica com qualidades negativas, por exemplo ao usar palavras como prostituta, cadela ou vagabunda para acusar a mulher de ter comportamentos sexuais inadequados socialmente. Graças ao poder de nomeação, os homens definiram as mulheres como bruxas, demoníacas, insaciáveis, fracas e inferiores, e isto lhes possibilitou dominá-las.

O homem também exerce o poder da possessão, refletido socialmente no casamento como instituição (Dworkin, 1989, p. 19) na qual é possível dispor sexual e reprodutivamente da mulher, pois esta é tida como mais uma propriedade do homem. O poder de possessão dá a ele a licença de mandar sobre a mulher, embora usando a força ou a violência, e reafirma a superioridade sociocultural do masculino. Esse poder de possuir se relaciona diretamente com o poder do dinheiro, que permite ao homem adquirir bens e, ao mesmo tempo, “honra e respeito”20, porque o dinheiro para ele é sinônimo de “valor e realização”21 (Dworkin, 1989, p. 20), enquanto nas mãos da mulher é mostra de ambição e cobiça. O fato de o homem exercer o poder do dinheiro, e a mulher não, gera maior desigualdade, exclusão e discriminação.

Segundo Dworkin (1989), o poder do dinheiro é tão forte que envolve até um componente sexual, o poder do sexo, pois na sociedade patriarcal os homens vêem as mulheres como uma mercadoria a comprar, daí que exista a produção e consumo de serviços sexuais, como a prostituição e a pornografia, atividades que objetivam, exploram e marginalizam a mulher. O poder do sexo envolve então um ato de possessão e dominação do corpo feminino, que não é entendido como violento, mas indispensável para a masculinidade. Na definição do poder do sexo aparece também o símbolo do pênis como instrumento a ser utilizado contra a mulher, dado que para a cultura patriarcal representa “energia, força, ambição e asserção”22 (Dworkin, 1989, p. 23), e não intrusão ou perigo.

Uma proposta que complementa a discussão desenvolvida por Dworkin é a de Iris Marion Young (1988), que define o poder como uma relação injusta, ilegítima e opressiva entre homens e mulheres, na qual o corpo feminino é objetivado e oprimido. Em “Five Faces of Oppression”, Young (1988) estabelece que o poder funciona como dominação ao limitar a “habilidade para desenvolver e exercer capacidades e expressar necessidades, pensamentos e sentimentos”23 (p. 271) de uma pessoa ou grupo específico. Assim as mulheres, por serem mulheres, estão oprimidas pelas ideologias e normativas patriarcais. A carência de poder é, para Young, uma das formas de opressão social, ao lado da exploração, da marginalização, do imperialismo cultural e da violência, condições de injustiça partilhadas por qualquer grupo que seja socialmente caracterizado como inferior em comparação ao executor da supremacia ou dominância.

O poder como dominação gera “desvantagens e injustiças”24 (Young, 1988, p. 271) para as mulheres, porque elas estão limitadas e diminuídas pelas práticas, normas, hábitos e símbolos aceitos como certos na sociedade. Desta forma, a mulher tem estado sob o controle do homem porque assim tem sido determinado pelos padrões sociais com o pretexto de garantir a sobrevivência de instituições como o casamento e a família. De acordo com Young (1988), para as feministas é fácil identificar a opressão das mulheres como se dando por meio de uma “sistemática e não recíproca transferência de poderes”25 (p. 278), em que os homens as excluem dos âmbitos de privilégio e se beneficiam do trabalho realizado por elas, tal como acontece com o cuidado de casa e dos filhos.

Como resultado das relações de poder não igualitárias, as mulheres sofrem também a marginalização, resultante da limitação ao espaço doméstico e aos tipos de trabalho que se lhes tem atribuído socialmente (Young, 1988, p. 279), nos quais muitas vezes carecem de autoridade ou poder. Essa falta de poder se caracteriza porque aquele que não o exerce é quem recebe ordens e não possui o direito de dá-las, além de não ter a oportunidade de desenvolver habilidades próprias. Para o feminismo, as mulheres, ao serem definidas como o Outro, são segregadas e colonizadas pela cultura. Assim, a sua carência de poder é o fator relevante de opressão, pois não contam com o aval nem com as circunstâncias sociais que lhes permitam a entrada em contextos vedados histórica e culturalmente.

Por fim, Young (1988, p. 287) ressalta a violência como uma forma extrema de manter o poder. A violência é sistemática, pois está orientada a grupos específicos, e legitimada, dado que muitas vezes não é castigada pela lei ou é vista como normal pelos membros da comunidade. No caso das mulheres, como grupo oprimido, elas temem sofrer diversas formas de violência, em especial a de tipo sexual, que tem o único propósito de “danificar, humilhar ou destruir”26 (Young, 1988, p. 287) a mulher por ser mulher. Qualquer mulher tem razões bem conhecidas para ter medo de ser atacada, assediada ou estuprada por um homem, delitos esses bastante frequentes.

Na discussão sobre o poder como dominação, Marilyn Frye (1983) expõe a relação entre homens e mulheres como a de mestre e servo, isto porque, historicamente, ao estarem sob o jugo masculino, as mulheres não têm tido a oportunidade de definir quais poderes querem construir ou exercer. Em The Politics of Reality, Frye (1983, p. 9) afirma que a função das mulheres tem sido servir aos homens e aos seus interesses, tendo grandes responsabilidades, mas nenhum poder, dado que os ofícios que se lhes permite desempenhar estão sempre ligados ao cuidado de outros, à satisfação sexual do homem ou ao suporte emocional dele, e não à autorrealização ou ao desenvolvimento de habilidades próprias.

De acordo com a leitura das feministas da segunda onda, as mulheres constituem um grupo oprimido, carente de poder, pelo simples fato de serem mulheres, embora características de classe ou raça as vitimem ainda mais. Frye (1983, p. 16) vê o poder como a dominação do homem sobre a mulher, pois, na sociedade, ser mulher significa ter condições de trabalho inferiores, ser uma vítima fácil de assalto sexual ou assédio laboral e ter menor poder político e econômico, entre outras tantas desvantagens em comparação ao homem. Deste modo, o conceito de poder como dominação reflete o “imperativo patriarcal”27 (Frye, 1983, p. 103) que nega à mulher a participação no fluxo de bens e benefícios controlados pelos homens, motivo pelo qual o acesso ao poder se manifesta em condições desiguais. Para Frye o poder significa ter acesso à palavra e às ações, aspecto coincidente com o referido por Dworkin acerca da possibilidade de nomear e definir. Frye apresenta a opção de entender o poder como a acessibilidade aos espaços proibidos por meio da autodefinição do oprimido, chame-se mulher, escravo ou servo, como um ser livre e independente. Igualmente, em sua visão, um dos aspectos mais relevantes para as mulheres conseguirem o poder é a união entre elas e a luta por alcançar objetivos comuns, pois para ela a divisão gera o desconhecimento e a incompreensão da opressão partilhada pelo fato de serem mulheres, além das circunstâncias individuais28.

Em uma perspectiva similar à exposta por Dworkin, Young e Frye, Catharine MacKinnon (1987) discute o poder como um conceito fundamental para o feminismo e para a compreensão da denúncia feita por este em relação à opressão e às desigualdades das que as mulheres são vítimas. MacKinnon (1987, p. 22) realça a carência de poder como uma das características da posição de inferioridade da mulher nos diferentes contextos sociais, o que tem ocasionado sua exclusão e marginalização, uma realidade que o feminismo tenta mudar por meio do empoderamento e da revalorização da mulher como proposta política. Em Feminism Unmodified, MacKinnon (1987, p. 123) afirma que as diferenças sociais e culturais entre homens e mulheres não só são dadas pelo gênero, mas pelas relações de poder existentes entre eles, pois a mesma noção de gênero é construída com base em uma ideia específica de poder.

O poder como dominação, para MacKinnon (1987, p. 25), se evidencia no lugar de inferioridade no qual as mulheres são posicionadas e pelas situações que devem encarar de acordo com os papéis de gênero impostos a elas, condicionados por uma constante tensão entre o poder e a carência deste. As mulheres estão em um constante estado de ameaça por diversas formas de opressão, visto que não possuem poder necessário para se resguardar delas e porque os homens usam os poderes a que têm fácil acesso para dominá-las, tais como o poder econômico e o uso da força física. Na visão de MacKinnon (1987, p. 30), as mulheres, ao carecerem de poder, constituem um grupo inferiorizado, o que se confirma pelos riscos de serem maltratadas, atacadas, economicamente desfavorecidas ou excluídas.

Segundo MacKinnon (1987), a inequidade de gênero é o resultado de uma distribuição injusta do poder, em específico da “supremacia masculina e a subordinação feminina” (p. 40). O problema gerado pelas relações desiguais de poder entre homens e mulheres é a inequidade existente entre eles, o que produz uma hierarquia de poderes na qual a mulher fica no lugar inferior (MacKinnon, 1987, p, 37) e se lhe atribuem qualidades negativas para justificar essa posição. As desigualdades de poder criam mais diferenças sociais entre homens e mulheres, o que termina provocando uma desigualdade de gênero ainda maior e condições de opressão muito violentas, como o assédio sexual e o estupro, que, em variadas ocasiões, são justificadas pelos homens, que acusam as mulheres de serem provocadoras, coquetes ou prostitutas.

Apesar do conceito de poder como dominação envolver a denúncia da subordinação da mulher pelo patriarcado, as formas de violência que sofre, a exploração sexual, a desigualdade de gênero e a sua carência de poder, assuntos fundamentais para o feminismo, nos debates acerca do tema tem-se problematizado o papel de vítima atribuído à mulher ao considerá-la uma figura totalmente oprimida, pois essa concepção impede conceber as mulheres como seres autônomos e criativos, que, ainda em situações de opressão, encontram formas de resistência, autodesenvolvimento e liberdade. A conceituação da mulher como dominada, diminuída e objetivada exclui a possibilidade do empoderamento feminino.

3. Poder como empoderamento

Em contraparte ao conceito de poder como dominação, algumas feministas propuseram a noção de poder como empoderamento ou “poder para”, no que se destaca a resistência das mulheres por meio da sua capacidade de agenciamento diante das diferentes formas de opressão exercidas sobre elas. Segundo Allen (1998, p. 35), as feministas têm interesse no poder porque o consideram uma das formas mais significativas para combater a dominação masculina e criar verdadeiros espaços de atuação, equidade e liberdade para as mulheres. Deste modo, a teoria do empoderamento focaliza as habilidades e as formas de poder que as mulheres têm para “se transformarem a si próprias, aos outros e ao mundo”29 (Allen, 1998, p. 26), tais como a maternidade e o cuidado do próximo, que aqui não são mais vistos como fatores opressivos.

Em “Women and Power”, Jean Baker (1987) define o poder como uma “capacidade para produzir mudanças”30 (p. 2) nas formas de pensamento, nas emoções e até na maneira como o poder é exercido pelas pessoas para se relacionarem com outras. De acordo com Baker, é muito comum pensar que as mulheres não exercem nenhum tipo de poder, mas isso é um mito gerado pela dessacralização e desvalorização dos papéis tradicionais associados à mulher, em especial a concepção e o cuidado dos filhos, dado que, nessas funções, as mulheres exercem um amplo poder em vários níveis: emocional, psicológico e intelectual, que têm repercussões importantes nos âmbitos econômico, social e político, quando resultam de decisões conscientes e livres.

A proposta de Baker (1987, p. 9) sobre o empoderamento é a transformação das formas como as mulheres têm entendido e entendem o poder, pois afirma que elas têm um profundo medo de exercê-lo. Para alcançar o empoderamento faz-se necessário que as mulheres recebam o apoio de outras pessoas e vençam o medo de serem acusadas de egoístas, impositivas ou dominadoras, para construir verdadeiros relacionamentos e assumir o desafio de desmontar padrões de gênero que as excluem. A visão de Baker coincide com a proposta feita por MacKinnon (1987) e reforçada por Allen (1999) em relação à solidariedade como um valor de importância para o exercício do poder, ao afirmar que as mulheres precisam se ajudar umas às outras para gerar empatia, “reconhecer que certas condições históricas têm feito do poder um conceito complexo”31 (Baker, 1987, p. 9) para as mulheres e identificar opções do seu uso que não estejam ligadas com a subestimação ou dominação sobre outros mas com o empoderamento mútuo.

Em Feminist Morality (1993), Virginia Held propõe uma concepção de poder como empoderamento intimamente relacionada à experiência da maternidade como expressão do cuidado dos outros e de si própria. Para Held (1993, p. 137), a capacidade de conceber e cuidar dos filhos constitui-se como um poder feminino muito importante para a construção de novas noções de poder, empoderamento e autorrealização, porque ao valorizá-la se apaga a ideia da maternidade como uma das tantas formas de opressão contra a mulher e a torna um projeto íntimo, próprio e significativo social e culturalmente.

Na perspectiva de Held, o poder como empoderamento inclui a ressignificação da liberdade como um valor fundamental para mudar visões de gênero opressoras e para possibilitar o uso do poder no completo desenvolvimento das habilidades humanas em condições de equidade. Não obstante, no caso das mulheres não é possível vivenciar a liberdade se não contam com o acesso aos meios políticos, econômicos e culturais para “viver, atuar e alimentar os seus filhos”32 (Held, 1993, p. 175), fato pelo qual se faz necessário analisar as ideias de projeto de vida das mulheres e autodesenvolvimento e fazer dos homens partícipes dessa discussão.

Na proposta de Held (1993, p. 70), o empoderamento está especialmente ligado à revalorização dos cuidados maternais como base da sociedade e da interação humana, porque desses depende a geração da linguagem e dos símbolos constituintes da cultura. Mas é preciso entender que esses cuidados não são exclusivos da mulher, pois os homens também têm a habilidade de exercê-los e incorporá-los como práticas culturais, que deveriam ser reconhecidas dentro de uma teoria moral. No entanto, é preciso ter em conta que existem experiências únicas das mulheres, tais como “menstruar, ter um aborto, dar à luz e amamentar”33 (Held, 1993, p. 80), nas quais os homens não podem participar, mas podem criar empatia e compreensão.

O poder como empoderamento requer a colaboração emocional entre homens e mulheres e o respeito mútuo para assumir e partilhar práticas de diálogo, comportamentos e ações de cuidado de quem mais precisa: crianças, pessoas doentes e idosos. Desta forma, a mulher não será mais a única responsável por tarefas consideradas culturalmente como femininas, como a criação dos filhos e o trabalho de casa. De acordo com Held (1993), para conseguir a libertação das opressões de gênero é preciso conceber novas dinâmicas de “afeto, auto-percepção e expressão cultural”34 (p. 180) nas quais os homens também assumam o cuidado dos outros como mais um aspecto da sua cotidianidade.

O empoderamento é definido, portanto, como a “capacidade para transformar e dar poder a si mesmo e aos outros”35 (Allen, 1998, p. 27), o que implica um grande impacto político (De la Fuente, 2015, p. 185) ao pretender incluir o maior número de mudanças sociais e culturais em relação aos papéis de gênero por meio do trabalho coletivo, do cuidado mútuo e das relações igualitárias entre homens e mulheres. De la Fuente (2015, p. 183) diferencia o poder como empoderamento do poder como cuidado, embora nos dois conceitos seja ressaltado o envolvimento de “novos atores, novas experiências e novos valores na esfera pública” como um projeto feminista no qual se reconhecem os poderes das mulheres desvalorizados pelas culturas misóginas.

O poder como cuidado corresponde a um relacionamento social que possibilita desenvolver atividades individuais de capacitação e participação política e, ao mesmo tempo, dá às outras pessoas a oportunidade de estabelecer laços afetivos e respeitosos para fazer parte ativa dos diversos processos e contextos sociais. No âmbito público, o poder como cuidado define estilos e atitudes de “orientação vinculados ao consenso, ao empoderamento e ao exercício da empatia” (De la Fuente, 2005, pp. 183, 184), porque o seu propósito principal é alcançar a justiça, a equidade e a organização social baseada no princípio da coletividade. Essa ideia de poder aponta para o uso das habilidades pessoais e grupais, tendo em conta as especificidades de raça e classe, para a realização de experiências comuns de bem-estar e não de um fim particular.

4. Poder como liberdade e cuidado

Por fim, o poder como liberdade36 é entendido como a criação de estratégias de intervenção em variados contextos da sociedade por grupos autônomos de mulheres, para consolidar espaços alternativos de atuação e desenvolvimento político e criativo, livres dos postulados machistas ou misóginos (De la Fuente, 2005, p. 186). No conceito de poder como cuidado existe uma referência direta à noção de poder dado por Hannah Arendt (2012), na qual o poder não pode ser entendido como um instrumento ou recurso, mas como uma capacidade humana para gerar a igualdade e a liberdade por meio da organização, dado que “o homem pode agir sobre o mundo comum e mudá-lo e construí-lo juntamente com os seus iguais, e somente com os seus iguais” (Arendt, 2012, p. 342), pois o poder é uma habilidade humana oposta à violência, à opressão e ao totalitarismo.

Com base nos conceitos de poder como cuidado e como liberdade, diferentes grupos feministas buscam a união e a solidariedade entre mulheres com o propósito de refazer a identidade feminina além dos conceitos patriarcais e encontrar formas de atuação que as libertem de estereótipos de gênero.37 Não obstante, a ideia de poder como liberdade e como cuidado de si e dos outros envolve algumas dificuldades práticas, pois não identifica explicitamente as estratégias políticas, econômicas ou culturais para a transformação de contextos sociais nos que ainda existe a subordinação, a violência e a desigualdade (De la Fuente, 2015, p. 187). O poder como cuidado e o poder como liberdade não sublinham a importância de produzir relações livres e equitativas entre homens e mulheres e de visibilizar as diferenças existentes dentro de noções de identidade e coletividade, que às vezes podem terminar sendo opressoras.38

Por fim, para a teoria feminista o conceito de poder é chave porque evidencia a lógica de dominação e porque possibilita uma reflexão acerca de outras formas de relacionamento que se bem não desmontam as relações interpessoais opressoras, ao menos as enfraquecem. Dado que o poder se apresenta de formas difusas, diluídas e subjacentes na sociedade e na cultura, é necessário tanto denunciar os mecanismos de poder como opressão comuns e aceitos como práticas quanto reconhecer e fortalecer os espaços de participação construídos pelas mulheres.

Todos os detalhamentos teóricos recuperados e apresentados nesta pesquisa assinalam as tênues fronteiras existentes entre as múltiplas formas de recurso ao poder, conceito que deve ser investigado com cautela para evitar a manutenção (e mesmo a intensificação) de dicotomias relacionadas às formas de atuação social garantidas ao masculino e ao feminino. A relevância do trabalho consiste em compreender tanto o poder como constructo quanto sua dinâmica para que, por meio da própria linguagem (que, de outra forma, tem o potencial de nomear e conter negativamente), sejam expostas e gradativamente desmanteladas as complexas relações verticalizadas que persistem em culturas herdeiras do patriarcalismo.

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Notas

1 Embora a metáfora de onda tenha sido criticada e vista como rígida, redutiva e inadequada para incluir a ampla variedade de discussões e ideologias feministas surgidas em diferentes momentos históricos, ela tem sido relevante como ferramenta simbólica para contrastar diversas posições geracionais e teóricas. Como sublinhado por Jo Reger (2017, p. 194), a metáfora de onda funciona como um “legado discursivo”, enquanto faz parte de uma linguagem identitária própria de um contexto e um tempo histórico específicos do ativismo feminista. Apesar das críticas, no contexto acadêmico a metáfora da onda continua sendo útil para caracterizar diferentes épocas, gerações e agendas feministas, ainda que, como todo intento de classificação ou enquadramento, seja imperfeita.

2 Num sentido feminista contemporâneo, entende-se o patriarcado como “uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”; inclusive, é possível entendê-lo como sinônimo de “dominação masculina ou de opressão das mulheres” (Delphy, 2009, p. 173). O patriarcado como sistema “oprime e explora as mulheres, não apenas na esfera privada como também na esfera pública” (Caldeira, 2016, p. 17). No entanto, não é possível ignorar o fato de que as mulheres não são só oprimidas pelo fato de serem mulheres, mas também por fatores de raça, classe social, religiosos e culturais.

3 Clearly, if one’s concern is with gendered subjectivity and its reproduction in relations which privilege male and subordinate female subjectivity.

4 Power is understood as a relation of domination in which an individual or group of individuals is systematically prevented from exercising their inherent, ontological capacity for freedom and transcendence.

5 Feminists attempted to broaden their focus to include the interlocking structures of race, class, gender, and sexuality based oppression and subordination.”

6 Experiences of power are particularly complex.”

7 Como exposto por Margaret McLaren (2016), entre as feministas não existe um consenso acerca da relevância e utilidade do trabalho de Michel Foucault para os seus interesses políticos. De um lado afirma-se que as teorias foucaultianas são opostas às ideologias fundamentais do feminismo e, do outro, elas são consideradas significativas e adequadas para o desenvolvimento de uma política de libertação e progresso das mulheres na sociedade. Amy Allen (2005) também aponta esse desacordo, mas afirma que, apesar da teoria de Foucault acerca do poder contribuir com o entendimento do conceito de dominação, ela em si mesma não tem o objetivo de criar uma teoria feminista acerca do poder, sendo necessário repensá-la tendo em conta os propósitos políticos do feminismo.

8 A partir de 1990, os postulados foucaultianos serão muito discutidos pelas teóricas feministas. No pós-estruturalismo, será Judith Butler quem retomará as ideias de Foucault acerca do poder e da sexualidade para analisar o problema da construção da subjetividade e da identidade de gênero.

9 Power is capacity, potential, ability, or wherewithal.”

10 Exercising power over within a social relation always produces a negative result for those subjected to it, because it narrows their field of action.

11 Early second-wave feminist theory and activism were fueled largely by a desire to reveal, critique, and overturn specific relations of power: namely, gender domination and subordination. Later on, largely in response to criticisms from women of color, feminists attempted to broaden their focus to include the interlocking structures of race, class, gender, and sexuality based oppression and subordination.”

12 “I will discuss have to be reconstructed out of debates on other topics-pornography, motherhood, marriage, sexual harassment, care, equality, and so on. This reconstructive project yields ideal-typical conceptions of power that have been implicit in various-and sometimes opposing-feminist theories.”

13 One of the goals of feminism would be to redistribute this resource in more equitable ways.”

14 When we look seriously at the distribution between husbands and wives of such critical social goods as work (paid and unpaid), power, prestige, self-esteem, opportunities for self-development, and both physical and economic security, we find socially constructed inequalities between them, right down the list.

15 Because, then, The Second Sex had suggested that maternity is merely biological, and as more attention was being given to ‘maternal practice’.

16 To be masculine is to be free, whereas to be feminine is to be subjected. In the domination-theoretical view, what it means to be a woman is to be powerless, and what it means to be a man is to be powerful.

17 Male power, as expressed in and through pornography, is discernible in discrete but interwoven, reinforcing strains: the power of self, physical power over and against others, the power of terror, the power of naming, the power of owning, the power of money, and the power of sex.

18 Male power, in degrading women, is first concerned with itself, its perpetuation, expansion, intensification, and elevation.”

19 The symbols of terror are commonplace and utterly familiar: the gun, the knife, the bomb, the fist, and so on.”

20 In the hands of men, money does not only buy; it brings with it qualities, achievements, honor, respect.

21 Money in the hands of a man signifies worth and accomplishment.”

22 It is, in fact, an expression of energy, strength, ambition, and assertion.”

23 All oppressed people share some inhibition of their ability to develop and exercise their capacities and express their needs, thoughts, and feelings.”

24 “‘Oppression’ designates the disadvantage and injustice.”

25 Women's oppression consists partly in a systematic and unreciprocated transfer of powers from women to men.

26 The members of some groups live with the knowledge that they must fear random, unprovoked attacks on their persons or property, which have no motive but to damage, humiliate, or destroy the person.

27 Male parasitism means that males must have access to women; it is the Patriarchal Imperative.”

28 A ideia sobre o poder como solidariedade será desenvolvida por Allen (1999) por meio da releitura dos conceitos propostos por Michel Foucault, Judith Butler e Hannah Arendt em The Power of Feminist Theory. O poder como solidariedade oferece uma visão sobre esse que permite identificar os laços que unem os membros dos grupos sociais para gerar uma resistência coletiva baseada na capacidade de união na procura de recursos de liberdade e autonomia.

29 Women’s power to transform themselves, others, and the world.”

30 My own working definition of power is the capaciy to produce a change.”

31 We can give sympathetic understanding to ourselves if we recognize the weight of the historic conditions which have made power such a difficult concept for most of us.”

32 If we have no property and are unable to acquire the means to live and to act and to feed our children.

33 There are some experiences, however, that are open to women and not open to men: menstruating, having an abortion, giving birth, suckling.

34 Liberation from gender oppression may involve factors that can only be understood at the level of internal affect, self-perception, and their cultural expression.”

35 It is the capacity to transform and empower oneself and others.

36 O conceito é ambíguo, pois envolve tanto o poder como requisito para a liberdade quanto o poder como possibilidade das mulheres de agir sem nenhum tipo de coação ou condicionamento nos diversos contextos sociais.

37 Entre 1960 e 1980, foram criados diversos coletivos feministas cujo objetivo principal foi a revalorização das mulheres e o seu empoderamento nos contextos de onde tinham sido excluídas. Alguns dos coletivos feministas mais reconhecidos são: National Organization for Women (1966), Women’s Equity Action League (1968), Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (1968), Women’s Action Alliance (1971), National Women’s Political Caucus (1971), Coalition of Labor Union Women (1974) e National Commission on the Observance of International Women’s Year (1975).

38 A partir de 1990 as ideias de poder como cuidado e liberdade, definidas no empoderamento, serão amplamente desenvolvidas além da categoria de identidade ou diferença sexual, em especial por Judith Butler, Nancy Fraser, Chandra Mohanty, Martha Nussbaum e Judith Squires.

Autor notes

* Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia, Tunja, Colombia; Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil.

Informação adicional

Para citar este artículo: Blanco Estupiñán, A. E. (2021). O poder na teoria feminista da segunda onda: visões complementares. Universitas Philosophica, 38(77). ISSN 0120-5323, ISSN en línea 2346-2426. doi: https://doi.org/10.11144/Javeriana.uph38-77.ptfv

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