ARTE DA GUERRA E ARTE DO ESTADO EM MAQUIAVEL

THE ART OF WAR AND THE ART OF THE STATE IN MACHIAVELLI

Helton Adverse

ARTE DA GUERRA E ARTE DO ESTADO EM MAQUIAVEL

Universitas Philosophica, vol. 39, núm. 79, 2022

Pontificia Universidad Javeriana

Helton Adverse

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil


Recepção: 19 Julho 2022

Aprovação: 27 Setembro 2022

Publicação: 16 Dezembro 2022

Resumo: Aceitando o pressuposto de que política e guerra são domínios afins em Maquiavel, nós pretendemos neste artigo examinar a especificidade da arte da guerra em cotejamento com a arte do Estado. Se as homologias entre os dois campos são evidentes, resta investigar os pontos em que eles se diferenciam de modo decisivo. Para tanto, será preciso fazer duas coisas: por um lado, destacar as principais componentes da arte da guerra como conjunto de práticas; por outro lado, demonstrar que ela somente pode alcançar seus objetivos se for capaz de produzir a união entre os integrantes do exército.

Palavras-chave:guerra, filosofia política, política, Maquiavel, Renascimento.

Abstract: Taking the assumption that politics and war are related domains in Machiavelli, in this paper we intend to examine the specificity of the art of war in comparison with the art of the State. If the homologies between the two fields are evident, it remains to investigate the points at which they differ decisively. To do so, two things will have to be done: on the one hand, to highlight the main components of the art of war as a set of practices; on the other hand, to demonstrate that it can only achieve its objectives if it is capable of producing unity among the members of the army.

Keywords: war, political philosophy, politics, Machiavelli, Renaissance.

1. Introdução

Diversas vezes foram observadas as interrelações entre a arte da guerra e a arte do Estado em Maquiavel1. A título de exemplo, em estudo recente, Catherine Zuckert (2017) afirmou que o texto maquiaveliano dedicado ao tema da guerra “constitui uma defesa das políticas que Maquiavel advogava tanto como um político prático quanto um teórico político” (Zuckert, 2017, p. 299)2. De nosso ponto de vista, essa interpretação é correta. Afinal de contas, guerra e política pertencem ao campo da ação. Porém, acreditamos que seria conveniente esclarecer o modo pelo qual essas artes se relacionam. Seria a arte da guerra uma continuidade da arte política, no sentido daquilo que séculos mais tarde Von Clausewitz viria a afirmar em célebre aforismo?3 Ou seria a arte da guerra uma variação ou uma subespécie da política? Ou, ao contrário, seria a política a continuação da guerra, como sugeriu Foucault em um de seus cursos no Collège de France (1997, p. 18), o que deixaria entender que a arte do Estado apenas poderia ser decifrada quando dominamos os princípios que presidem a arte militar? No texto que se segue, pretendemos desenvolver a hipótese de que a continuidade entre as duas artes pode ser considerada como uma complementariedade que, no entanto, é ambivalente. De um lado, a arte da guerra partilha com a política diversos elementos4, a ponto de existir entre elas uma profunda comunicação. De outro lado, a realização dos fins preconizados pela arte da guerra corresponde a uma ordenação muito diferente daquela da arte política. Isso significa que, malgrado sua incontestável afinidade, há entre esses campos uma diferença fundamental: enquanto a cidade é sempre dividida5, o exército deve sempre ser unificado. A divisão social, como é bem conhecido, está na origem das leis que asseguram a liberdade e é responsável pela vitalidade de um Estado6. No exército, contudo, ela está na origem dos fracassos nas campanhas militares: “tumultos e discórdias”, escreve Maquiavel, são a ruína de um exército (2006, p. 188; 1971b, p. 374). Como entender, então, a proximidade e a distância entre essas artes?

Vamos iniciar lembrando que a abertura do capítulo XIV de O príncipe afirma a imbricação entre a arte do Estado e a arte da guerra. Vale a pena retomá-la:

Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo, nem outro pensamento, nem tomar por sua arte outra coisa, a não ser a guerra e as suas ordens e disciplinas: porque essa é a única arte que se espera de quem comanda, e é de tamanha virtude que não somente mantém aqueles que nasceram príncipes, como faz muitas vezes os homens de fortuna privada ascenderem a esse posto. Em contrapartida, vê-se que os príncipes, quando pensaram mais nos luxos (delicatezze) do que nas armas, perderam o seu estado: e a primeira causa que te faz perdê-lo é negligenciar essa arte, e a causa que te faz adquiri-lo é ser mestre nessa arte (2017, pp. 178-179).

Nos parágrafos seguintes, Maquiavel enfatizará a importância dessa arte e deixará indicados os meios para adquiri-la, isto é, o estudo e a prática (com a mente e com as obras). Porém, não dirá, nem nesse trecho nem no restante do livro, nada de mais preciso acerca de sua natureza. Supõe-se, então, que A arte da guerra, obra certamente posterior à redação de O príncipe, seja o lugar em que as diretrizes dessa arte serão explicitadas. Sob esse ponto de vista, parece indiscutível a complementaridade entre os dois livros. Cabe examinar os modos pelos quais o livro sobre a guerra satisfaz à curiosidade do leitor que aguarda maiores esclarecimentos sobre a questão. Cabe indagar, ainda, se o livro satisfaz ao desejo do príncipe de comandar, isto é, se ele oferece ao homem de poder os instrumentos adequados para assegurar a conquista e conservação de seu Estado. Podemos adiantar, a respeito desse último ponto, que a resposta de Maquiavel parece, de alguma forma, frustrar os anseios do príncipe, na medida em que a arte da guerra, como veremos, redimensiona a virtù do capitão, atrelando-a à virtù do exército, como um corpo coletivo. Mais ainda, como afirma James Hankins (2019), com quem estamos plenamente de acordo a esse respeito, o livro de Maquiavel foca sobretudo os soldados, não os comandantes (p. 447). Nesse sentido, dominar a arte da guerra consiste menos em comandar do que em organizar os soldados7, e o capitão é menos o senhor absoluto de suas tropas do que o canalizador de suas energias. Não é tanto a ordem como comando, mas como ordenação que está no núcleo do ensinamento do capitão Fabrizio Colonna. Antes de esclarecermos estes pontos, convém examinar, mesmo superficialmente, o sentido do termo “arte” em Maquiavel.

2. Os sentidos da arte

O termo “arte” possui dois sentidos aos olhos de Maquiavel. Como diz Fabrizio Colonna, logo no primeiro livro de A arte da guerra, podemos entender por “arte” a profissão, o ofício que dá sustento aos chamados condottiere (entre os quais encontramos o próprio Fabrizio)8. Por outro lado, a arte da guerra consiste em um conjunto de “práticas” que deve ser colocado a serviço do Estado, seja República ou Principado (Maquiavel, 2006, pp. 11-16; Machiavelli, 1971b, pp. 305-307). A primeira acepção destaca o caráter privado da arte militar, o que a torna politicamente perniciosa. Maquiavel tem em mente aqui os soldados mercenários, objeto de condenação desde, pelo menos, o De militia de Leonardo Bruni. Estes colocam sua arte à venda, sem qualquer comprometimento político. Em uma palavra, eles não são dignos de confiança, mudando de lado, em um conflito, de acordo com a oferta. Mas este não é o único problema: a milícia mercenária é perniciosa por si só porque, ao contratá-la, o Estado abre mão de uma de suas mais importantes instituições. Como diz o texto de Maquiavel, a “boa ordenação” de uma cidade depende da prática militar, tanto em tempos de paz quanto de guerra (Maquiavel, 2006, p. 16; Machiavelli, 1971b, p. 307), o que abre caminho para a segunda acepção do termo, isto é, aquela que destaca sua dimensão pública e se deixa compreender por referência a essa “ordenação”. Não é de surpreender o fato de Maquiavel, por intermédio do Fabrizio Colonna, usar este último termo exaustivamente ao longo do livro. Está em jogo tanto disciplinar um exército tendo em vista sua melhor “ordenação” quanto introduzir na cidade a prática militar como uma instituição, o que proporciona duas coisas: de um lado, a proteção do Estado frente a seus inimigos; de outro, o estreitamento dos laços dos cidadãos entre si, e entre eles e a cidade. Em ambos os casos é evidente a predominância do interesse público. Toda essa argumentação está sintetizada na seguinte passagem:

Sobre isso digo que, sendo essa uma arte da qual os homens de qualquer tempo não podem viver honestamente, só pode ela ser usada como arte por uma república ou por um reino; e estes, quando bem ordenados, jamais consentiram que nenhum cidadão ou súdito seu fizesse da guerra arte; e nenhum homem bom jamais a exerceu como arte particular sua (Maquiavel, 2006, p. 11; Machiavelli, 1971b, p. 305).

Entretanto, precisamos saber em que consiste essa arte de modo mais específico. Por quais meios ela pode cumprir sua dupla função militar e política? Acreditamos que os livros que vão de ii a vi apresentam seus aspectos centrais. Mas não teremos a ocasião de desenvolvê-los plenamente neste texto. Por isso, será preciso reter seus principais elementos, o que faremos nas próximas seções.

Antes, porém, gostaríamos de adiantar uma hipótese de leitura que tentaremos demonstrar: como toda arte, em sentido clássico, a arte da guerra é produtiva. O que ela pretende produzir é um sujeito coletivo 9, isto é, um exército que seja capaz de agir em conjunto, cujas partes estejam articuladas como um corpo único. Esse objetivo (produzir a unidade) subordina as diretrizes técnicas da arte militar, mas simultaneamente as ultrapassa em direção a seu teor propriamente político. Parece claro que a produção desse sujeito não esgota o sentido dessa arte, uma vez que se trata de ganhar campanhas militares, vencer o inimigo, proteger a cidade, conquistar territórios, etc. Mas nenhum desses objetivos pode ser alcançado sem a formação de uma comunidade unificada por meio da disciplina. Outro aspecto do problema – mas não aprofundaremos este ponto, tratando-o de modo alusivo somente no final deste trabalho –, consiste no fato de que a arte da guerra permite a inovação, isto é, a capacidade de responder à necessidade com a criação de ordenações, o que abre mais uma via para vinculá-la à arte do Estado.

3. Uma arte do movimento, do espaço e do corpo

É imprescindível destacar as passagens do texto em que Maquiavel exalta o poder produtivo da arte, em especial, duas: “onde falha, a natureza é suprida pela indústria, que nesse caso vale mais do que a natureza” (Maquiavel, 2006, p. 22; Machiavelli, 1971b, p. 309). E ainda: “A natureza gera poucos homens valentes; a indústria e o exercício os fazem em grande quantidade. Na guerra, a disciplina pode mais do que o furor” (Maquiavel, 2006, p. 216; Machiavelli, 1971b, p. 385). Trata-se, portanto, de recusar a convicção de que a natureza humana decide o destino da cidade em favor de uma concepção que afirma a força da prática, do exercício ordenado segundo uma arte. Mas aqui é menos a ideia da infinita flexibilidade da natureza humana10 que está no primeiro plano, e mais o fato de que as ordenações, que são criações políticas, delineiam a existência da comunidade. Assim como a arte do Estado, a arte militar enfrenta o desafio de “dar forma” a uma matéria. A metáfora do escultor também está presente no livro. Não deve nos escapar, porém, que essa metáfora, como via de regra nos textos de Maquiavel, encontra sua limitação no fato de que a exterioridade entre o escultor e a matéria é suprimida em favor da relação que os une. Em termos militares, o comandante está integrado ao exército, seus destinos estão entrelaçados e, por isso, os soldados estão longe de constituir uma massa passiva, assim como o capitão não pode, em absoluto, ocupar o lugar daquele que detém um conhecimento completo e indefectível sobre os assuntos militares. Trata-se, efetivamente, de um empreendimento conjunto e, por essa razão, irredutível a um saber técnico capaz de eliminar o imprevisível e colocar em plano inferior a adesão individual. Aqui se descortina uma visão propriamente popular da atividade militar, tema ao qual voltaremos mais adiante. Mas o principal, pelo momento, é ter em mente que a arte militar está muito mais próxima de uma condução do que de uma fabricação. É nesse sentido que podemos entender Fabrizio Colonna quando afirma, no livro i, que “nunca usou a guerra como arte, porque a minha arte é governar meus súditos” (Maquiavel, 2006, p. 20; Machiavelli, 1971b, p. 309). No entanto, esse governo dos homens implica uma modificação em sua condição, fazendo-os passar de meros súditos a soldados que participam ativamente dos afazeres comuns.

Como, então, transformar homens em soldados? Como a arte (a indústria, como quer Maquiavel) poderá produzir o bom exército? Sob que condições é exercida essa arte de governar os soldados? Aparentemente, o primeiro passo é estar ciente de que a disciplina forja os espíritos. Maquiavel admoestava os Estados, no capítulo 21 do primeiro livro dos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, por não serem capazes de “fazer de seus homens militares”11, isto é, a responsabilidade se encontra do lado das ordenações e não da natureza. Cabe assumir a tarefa política de produzir os soldados.

A esse respeito, duas observações preliminares devem ser feitas: 1) não devemos esquecer que está em questão aqui a ordenação de um exército, isto é, de um corpo coletivo. Mantendo isso em mente, evitamos a possível contradição com as várias passagens de seu demais escritos em que Maquiavel apontava as limitações que as “inclinações naturais” impunham ao ator político12. O que é decisivo na fundação de um exército, assim como na fundação de uma cidade, são suas ordenações. 2) Ao insistir sobre a força da disciplina, Maquiavel se afasta dos autores clássicos. Se por um lado o poder formador da disciplina e da educação não era, em absoluto, desconhecido pelos antigos, por outro lado, eles jamais se mostraram plenamente capazes de se libertar de um certo naturalismo em seu entendimento das relações políticas. Desde Platão, ao menos, a boa organização da cidade requer a observância das diferentes naturezas de seus cidadãos. O imperativo do kata physin acena para uma visão naturalista da cidade na medida em que a ação política somente é compreendida por referência a determinadas inclinações naturais de cada cidadão, assim como a seu caráter e talentos próprios. E este modo de compreender a capacidade de ação também se faz presente nos tratados antigos sobre a arte militar. Basta lembrarmos de Vegécio, uma das principais fontes de Maquiavel (embora nunca citado textualmente), para que isso se confirme sem ambiguidades. Em sua explanação sobre os modos de recrutamentos dos soldados (o delectus), é imprescindível, para o escritor romano, levar em consideração o clima de sua região de origem. Os soldados deveriam provir dos países temperados porque são ao mesmo tempo corajosos e prudentes. Os homens das regiões quentes são prudentes, mas não são corajosos, ao passo que os das regiões frias são corajosos, mas não prudentes (Vegécio, 2011, pp. 179-181)13. Ora, Maquiavel, no livro i, rejeita abertamente esse modelo:

se quisermos uma regra que possa ser usada para todos, convém dizer que cada república e cada reino deve escolher os soldados de suas terras, sejam elas quentes, frias ou temperadas. Porque dos antigos exemplos se vê que em qualquer lugar, com exercício, fazem-se bons soldados (Maquiavel, 2006, p. 22; Machiavelli, 1971b, p. 309)14.

A sequência imediata dessa passagem já citamos mais acima, isto é, a afirmação de que onde a natureza falha a indústria vem em auxílio. O primeiro tópico examinado por Fabrizio e seu interlocutor Cosimo concerne aos procedimentos para o recrutamento e a regra que o condottiere anuncia, em ruptura com os antigos, indica a diretriz que preside sua concepção de arte: ela se apoia sobretudo sobre a força da disciplina e das ordenações. O que é decisivo na formação de um exército é sua organização, o arranjo de seus integrantes tendo em vista a utilidade comum, muito mais do que as qualidades individuais de um soldado. É verdade que em determinadas passagens, Maquiavel alude ao caráter dos soldados, afirmando, por exemplo, que a natureza “tímida e ordeira” é menos fraca do que a “orgulhosa e desordenada” (livro II). Ou ainda, quando se serve da metáfora do escultor, não deixa de notar a superioridade da matéria não corrompida sobre aquela corrompida, isto é, como vemos no livro VII, é melhor formar um exército novo a partir de um povo rústico do que a partir de um já formado e com hábitos consolidados (o que se revela na preferência de Maquiavel pelo recrutamento dos camponeses). Este último argumento, aliás, ecoa aquele presente no capítulo 15 do livro I dos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Mas cabe observar que a referência é sempre negativa15. É sobretudo a ausência de corrupção – a matéria ainda não trabalhada – que facilita o trabalho daquele que vai disciplinar os soldados, muito menos do que uma qualidade intrínseca aos homens. Voltemos, então, a essa arte de disciplinar e vejamos como ela atua sobre os homens. Cabe destacar, de início, que está em questão ordenar o movimento e bem dispor o espaço.

Temos disso uma clara imagem no elogio que Maquiavel faz da divisão do exército romano (mais precisamente, da infantaria pesada) em três partes: hastados, príncipes e triários. Esta divisão, convém observar, era característica da época da República, tendo caído em desuso durante o Império. Vegécio (2011) também a considerava a formação ideal para a batalha, apresentando-a de modo detalhado ao longo de seu livro16. O que parece interessar a Maquiavel é a capacidade dessa divisão articular as principais partes do grupo de combatentes, que opera como um corpo único em um movimento constante e coordenado. Vejamos como ele descreve, no começo do terceiro livro, a formação de linha de combate que essa divisão possibilita:

A maior desordem que cometem os que ordenam um exército para a batalha é dispô-lo em uma só frente, obrigando-o a um só assalto e uma só forma. Isso porque foi esquecido o modo como os antigos integravam uma linha na outra; pois, sem isso, os da primeira fila não podem ser socorridos, defendidos nem substituídos durante a peleja; coisa que os romanos observavam muito bem. Portanto, para mostrar como isso se fazia, digo que os romanos tripartiam cada legião em hastados, príncipes e triários; destes, os hastados eram postos na frente do exército, numa ordenação compacta e fechada; atrás deles estavam os príncipes, numa ordenação menos cerrada; depois destes vinham os triários, cuja ordenação era a mais rarefeita possível para que, em caso de necessidade, pudessem melhor acolher os príncipes e os hastados (Maquiavel, 2006, p. 86; Machiavelli, 1971b, pp. 334-335).

Antes de entrarem em ação, explica Maquiavel, os soldados dessas três linhas eram precedidos pelos soldados com armas leves, que faziam o primeiro assalto. Como acostumava acontecer, uma vez repelido este primeiro ataque, as linhas continuavam o combate. Elas apenas poderiam ter sucesso se estivessem perfeitamente coordenadas: caso os hastados fossem superados, “iam-se retirando aos poucos para o espaço existente na ordem dos príncipes e, em conjunto com estes, retomavam a refrega”. Mas se mesmo assim fossem vencidos, “retiravam-se todos para os espaços existentes nas ordens dos triários e, todos juntos, apinhavam-se e recomeçavam a luta” (Maquiavel, 2006, p. 86; Machiavelli, 1971b, pp. 334-335; grifo nosso). As linhas combatiam como um corpo único, o que é confirmado pela metáfora escolhida por Maquiavel : “apinhar-se”17.

O movimento das linhas, como podemos ver, é bem coordenado. Trata-se de um corpo coletivo disciplinado que somente pode operar dessa maneira se cada uma de suas partes for ela própria bem disciplinada. Para esse efeito, é imprescindível o treinamento constante sob a forma de exercícios bem conduzidos e organizados. Maquiavel havia apresentado no livro II de A arte da guerra o rol desses exercícios, que visam preparar o corpo para a luta, mas que devem ocupar os cidadãos tanto nos tempos de guerra quanto nos tempos de paz. Vejamos esta passagem emblemática:

Assim, todas as antigas repúblicas cuidaram que, por costume e por lei, não se deixasse de lado nenhuma parte desses exercícios. Exercitavam, portanto, sua juventude para ser veloz correndo, para ser destra saltando, para ser forte atirando contra estacas ou lutando corpo a corpo. E essas três qualidades são como que obrigatórias num soldado, porque a velocidade o torna apto a ocupar os lugares antes do inimigo, a aproximar-se dele inesperada e imprevisivelmente, a segui-lo quando em debandada. A destreza torna-o apto a esquivar o golpe, a pular um fosso, a transpor um talude. A força torna-o melhor no uso da armadura, no embate com o inimigo, na resistência a um ataque. E, sobretudo, para tornar o corpo mais afeito ao desconforto, acostumando-o a carregar grandes pesos (Maquiavel, 2006, p. 55; Machiavelli, 1971b, pp. 322-323).

Também Vegécio (2011) havia chamado a atenção para a importância dos exercícios, chegando a ponto de forçar uma etimologia segundo a qual a palavra “exército” derivaria de “exercício” 18. Como quer que seja, para ambos os autores, não é somente a resistência e a habilidade de um corpo individual que está aqui em questão. Trata-se ainda da necessidade de integração do corpo individual ao corpo coletivo, ou seja, a disciplina visa a melhor inserção do indivíduo no conjunto. Por isso, torna-se muito relevante o cálculo do espaço que cada corpo ocupa, levando-se em consideração não somente as dimensões de um homem mediano, mas também o tamanho de suas armas e a distância requerida para bem utilizá-las. O espaço deve ser bem esquadrinhado, o que não é possível sem a rigorosa especificação das partes constituintes de um exército; no caso dos antigos romanos, a legião, suas coortes e centúrias; no caso dos contemporâneos de Maquiavel, os battaglioni e suas battaglie (Maquiavel, 2006, p. 60; Machiavelli, 1971b, p. 324).

Certamente, o problema do espaço é igualmente levado em conta quando importa definir o terreno em que a batalha será travada, assim como o local onde será armado o acampamento do exército em campanha. Sobretudo neste último caso, será fundamental a disposição dos alojamentos, a distribuição do contingente, o planejamento das “ruas” e da “praça”. O controle do espaço deve ser assegurado de modo a proteger o exército dos assaltos do inimigo, assim como deixá-lo o mais pronto possível para desferir um ataque sem preparo prévio. Maquiavel (2006; 1971b) consagra o livro vi e parte do livro vii a esse conjunto de problemas. Mas, nesse contexto, não é o corpo do soldado que requer atenção e sim a integridade da “cidade móvel” ou ainda da “cidade murada”, quer dizer, as fortalezas. Voltaremos a esse ponto. Pelo momento, é preciso enfatizar o fato de que a unidade do exército depende da disciplina aplicada sobre o corpo. Mas será isso suficiente? A resposta de Maquiavel é negativa. A disciplina não concerne somente ao corpo de um indivíduo: ela é também uma ordenação do corpo coletivo. E, em última instância, é esta boa ordenação que será decisiva e irá se sobrepor à virtude individual. Para Maquiavel, um exército não é corajoso (animoso) porque nele existem homens corajosos, mas porque suas “ordens são bem ordenadas”. Por exemplo: “se eu estiver nas primeiras fileiras e souber, ao ser sobrepujado, para onde devo retirar-me e quem me substituirá, sempre combaterei com ânimo, vendo que o socorro está próximo” (Maquiavel, 2006, p. 63; Machiavelli, 1971b, p. 326). O melhor exército é aquele que coordena da melhor maneira possível a ação do todo e de suas partes. A qualidade de cada soldado, portanto, depende da qualidade da coletividade a que pertence. Por isso, faz parte da arte militar a comunicação, que se faz tanto pelos signos sonoros quanto visuais. Dizendo de outro modo, o treinamento de um soldado requer também uma educação do olhar e do ouvir.

4. Uma arte dos signos

Emblemas e sons, gestos e toques sonoros, cumprem uma função essencial no campo de batalha, como será visto em seguida. Além disso, o elemento religioso está forçosamente presente na promocão do espírito de unidade e na disposição à obediência e, por isso, também será objeto de atenção nesta seção.

4.1 Ver e ouvir

Ainda no livro ii, Maquiavel afirma o seguinte:

seguindo nesse assunto do exercício, digo que para fazer bons exércitos não basta enrijar os homens, torná-los valentes, velozes e destros; é preciso também que aprendam a estar nas ordens, a obedecer aos sinais, aos toques e às vozes do capitão, bem como mantê-las em formação quando parados, em retirada, avançando, combatendo e em marcha; porque sem essa disciplina, observada e praticada com diligência e precisão, nunca exército nenhum foi bom (Maquiavel, 2006, p. 59; Machiavelli, 1971b, p. 324).

Como já havia sido notado pelos escritores antigos, incluído, certamente, Vegécio (2011)19, uma “arte” dos sinais sonoros e visuais é parte da arte militar. Clarinetas, trompas e outros instrumentos orientam os soldados durante uma batalha, fazendo as vezes dos comandos verbais que não são audíveis no calor da refrega, além de terem um alcance muito maior. Os sinais também são úteis para alertar ou para desencadear um ataque. Além disso, eles escandem o tempo durante uma marcha, permitindo a imposição de um ritmo. Emblemas, bandeiras, ornamentos também cumprem uma função comunicativa crucial, sobretudo quando combinados com os sons. Maquiavel chega a afirmar que os antigos utilizavam o estandarte como guia para se reordenarem, uma vez que, ele estando parado, “todos sabiam o lugar que lhe cabia junto a seu estandarte e a ele sempre retornavam. Sabiam ainda como parar ou movimentar-se segundo ele parasse ou movimentasse” (Maquiavel, 2006, p. 77; Machiavelli, 1971b, p. 331). E o movimento do estandarte estava de acordo com o som, o qual, “bem ordenado, comanda o exército; e este, marchando com passos que correspondam aos tempos daquele, consegue conservar facilmente as ordenações” (Maquiavel, 2006, p. 77; Machiavelli, 1971b, p. 331).

Porém, há outra modalidade da arte dos sons que Maquiavel coloca em primeiro plano: trata-se da oratória do capitão, fundamental para a infusão de ânimo e coragem nos soldados e que revela a profundidade dos laços que envolvem comandante e comandados. A introdução desse tema revela também que a disciplina, para além do exercício dos corpos, se ocupa da alma. A disposição moral dos soldados é elemento não negligenciável da arte de comandar, e muitos exércitos bem armados encontraram a derrota por causa da quebra do espírito de seus combatentes. A passagem mais importante a esse respeito se encontra no final do livro iv:

serão infinitas as possibilidades de ruína do exército, se o capitão não souber falar-lhe ou não tiver esse hábito; porque sua fala dissipa o temor, inflama os ânimos, aumenta o aguerrimento, revela as fraudes, promete prêmios, mostra o perigo e os meios de evitá-los, repreende, roga, ameaça, enche de esperança, louva, vitupera e faz todas aquelas coisas por meio das quais as paixões humanas se extinguem ou se acendem (Maquiavel, 2006, p. 136; Machiavelli, 1971b, p. 354).

Característica dessa oratória é a natureza emulativa. Como observou Catherine Zuckert (2017), o capitão “não fala a seus homens para explicar sua estratégia; pelo contrário, ele deve manter seus planos e sentimentos em segredo” (p. 322)20. Esse discurso nada tem de técnico (no sentido da exposição de um conhecimento) e não pressupõe a necessidade de transparência nas relações entre comandante e comandado. Ele indica, antes, que o capitão e os soldados estão envolvidos em um empreendimento comum cuja finalidade (esta sim) deve estar claramente estabelecida. Por outro lado, nada nos obriga a concluir que o comandante tem pleno controle sobre seus soldados, o que faria de sua oratória uma forma privilegiada de manipulação. Veremos mais adiante as limitações desse tipo de interpretação. Apenas desejamos, mais uma vez, ressaltar que está em jogo assegurar a unidade do exército por meio da mobilização das paixões e dos desejos. Como este é o objetivo maior da oratória, não deve causar surpresa que, na sequência da passagem que acabamos de citar, Maquiavel introduza o tema da religião.

4.2 A religião

Os leitores dos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (Machiavelli, 1971c) estão familiarizados com a convicção do florentino de que a religião é imprescindível na política, como ele expõe nos capítulos 11-15 do livro i. O “temor aos deuses” é um instrumento eficaz para domar a “ferocidade” dos homens e manter os cidadãos obedientes à autoridade política, sobretudo na medida em que reforça o sentimento de adesão às leis. Afinal de contas, o “comércio” com o divino é requisito indispensável para que o legislador adquira aos olhos dos cidadãos a áurea mística que deve infundir nas leis que profere um princípio de validade transcendente. E cabe lembrar ainda que o juramento, palavra empenhada diante dos deuses, opera como um poderoso meio de controle da variabilidade da vontade humana (Machiavelli, 1971c, pp. 93-99). Inúmeros estudos já foram realizados sobre esse tema21. Para nós o importante é explicitar a maneira como Maquiavel retoma o assunto em A arte da guerra. A razão para fazê-lo já nos é conhecida: importa sobretudo manter a unidade do corpo militar e a disposição para o combate.

Como dissemos, é no final do livro iv que Maquiavel evoca o tema da religião. Trata-se de utilizá-la, primeiramente, para assegurar a obediência e motivar os combatentes. Para alcançar este fim, o capitão deve agir à semelhança do legislador, servindo-se dos presságios e dos augúrios, pouco importando se são interpretados conforme o que ordena o ritual ou se são forjados pelo comandante (Maquiavel, 2006, p. 136; Machiavelli, 1971b, p. 354). A história romana demonstra que várias vezes a interpretação dos sinais tem um papel crucial no desenrolar de uma campanha e, por isso mesmo, deve estar sob controle. A proliferação dos signos religiosos, vaticinando a vitória ou a derrota, é também um inimigo a ser combatido.

No livro VI, ele volta ao tema, desta vez associando a religião à necessidade de punir os desobedientes22. Em ambas as passagens, o problema da religião está inserido no quadro amplo de uma arte dos signos, a qual consiste, como vimos, em dominar os sinais sonoros e visuais, para facilitar a organização dos exércitos, especialmente, durante a campanha militar. Mas as estratégias visuais e sonoras da arte da guerra também fazem parte da prática do “engano”, recorrentemente evocada por Maquiavel em todas as suas obras. Simular, dissimular, fazer ver, impedir que se veja, silenciar o que se pensa e dizer o que não se pensa, todos esses subterfúgios são encontrados tanto no domínio militar quanto no “civil”. A realidade da guerra impõe o uso recorrente dessa arte do engano, pois, via de regra, ela sempre tem por objetivo o aumento das forças próprias e o enfraquecimento do inimigo.

Para voltarmos ao tema da religião, seu uso pelo comandante visa a obediência, certamente, mas também evitar a dispersão dos comandados. Não causa surpresa Maquiavel novamente se referir a isso quando, no livro VI, escrever, como já foi referido por nós, que “tumultos e discórdias são a ruína do exército”. Logo em seguida, ele coloca estas palavras na boca de Fabrizio: “Os antigos capitães tinham de enfrentar um incômodo de que os atuais estão quase livres, que era o de interpretar a seu favor os maus augúrios” (Maquiavel, 2006, p. 188; Machiavelli, 1971b, p. 374). Colocamos em destaque o “quase” porque Maquiavel, na verdade, não descarta essa possibilidade, mesmo em uma civilização dominada pelo cristianismo. Afinal de contas, acontecimentos extraordinários (como um raio que atinge a torre da igreja pouco antes da morte de Lorenzo, o Magnífico23) continuam a despertar a fantasia dos seres humanos, sobretudo quando encontram-se diante da eventualidade da morte.

Talvez pudéssemos dizer que, mais do que a religião, é o espírito religioso e tudo aquilo que ele carrega de superstição que ocupa um lugar central na vida militar. É sua capacidade de paralisar e de mobilizar que explica o cuidado que se deve ter com os signos ocasionais cuja interpretação pode colocar tudo a perder ou contribuir para a vitória.

5. O sujeito coletivo e a virtù do capitão

Apesar de colocar o foco sobre a formação dos soldados, a análise da virtù do capitão encontra igualmente lugar no tratado de Maquiavel. A ela não é reservado grande espaço, mas algumas passagens do livros finais (VI e VII) não podem ser negligenciadas. De nossa parte, acreditamos que o problema se enquadra da seguinte maneira: o domínio das estratégias que objetivam produzir a unidade do exército parece ter como contrapartida a qualidade excepcional do comandante. Ao menos, é o que Maquiavel deixa entender quando escreve o seguinte: “Mas o que mais mantém o exército unido é a reputação do capitão; e esta só nasce de sua própria virtù, porque a boa reputação nunca foi dada pelo sangue nem pela autoridade sem a virtù” (Maquiavel, 2006, p. 188; Machiavelli, 1971b, p. 374). A interpretação dessa passagem é decisiva. À primeira vista, ela acena para o sentido técnico da arte, bastando ao capitão colocar em prática esses ensinamentos para produzir os efeitos desejados. Mas quando a examinamos com maior atenção, vemos que a reputação pouco tem a ver com um conhecimento determinado, e muito com as ações realizadas em conjunto. “Mas, entre todas as coisas com as quais os capitães conquistam os povos, estão os exemplos de castidade e justiça” (Maquiavel, 2006, p. 192; Machiavelli, 1971b, p. 376), vai dizer o florentino logo adiante. Não é a primeira vez que Maquiavel evoca a força formativa dos exemplos. No caso específico da arte da guerra, tudo se passa como se a unidade do corpo militar dependesse da capacidade do comandante despertar o sentimento de respeito, o que, aliás, já havia sido evocado a propósito da religião. Isso não significa, em absoluto, que o capitão seja o elemento mais importante do exército. Trata-se apenas de reconhecer que a unidade não pode ser obtida sem a referência à figura do líder militar. Portanto, não devemos concluir que ao conferir, em certas passagens, destaque à figura do capitão Maquiavel tenha desqualificado o sujeito coletivo. Pelo contrário, seu objetivo é aprofundar o conhecimento de como ele se forma. Isso posto, podemos fazer algumas inferências.

A primeira delas é a de que a guerra consiste em um empreendimento coletivo e sem a organização das forças o objetivo da arte militar jamais é atingido. Não parece errôneo supor que essa seja uma das lições que Maquiavel quer extrair dos antigos. A isso se prende sua concepção “republicana” da milícia. Diferentemente do que víamos em seus antecessores humanistas, como o já citado Leonardo Bruni, a crítica aos soldados mercenários não era motivada somente pela fraca confiabilidade ou pelo temor que eles inspiravam, mas pela necessidade de demonstrar que a guerra concerne a toda a cidade, sendo uma parte ineliminável da vida livre. A inter-relação entre guerra e política – a que fazíamos referência no começo deste texto – é constitutiva. O cidadão e o soldado se sobrepõem24. Há uma clara ruptura, no que concerne a este ponto, com a concepção humanista da atividade militar e da guerra, porque esta colocava todo o peso nas qualidades intelectuais e morais do comandante. Para Maquiavel, ao contrário, o exército romano realizou grandes feitos exatamente por causa da virtude dos soldados romanos25.

Entretanto há algo mais a ser dito a respeito dessa comunicação entre vida cívica e vida militar, e esta é a segunda inferência. Como já assinalamos, é igualmente importante salientar a limitação dessa implicação mútua. O que explica a presença dessa fronteira é o fato da dinâmica política ser marcada pela divisão social, que não deve ter lugar na vida militar26. Em ambos os casos, temos uma canalização da energia social, mas segundo caminhos diferentes. Poderíamos, talvez, colocar essas diferenças nos seguintes termos: a liberdade interna e a lei dependem da divisão, enquanto a potência (liberdade externa) é assegurada somente pela unidade. Em um e outro caso, a presença do povo é imprescindível. Na dinâmica da vida civil, a presença do povo na cena pública, agente dos tumultos, impede sua degradação. Na dinâmica da guerra, é o povo que fornece os soldados para o exército, constituindo, graças à sua boa ordenação, a força militar de uma república. Deve estar claro que uma coisa não vai sem a outra para Maquiavel, e isso corresponde, em sua totalidade, ao papel político-militar do povo em seu pensamento.

Por fim, há ainda outro aspecto concernente à virtù do capitão que temos de abordar: a “inventidade”. Para esclarecer este ponto, convém lembrar uma declaração de Fabrizio Colonna que encontramos no final do livro:

Talvez ainda desejásseis saber o que compete a um capitão? Nisso vos satisfarei com brevidade, porque não saberia eleger outro homem senão aquele que soubesse fazer todas as coisas sobre as quais hoje conversamos; o que ainda não bastaria, se não soubesse descobrir coisas por si mesmo, visto que sem invenção ninguém jamais foi grande homem em seu ofício; e, se a invenção é motivo de honra nas outras coisas, nesta é mais do que em qualquer outra (Maquiavel, 2006, p. 219; Machiavelli, 1971b, p. 386).

O tema da “invenção”, como é bem conhecido, remonta aos manuais de retórica. Se voltarmos ao De inventione, de Cícero (s.d.), veremos que a inventio, parte inicial da composição de um discurso, não significa a capacidade de criar, mas de encontrar argumentos (por meio de palavras ou imagens) para persuadir acerca de determinado ponto de vista. Entretanto, Maquiavel atribui ao termo um sentido distinto, como averiguamos pelos exemplo fornecido, aquele de Alexandre Magno que, “para levantar acampamento com mais sigilo, não dava sinal com trombeta, mas com um chapéu sobre uma lança” (Maquiavel, 2006, p. 219; Machiavelli, 1971b, p. 386). A novidade aqui consiste na capacidade de simultaneamente referir-se àquilo que já se encontra estabelecido pelo cânon que preside uma arte e ultrapassá-lo tendo em vista a particularidade das circunstâncias. O reconhecimento dessa criatividade, obviamente, não é, por si só, algo novo. Mas parece que ele desempenha papel central no livro sobre a arte da guerra, uma vez que importa se apropriar dos antigos sem subserviência, o que também é expresso com o termo “imitação”. Acreditamos que a evocação das artes, nas últimas linhas do livro – “esta província parece ter nascido para ressuscitar as coisas mortas, como se viu em poesia, pintura e escultura” (Maquiavel, 2006, p. 225; Machiavelli, 1971b, p. 389) –, deve ser compreendida na mesma chave de leitura. E é pertinente ressaltar que o apelo à inventividade, seja na guerra seja na política27, não obedece a um imperativo estético, mas à necessidade. É esta que, de um só golpe, nos faz recorrer ao passado (tornando valioso o legado dos antigos) e exige a abertura para o novo. Assim, aparecem perfiladas as figuras do capitão e do príncipe: no cerne da ação que empreendem está a inovação. Por esse motivo, é natural Maquiavel afirmar, também nessas últimas páginas do livro, que os capitães mais louvados não são aqueles que somente derrotaram o inimigo, mas que precisaram, antes de ter com ele, “constituir um exército bom e bem-ordenado” (Maquiavel, 2006, p. 220; Machiavelli, 1971b, p. 387). E aqui, nos parece, o círculo se fecha. Pois em que consiste um exército bom e bem-ordenado senão aquele no qual a virtù está disseminada entre os soldados? A virtù do capitão dá mostras de seu valor na medida em que é capaz de infundir-se sobre os comandados, ou seja, na medida em que é capaz de ultrapassar a particularidade, configurando-se como uma qualidade coletiva. Se isto acontece, então se completa o processo de produção do sujeito coletivo, quer dizer, virtù e disciplina concorrem mutuamente na formação de uma comunidade militar.

6. Considerações finais

Ao longo deste texto, buscamos mostrar como a arte da guerra está próxima e ao mesmo tempo se afasta da arte política. O caminho que seguimos consistiu em expor alguns dos traços mais salientes da primeira, pois tomamos como referência o texto de A arte da guerra. Não nos pareceu necessário, assim, esboçar qualquer síntese da arte do Estado, se é que isso é possível. Com esse “cotejamento”, esperamos ter ao menos indicado certas continuidades entre guerra e política. Ao mesmo tempo, quisemos mostrar que entre os dois campos e as duas artes há uma diferença que não pode ser negligenciada: a arte da guerra tem sempre em vista a união dos soldados, a formação de um corpo coletivo disciplinado, sem o quê não é possível que ela alcance seus fins imediatos. Este lugar central da união contrasta com aquele da divisão social característica da política. Levando isso em conta, é possível entender por que a arte da guerra é suscetível a uma formalização estranha à arte política. Não apenas por causa de sua dimensão “técnica” (recrutamento, armamentos, acampamentos, organização do exército), mas também por causa da uniformidade que visa. O exército não deve admitir “tumultos” em seu interior, como vimos. Em contrapartida, a vida política, porque nela afloram os conflitos, é mais fortemente marcada pela instabilidade e imprevisibilidade do que a vida militar. Nesse sentido, a metáfora do escultor (utilizada por Maquiavel tanto para a política quanto para a guerra) parece expressar, com maior perfeição, a natureza da arte militar. Porém, quisemos mostrar em nosso texto que essa afinidade é duvidosa. O capitão está longe de ter sobre seus comandados o mesmo controle que o escultor terá sobre a pedra a ser talhada. A indeterminação também se faz fortemente sentir na arte militar, e não apenas pela razão evidente de que o desfecho de uma batalha é imprevisível, mas ainda porque é simplesmente impossível assegurar-se definitivamente do espírito dos homens. Além disso, a produção daquilo que denominamos (com Winter, 2014) de “sujeito coletivo” não está isenta de riscos e ambivalências. Fabrizio alerta, já no livro I, que até mesmo a união pode ser perniciosa, quando o exército se transforma em facção (Maquiavel, 2006, p. 38; Machiavelli, 1971b, p. 316), isto é, quando sua identificação com seu líder é demasiadamente forte. Neste caso, o interesse comum desaparece. A unidade do exército, portanto, não é por si mesma objeto de louvor, pois o exército pode estar a serviço das inclinações autoritárias, como mostra a história romana, em especial, durante o período do Império. A condição para que ele cumpra seu papel cívico é jamais se constituir como uma nova universalidade, jamais se sobrepor à cidade. Da mesma forma, portanto, que ao elogiar os conflitos Maquiavel não perde de vista o perigo das facções, sua apreciação das ordenações militares (e da união que lhe corresponde) sempre obedece ao imperativo do bem comum.

Referências

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Notas

1 O termo “arte do Estado”, até onde pudemos averiguar, aparece somente na correspondência de Maquiavel, especificamente, na conhecida carta a Vettori de 10 de dezembro de 1513 (“si vedrebbe che quindici anni che io sono stato a studi all’arte dello statoMachiavelli, 1971a, p. 1160). Na ausência de uma definição clara desse termo, vamos entendê-lo como o conhecimento necessário para a ação política concernente à conquista e conservação do poder, justamente aquele que Maquiavel acredita poder transmitir a seus interlocutores. É assumindo o caráter vago do termo, mas também sua pertinência, que Giorgio Inglese (2006) o utiliza como subtítulo de um de seus livros sobre Maquiavel, Per Machiavelli. L’arte dello stato, la cognizione delle storie.

2 the dialogue constitutes a defense of the policies Machiavelli advocated both as a practical politician and as a political theorist.

3 “A guerra é meramente a continuação da política por outros meios” (Von Clausewitz, 2010, p. 91).

4 O mais facilmente perceptível é o elemento do conflito. Mas, ao longo deste texto, veremos surgirem outros, como a necessidade do cuidado com a imagem e o problema do interesse coletivo.

5 “Porque em todas as cidades se encontram esses dois humores distintos: e disto nasce que o povo deseja não ser comandado nem oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar e oprimir o povo” (Maquiavel, 2017, pp. 146-147). O mesmo pressuposto da divisão política fundamental é reafirmado nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, i, 4 e nas Istorie fiorentine, iii, introdução. Mas ele se encontra presente, de modo geral, em boa parte dos escritos maquiavelianos.

6 A obra de Claude Lefort (1972) é seminal no campo dos estudos sobre o papel do conflito em Maquiavel. Dentre os vários trabalhos dedicados a esse tema, vale destacar os recentes livros de José Luiz Ames (2017) e de Sérgio Cardoso (2022).

7 Yves Winter (2014) faz indicações nessa mesma direção: “A ênfase nos detalhes aparentemente esotéricos da organização militar indica que, se a arte da guerra é ‘a única arte que interessa àquele que comanda’, então nao é porque a guerra ensina um príncipe a comandar, mas por outras razões” [“The emphasis on the seemingly esoteric details of military organization indicates that if the art of war is ‘the only art of concern to one who commands’, then it is not because war teaches a prince how to command but for other reasons”] (p. 170). O que desejamos fazer na sequência deste texto consiste em elucidar essas “outras razões”.

8 Vale lembrar que a palavra “arte” designava também os ofícios que integravam as corporações em que a cidade de Florença era dividida.

9 Tomamos de empréstimo essa expressão de Yves Winter (2014, p. 174)

10 Ideia central para a interpretação de autores como Leo Strauss (1958) e Ernst Cassirer (1976), que endossam a compreensão de que a política, como arte, é essencialmente técnica em Maquiavel.

11 “E é mais verdadeiro do que qualquer outra verdade que, se onde há homens não há soldados, isso resulta de uma deficiência do príncipe, e não de uma deficiência do lugar ou da natureza” [“Ed è più vero che alcuna altra verità, che, se dove è uomini non è soldati, nasce per difetto del principe, e non per altro difetto o di sito o di natura”] (Machiavelli, 1971c, p. 105).

12 Como vemos, por exemplo, no capítulo xxv de O príncipe, nos Ghiribizzi a Soderini ou ainda no capítulo 8 do livro iii dos Discorsi.

13 Vale lembrar que Vegécio enfatiza, como fará Maquiavel, a força da disciplina e dos exercícios: “Na verdade, em todo o tipo de combate, não é tanto a multidão e a coragem sem instrução que costumam dar a vitória, mas a arte e o treino”, afirma logo no preâmbulo de seu tratado (pp. 172-173). Porém, ele jamais abre mão de recorrer à natureza “corpórea e espiritual” dos homens como critério de seleção dos soldados (ver também Livro ii, cap. 5). O cotejamento com Vegécio é imprescindível para melhor entender Maquiavel e, por isso, teremos de novamente fazê-lo mais adiante.

14 Esse mesmo pressuposto (o da superioridade da arte sobre a natureza) retorna no livro vi a propósito da escolha do lugar em que o acampamento deve ser levantado. Contrariamente aos antigos gregos, que preferiam um local cuja natureza fosse vantajosa, Fabrizio endossa a prática dos romanos, que escolhiam um local que favorecesse suas ordenações. Os gregos terminavam por se adaptar ao local, enquanto os romanos faziam exatamente o contrário: “os alojamentos dos romanos eram seguros não tanto mercê do lugar quanto da arte deles; tampouco se alojariam os romanos em lugares onde não pudesse espalhar todos os seus homens, segundo sua disciplina. Os romanos podiam então manter sempre uma mesma forma de alojamento porque o local se adaptava a eles, e não eles ao local. Coisa que os gregos não podiam observar, porque se adaptavam ao local; e visto que os locais variam de forma, era preciso que eles variassem o modo de alojar-se e a forma de seus alojamentos. Os romanos, portanto, quando o lugar carecia de segurança, supriam essa carência com arte e indústria” (Maquiavel, 2006, p. 162; Machiavelli, 1971b, p. 364).

15 A esse respeito, são de grande pertinência as observações de Timothy J. Lukes (2004), que seguem no mesmo sentido. Comparando Maquiavel com Vegécio, ele afirma: “Maquiavel e Vegécio podem ambos promover o povo do campo como o melhor para a infantaria, mas enquanto Vegécio se concentra nas atitudes físicas e, portanto, principalmente marciais, Maquiavel estende seu escrutínio a traços de caráter mais versáteis, como falta de astúcia e malícia” [“Machiavelli and Vegetius may both promote the country folk as best for the infantry, but where Vegetius focuses on physical, and thus primarily martial atitudes, Machiavelli extends his scrutiny to more versatile character traits, such as lack of cunning and malice.”] (p. 1101).

16 A formação é descrita em i, 20; ii, 15 e iii, 14.

17 No texto italiano encontramos fare uno mucchio, isto é, “fazer um monte”.

18 Ver, em especial, o livro i de seu Compêndio, cuja maior parte é dedicada ao treinamento e disciplina dos soldados.

19 Ver o capítulo XXII do segundo livro, e o capítulo v do terceiro livro do Compêndio.

20 A captain does not speak to his men in order to explain his strategy, however; on the contrary, he should keep both his feelings and his plans secret.

21 Podemos destacar o livro de Emanuele Cutinelli-Rèndina (1998), Chiesa e religione in Machiavelli, assim como a série de artigos publicada no Journal of the History of Ideas, vol. 60, no 4, 1999.

22 “E como, para frear os homens armados, não basta o temor às leis e aos homens, os antigos acrescentavam a autoridade de Deus; e assim, com grande cerimônias, faziam seus soldados jurar que observariam a disciplina militar, para que, se a violassem, não só tivessem de temer as leis e os homens, mas também a Deus; e usavam de toda indústria para enchê-los de religião”. (Maquiavel, 2006, p. 178; Machiavelli, 1971b, p. 370).

23 Ver Machiavelli, 1971c, i, 56.

24 Mais uma vez, concordamos com Hankins (2019), para quem o desejo de Maquiavel, quando refletia sobre as ordenações e os costumes militares, era assegurar, como haviam feito os romanos, que os soldados sejam parte da sociedade, “ou melhor, que sejam a sociedade em sua expressão militar” (p. 447).

25 A esse respeito, remetemos novamente a Hankins (2019, p. 448).

26 Discordamos, assim, do ponto de vista de Bernard Wicht (1995) quando afirma em seu livro (que de resto é extremamente informativo e esclarecedor) que a cidade, em Maquiavel, “adquire um pouco o aspecto de um campo militar” [« la ville prend quelque peu l’allure d’un camp militaire »] (p. 165).

27 A passagem que acabamos de citar ecoa, e não por acaso, aquela outra, famosa, que encontramos no proêmio do primeiro livro dos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (Machiavelli, 1971c).

Informação adicional

Para citar este artículo: Adverse, H. (2022). Arte da guerra e arte do Estado em Maquiavel. Universitas Philosophica, 39(79), 47-70. ISSN 0120-5323, ISSN en línea 2346-2426. doi: http://doi.org/10.11144/Javeriana.uph.39-79.agem

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